“Foram erros políticos que abriram a passagem para todo tipo de aventureiro que vinha com uma solução mágica, despótica e, essa sim, militarizada”, diz a antropóloga Alba Zaluar à IHU On-Line ao comentar as mudanças na política de segurança pública no Rio de Janeiro e a eleição do governador carioca Wilson Witzel. Na avaliação dela, até o ano de 2013, “o Rio de Janeiro havia experimentado uma política que conseguiu baixar tanto a taxa de homicídios quanto o que se convencionou chamar de ‘letalidade policial’, ou seja, as mortes provocadas por policiais”. Essa política, pontua, “foi interrompida em 2013, após a morte de Amarildo, o que aumentou as resistências já existentes, inclusive em grande parte da esquerda, sobre as Unidades de Polícias Pacificadoras - UPPs, consideradas como a ‘militarização da favela’”.
De acordo com a pesquisadora, entre as primeiras consequências da política de segurança do governo Witzel, é possível observar que “embora a taxa de homicídio tenha baixado, a letalidade policial aumentou mais de 14%, o que revela um desequilíbrio ou incoerência entre as medidas tomadas para conter os assassinatos”. Somente nos primeiros meses de 2019, informa, “houve 1.075 autos de resistência, o maior número da série histórica. Isto, sem contar com o fato de que os desaparecimentos também aumentaram, embora menos que em São Paulo e outros estados”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Alba Zaluar também comenta a atuação e a expansão das milícias no Rio de Janeiro e explica que o perfil dos grupos “paramilitares criminosos” está mudando. Em 2010, “42 dos 143 milicianos presos eram PMs da ativa. Em 2016, essa proporção caiu para dez PMs da ativa entre 155 milicianos presos, mas aqueles permanecem na chefia dos grupos locais. (...) Na região de Rio das Pedras e da Muzema, o domínio territorial está nas mãos da segunda geração das milícias. Lá, o posto mais elevado ainda é ocupado por um policial militar”, informa. E adverte: “A tipificação de crime não é suficiente se não há uma política de segurança focada no controle ou combate a esse tipo de organização criminosa”.
Alba Zaluar frisa ainda que a informalidade nas transações imobiliárias nas cidades, o poder adquirido via invasão de áreas públicas e transações ilegais nos cartórios facilitam a atuação das milícias em todo o país. Por conta disso, assegura, “a questão fundiária é o problema mais sério a ser enfrentado no campo e nas cidades deste imenso país. O que há de comum entre eles: a facilidade de ocupar terras irregularmente, a concentração de migrantes que se mudam para ganhar muito dinheiro alhures. Não é a fome o que os move mais. Não vale mais aquela afirmação fácil e tão repetida por todos nós: ‘a favela não é o problema, é a solução para a habitação no Brasil’. Regulação fundiária já!”.
Alba Zaluar (Foto: INAE)
Alba Zaluar é graduada em Ciências Sociais, mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professora titular de Antropologia do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, onde fundou, em 1997, e coordenou o Núcleo de Pesquisa em Violências – Nupevi. Atualmente é professora visitante na UERJ.
IHU On-Line - Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, e o presidente Jair Bolsonaro apresentam visões muito semelhantes de Segurança Pública. Mas o que está na gênese de suas concepções? O que aproxima e o que distancia Witzel e Bolsonaro no que diz respeito à segurança pública?
Alba Zaluar - Não há dúvida de que a eleição de Wilson Witzel, que cresceu e se profissionalizou no interior de São Paulo, trouxe significativas mudanças na política de segurança pública no Rio de Janeiro. Primeiro, porque o Rio de Janeiro havia experimentado uma política que conseguiu baixar tanto a taxa de homicídios quanto o se convencionou chamar de "letalidade policial", ou seja, as mortes provocadas por policiais, antes classificadas como "autos de resistência". Essa tendência foi interrompida em 2013, após a morte de Amarildo, que aumentou as resistências já existentes, inclusive em grande parte da esquerda, sobre as Unidades de Polícias Pacificadoras - UPPs, consideradas como a "militarização da favela". Foram erros políticos que abriram passagem para todo tipo de aventureiro que vinha com uma solução mágica, despótica e, essa sim, militarizada. Agora, embora a taxa de homicídio tenha baixado, a letalidade policial aumentou mais de 14%, o que revela um desequilíbrio ou incoerência entre as medidas tomadas para conter os assassinatos.
O Instituto de Segurança Pública - ISP do Rio de Janeiro informou que, nos primeiros sete meses de 2019, houve 1.075 autos de resistência, o maior número da série histórica. Isto sem contar com o fato de que os desaparecimentos também aumentaram, embora menos que em São Paulo e outros estados. Esse é o ponto crucial da questão.
Houve, no discurso tanto do presidente da República, também formado no interior de São Paulo, quanto do governo do estado, uma "licença para matar", um incentivo à velha fórmula tão usada Brasil afora: "bandido bom é bandido morto". Mas que "bandidos"? Uma política de segurança coerente tem de ser integrada nos seus vários aspectos que não se reduzem à ação policial nem muito menos aos confrontos armados com traficantes ou supostos bandidos que vivem nas favelas. Afirmar que a polícia é necessária para enfrentar traficantes armados é também simplificar a questão, embora seja verdade que a ação policial inibe a guerra entre as facções. Mas é preciso antes de mais nada investigar como as armas e as drogas ilegais chegam às favelas que não as fabricam. Então, o problema deixa de ser estadual e passa a ser nacional e até mesmo transnacional.
É difícil para a população entender essa complexidade e muitos, amedrontados pelos danos e perdas de pessoas queridas, que vêm sofrendo ao longo de tantos anos, entram no modo "desespero" ou "pânico", ideal para os manipuladores políticos e suas fórmulas simplistas, mais que autoritárias, despóticas. O grande perigo é que se instale o terrorismo de Estado, com a população da favela com medo de sair de casa por causa dos helicópteros e snipers instalados ou nos helicópteros ou em pontos mais altos do local.
IHU On-Line - Qual a sua leitura dos desdobramentos do caso do sequestro do ônibus sobre a ponte Rio-Niterói? O que o episódio revela sobre concepção de política de segurança pública para o governador Wilson Witzel?
Alba Zaluar - O episódio ocorrido na Ponte Rio-Niterói, com o sequestro de um ônibus em que viajavam 37 ou 39 pessoas, demonstrou processos em desenvolvimento no Rio de Janeiro que são muito diferentes entre si. Primeiro, a maturidade adquirida por setores do Batalhão de Operações Especiais - Bope, tão temido e mal falado na cidade, especialmente entre favelados. Um sniper foi instalado em ponto estratégico, acompanhado de negociadores que logo tomaram a direção das negociações já em curso. Alguns passageiros foram liberados, sem que a tensão se dissolvesse devido às medidas sem estratégia que o sequestrador tomava, como dizer aos passageiros que não queria lhes fazer mal, deixar que eles se comunicassem com o exterior pelos seus celulares ou por cartazes, o que lhes permitiu participar da negociação, ao mesmo tempo que os amarrava e ameaçava com armas e com a gasolina pendurada por todo o ônibus, jogava objetos em fogo do ônibus cheio de gasolina, entrava e saía dele etc. Ele não sabia nada de sequestro! Então instala-se a primeira dúvida: os negociadores não perceberam a ingenuidade do sequestrador?
Já se conhece o desfecho: o sniper atirou no sequestrador pelo menos seis tiros. Quem estava por ali comemorou com palmas sem saber ainda que ele havia morrido, porém com a certeza de que o perigo havia passado e todos poderiam ir para o trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Não há muito que lamentar nessa comemoração devido às três horas e meia de tensão, atrasos e, principalmente, pavor diante da morte que parecia iminente. Até que se anuncia a morte do sequestrador e chega o governador, que salta de um helicóptero todo fagueiro e, sentindo-se responsável por esta política de segurança que não explica de jeito nenhum o desfecho bem-sucedido, começa a dar pulos de alegria e a fazer sinais de enorme contentamento com as mãos e o sorriso que ocupava todo o seu rosto. Chocante, fora de propósito, fora de lugar. Um ser humano jovem acabava de morrer ali.
O sucesso se deveu ao amadurecimento técnico ocorrido no Bope devido aos muitos cursos para policiais oferecidos no Rio de Janeiro, principalmente na Universidade Federal Fluminense - UFF, mas também na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Desenvolveu-se um debate intenso e proveitoso em que o pensamento estratégico foi finalmente levado a sério e a Polícia Militar - PM começou a mudar, treinando melhor seus snipers, que aprendiam mais do que fazer apenas o cerco de traficantes em matas e favelas, como fazia o capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, chefe da milícia de Rio das Pedras, e do agora conhecido "Escritório do Crime", acusado de ser executor da morte de Marielle. Sumiu do noticiário, como o Queiroz e outros personagens sinistros das milícias que tanta força ganharam no século XXI. Este é o lado escuro da história da PMRJ.
IHU On-Line - De que forma a atuação das milícias e do crime organizado (tráfico de drogas) reconfigura o cenário do crime e da violência no Rio de Janeiro de hoje? Como compreender a relação que as milícias estabelecem com o Estado no Rio de Janeiro?
Alba Zaluar - Nunca soubemos tanto sobre o fenômeno "milícia", um nome inapropriado dado por uma jornalista, que se tornou categoria de senso comum, sem poder analítico. O nome apenas valeria para o começo do processo de crescimento da forma de organização de vigilância e proteção da vizinhança nos anos 1970, primeiramente na favela Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro, repetido até hoje no discurso de milicianos para justificar suas ações fora da lei. Então, pelo estudo de Marcelo Burgos, a organização foi criada para "dar" (vender) proteção aos moradores nordestinos com medo dos traficantes e assaltantes identificados com Cidade de Deus, um conjunto habitacional próximo. Paradoxalmente, era então chamada pelos moradores de "mineira", a categoria nativa usada para referir-se a grupo de extermínio, interpretada pelos moradores como homenagem à polícia mineira que vinha matar bandidos mineiros no Rio de Janeiro, ou como a atividade de mineração, de encontrar ouro.
Hoje o termo milícia não é adequado, pois evoca a ideia de que os milicianos são protetores da comunidade e não sublinha seu caráter paramilitar e negocista. Ao contrário, é usada pelos seus membros para justificar a matança ilegal de "bandidos" ameaçadores. Mas é preciso destacar como muitas acomodações e transformações vêm acontecendo para que tais organizações criminosas se mantenham impunes e ativas. A multiplicidade de formas organizacionais permanece e eu hesito em considerar a milícia como algo específico do Rio de Janeiro. Acompanhei a evolução do crescimento dessas formas genéricas que demonstraram como ultrapassaram entre 2005 e 2013 o crime organizado do tráfico. Localizamos pelo levantamento via informação de moradores, internet e notícias de jornais que, em torno de 2010, já ocupavam 50% das favelas. Mas eram vários tipos de organização que iam do vigilante local até a forma de crime-negócio que foi expandindo suas atividades econômicas informais e ilegais altamente lucrativas.
Hoje, as milícias estão infiltradas no Estado tal como outras formas de crime organizado caracterizado pelos negócios ilegais. Nas milícias mais poderosas e dominadoras, a maioria dos agentes é oriunda das forças militares do Estado. O que se chama "milícias" deve ser entendido, portanto, como grupos paramilitares criminosos que agem, sobretudo, mas não só, com a participação de policiais e ex-policiais, bombeiros e ex-bombeiros, guardas penitenciários e até militares das Forças Armadas - FFAA. Entretanto, essa organização paramilitar, no Brasil, não é contra o Estado tal como os “contra” da Nicarágua ou os paramilitares da Colômbia. Têm fortes aliados dentro do Estado que garantem a impunidade necessária para a continuidade dos negócios no arrepio da lei.
O caráter negocista irregular dos paramilitares parece-me ser a caraterística mais singular do fenômeno milícia no Rio de Janeiro/Brasil. Agora, já se sabe que os paramilitares cobram taxas de proteção contra eles próprios, uma prática mafiosa desde o século XIX, que está mais perto da extorsão do que da proteção, e vendem produtos como o “gatonet”, a preço menor do que o cobrado pelas empresas formais; o botijão de gás, a preço mais alto do que o do mercado formal; o transporte alternativo das vans e dos motoboys, também financiados por traficantes em algumas favelas. Desde os anos 1980, moradores mencionavam a cobrança de taxas na realização de transações imobiliárias como aluguel e venda via associação de moradores que também concedia o termo de posse mediante pagamento.
Mais recentemente, os paramilitares ou “milicianos” entraram no mercado da construção informal, ilegal e irregular, fazendo crescer ainda mais as edificações irregulares na malha urbana da cidade. Por isso, incorporaram outros ramos de atividade como a extração de areia, a venda de produtos para a construção, assim como a venda de vestuários, veículos, traficados ilegalmente e vendidos a preços abaixo do mercado formal. Isso a aproxima de uma das máfias italianas, a Cosa Nostra, que foi negocista desde o início e não entrou por muito tempo no tráfico de drogas, razão aliás de sérios conflitos dentro dela. Os lucros aumentaram muito e, portanto, a necessidade de manter a impunidade por meio de articulações políticas e institucionais.
IHU On-Line - Como compreender as lógicas de cooptação das milícias a comunidades de periferias?
Alba Zaluar - Houve também mudanças no modus operandi do terror infligido aos moradores. Inicialmente, para tornar os moradores dóceis ao seu domínio, executavam suas vítimas com tiros de fuzil e deixavam os corpos na rua para que todos vissem. Isso mudou radicalmente depois que a Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI tornou as organizações paramilitares objeto de preocupação e investigação das autoridades competentes, tendo conseguido tipificar “milícia” como crime no código penal brasileiro. Mas não conseguiu diminuir o crescimento e a ação negocista e opressora que exercem nas áreas pobres da cidade. Hoje, eles matam em segredo e dificultam a localização dos corpos. O número de desaparecidos tem superado o de homicídios desde 2010, o que revela que esse método da milícia começa no governo Dilma. Comparando o número de desaparecidos na Zona Oeste do Rio nos anos de 2005 e 2015 (de janeiro a outubro), houve um aumento de 125%. Nos 10 primeiros meses de 2005, foram registrados 496 casos na Zona Oeste do Rio e em 2015 foram 1.119. Já nas outras regiões da cidade (zonas Sul, Norte e Subúrbio), o aumento do número de desaparecidos passou de 959 em 2005 para 1.414 em 2015, um aumento de 47%. Mas não creio que esse alto número de desaparecidos se deva apenas à ação homicida dos paramilitares, pois as organizações do tráfico também escondem os que matam. O PCC e o CV têm agido assim há muitos anos, o que explica por que São Paulo é o estado com o maior número de desaparecidos.
Houve também a substituição das lideranças depois que a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas - Draco tirou de circulação as principais lideranças da época, como os irmãos Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, ex-vereador, e Natalino José Guimarães, ex-deputado estadual, Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman, Toni Ângelo de Souza Aguiar, o Erótico, e Marcos José de Lima Gomes, o Gão. Todos eram ligados à Liga da Justiça, facção miliciana da Zona Oeste da cidade. Porém, com o passar do tempo, o combate ao crescimento das milícias perdeu a relevância quando a Draco foi reduzida a um quadro de 15 agentes e abriu caminho para a renovação das lideranças.
O perfil das milícias está mudando: 42 dos 143 milicianos presos em 2010 eram PMs da ativa. Em 2016, essa proporção caiu para dez PMs da ativa entre 155 milicianos presos, mas aqueles permanecem na chefia dos grupos locais. Em Santa Cruz, Ecko sucedeu a Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três Pontes, morto durante operação da Delegacia de Homicídios - DH, em abril de 2017. Nenhum dos dois pertencera às polícias Civil ou Militar, ao contrário dos chefes anteriores. Segundo as notícias, Ecko, além de contrariar a velha geração, arraigada ao modelo tradicional de controle, com a venda de proteção e outros serviços oferecidos pela “Liga da Justiça”, como era chamada a milícia na Zona Oeste, iniciou uma guerra nas ruas. Na região de Rio das Pedras e da Muzema, o domínio territorial está nas mãos da segunda geração das milícias. Lá, o posto mais elevado ainda é ocupado por um policial militar. Portanto, a tipificação de crime não é suficiente se não há uma política de segurança focada no controle ou combate a esse tipo de organização criminosa.
Apenas a lei nunca basta. É preciso um trabalho persistente, coerente, integrado de várias instâncias do judiciário e vários órgãos governamentais para inibir, coibir, controlar esse avanço que ameaça claramente o processo eleitoral e tenta controlar pela coerção armada o voto dos infelizes moradores de tais áreas, especialmente os que não são doutrinados por algumas das igrejas neopentecostais às quais pertencem também os milicianos.
Um ponto crucial que afeta todo o Brasil: a informalidade nas transações imobiliárias nas cidades e o poder que pode ser adquirido via invasão de áreas públicas e transações ilegais nos cartórios, aproximam este fenômeno urbano do que acontece em todas as regiões de fronteira do Brasil. A questão fundiária é o problema mais sério a ser enfrentado no campo e nas cidades deste imenso país. O que há de comum entre eles: a facilidade de ocupar terras irregularmente, a concentração de migrantes que se mudam para ganhar muito dinheiro alhures. Não é a fome o que os move mais. Não vale mais aquela afirmação fácil e tão repetida por todos nós: “a favela não é o problema, é a solução para a habitação no Brasil”. Regulação fundiária já!