O episódio da semana passada, quando Willian Augusto da Silva, de 20 anos, foi morto depois de ter feito reféns os passageiros de um ônibus em plena Ponte Rio-Niterói, trouxe novamente para a pauta do dia o debate sobre a violência na cidade do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Tida como uma ação exitosa da polícia, o caso chegou a ser usado pelo governador do Rio, Wilson Witzel – que quando soube da morte do sequestrador e da liberação das vítimas pousou de helicóptero no meio da Ponte e saiu vibrando como quem marcara um gol –, como pretexto para discutir a legislação para que policiais “abatam” (na linguagem dele) criminosos. Para a socióloga e antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda, essa é uma estratégia, uma “cortina de fumaça”, para inebriar o principal debate acerca da violência: “a principal causa de violência no Rio de Janeiro é o crescimento das milícias. O tráfico de drogas hoje já não é mais tão lucrativo assim, por uma série de razões”, aponta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora explica que o tráfico de drogas mudou muito e o “negócio” não é mais tão lucrativo quanto foi no passado. Enquanto isso, a milícia vai se organizando tanto no fornecimento de serviços, públicos e privados, que não chegam à periferia, quanto na associação com o próprio tráfico. “A milícia é um grupo paramilitar formado por pessoas da ativa ou não”, explica. Composta por ex-policiais, às vezes expulsos das corporações por crimes, o grupo é bem diversificado, contendo ainda “membros do corpo de bombeiros, guardas municipais, agentes penitenciários, pessoas das forças armadas” e, em alguns casos, agindo em cooperação com o tráfico. “A milícia é a privatização da segurança. É a institucionalização da privatização da segurança”, resume a professora.
Ana Paula ainda observa que, embora façam a gestão de serviços extremamente lucrativos, o capital da milícia é outro. “A fabricação do medo; é essa mercadoria que está sendo negociada o tempo todo. As pessoas que se recusam a pagar as taxas que eles cobram são assaltadas, coagidas ou mortas por eles”, ressalta. E isso se dá porque há uma confusão entre proteção e segurança. “A proteção é um bem comerciável: eu vendo e quem tem dinheiro compra. A segurança, que deveria ser o objetivo da política, é um bem intangível, não é negociável. Segurança ou todo mundo tem ou ninguém tem. Não tem como eu ter segurança e o morador da favela não ter, porque segurança é um bem coletivo”, esclarece.
E na gestão do produto que esses mesmos grupos produzem, as milícias vão se alastrando sobre o tecido social, indo do poder de polícia ao poder político. “As milícias já assumiram uma força política no Estado. Eu não diria que a milícia vai controlar o Estado; ela já controla. A morte de Marielle [Franco] é um exemplo claro de como eles já controlam o Estado”, dispara. É por isso que Ana Paula não se diz surpresa com o sucesso de determinados políticos dada a proximidade deles com os milicianos. “A população, coagida pelo medo, vai votar para não sofrer represálias. As milícias são hoje o voto de cabresto contemporâneo, indiscutivelmente; isso já é um fato”, resume.
Ana Paula (Foto: Arquivo Pessoal)
Ana Paula Mendes de Miranda é graduada e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, é professora associada do Departamento de Antropologia e professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Mestrado Acadêmico em Justiça e Segurança, ambos da UFF. Exerce também os cargos de coordenadora do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública e de coordenadora adjunta dos Programas Profissionais da área de Antropologia e Arqueologia (CAPES) e, igualmente, de coordenadora geral do projeto de P&D “Mapa de percepção de riscos: Metodologia multimétodo para análise de territorialidades afetadas pelo domínio armado”. O resultado do trabalho desse projeto está sendo lançado num livro com o mesmo nome, pela editora Autografia, organizado conjuntamente com as professoras Jacqueline de Oliveira Muniz e Roberta de Mello Corrêa.
IHU On-Line - Qual a sua leitura sobre os desdobramentos do sequestro ao ônibus na ponte Rio–Niterói?
Ana Paula Mendes de Miranda – Preciso esclarecer que como eu não estava no Rio de Janeiro no dia do sequestro, estava em Brasília, não acompanhei todo o caso, como ocorreu na ocasião do ônibus 174, que acompanhei bastante. Então, acompanhei esse último caso mais tardiamente, e não em tempo real. Para nós, que somos pesquisadores, isso faz diferença.
Dito isso, destaco um aspecto que não foi muito explorado neste caso. Simultaneamente ao sequestro, estava ocorrendo uma operação policial na Cidade de Deus, que teve a utilização de bombas: os policiais jogavam bombas de gás lacrimogênio a partir do helicóptero. Temos aí uma questão ligada à política de segurança que é a legitimação de táticas e estratégias operacionais que são alvo de questionamento por parte da população e que, muito provavelmente, precisariam ser repensadas e revistas.
Aí, no caso do ônibus, tem uma coisa muito importante: falou-se muito que esta operação seguiu os protocolos. Os pesquisadores que atuam nesta área sabem que este é um dos principais problemas da polícia no Brasil: não há protocolos claros seguidos regularmente pelas instituições policiais. Esse é um aspecto sobre o qual precisamos pensar, porque quando se fala de protocolos, internacionalmente, trata-se de uma coisa que vamos fazer sempre, em qualquer circunstância, independentemente dos atores. E não foi bem isso que vimos.
O fato de, ao mesmo tempo, estar acontecendo um episódio num lugar e uma operação policial numa outra área da região metropolitana, coloca um ponto muito importante para pensarmos: para que serve a política de segurança? Esse é o principal desdobramento deste caso. Há décadas temos tido políticas de segurança que servem para produzir inseguranças. Isso nos faz pensar numa questão bastante controversa, que foram os desenhos que as crianças da Maré fizeram recentemente, em que o helicóptero aparecia centralmente como uma coisa que estava ali e trazia mais medo do que segurança.
A despeito de ter sido a ação precisa do sniper – não estou me centrando nisso, mas pensando isso no conjunto –, é preciso que fique claro que uma ação que pode ter sido precisa não significa necessariamente que a política de segurança seja correta. Então, o principal desdobramento desta ação é trazer novamente à baila o que temos como resultado das políticas de segurança no Rio de Janeiro: o aumento da insegurança.
O que significa sequestrar um ônibus? Para além de uma situação desesperada, que fica evidente no caso desse rapaz – mas que no caso do Sandro [do ônibus 174] não foi tão evidente porque, de alguma forma, o fato de ele ter sido um sobrevivente da Chacina da Candelária fez com que todo mundo o tratasse como um “bandido” –, sequestrar um ônibus está dentro de um contexto de assaltos a ônibus. Vi poucas pessoas falando sobre isso, e este é um crime que tem crescido. Somente neste ano, na cidade do Rio de Janeiro, cresceu cerca de 14%. Mas na região de São Gonçalo, de onde vinha este ônibus, cresceu 20%.
O ônibus é o principal meio de transporte das grandes cidades brasileiras. Então, ele tem um simbolismo e há várias pesquisas mostrando como as pessoas “morrem de medo” de andar de ônibus. O ônibus faz parte deste cenário de uma política de produção de insegurança. O episódio conseguiu encerrar o sequestro, mas quais são as ações que estão sendo feitas para diminuir os assaltos a ônibus que podem derivar numa situação dessas?
Os episódios do Sandro e do William [jovem do caso da ponte Rio-Niterói] foram equivalentes nesse sentido. Um episódio diferente aconteceu em 2011, quando um rapaz branco saiu de uma festa, viu um ônibus parado no ponto, pegou o ônibus e saiu. Ele estava drogado, alcoolizado e esse episódio resultou em oito colisões: ele bateu em carros de passeio, em ônibus, em táxis e em um carro da polícia militar. O rapaz não foi morto. Ele era branco, classe média, foi chamado de jovem, de estudante.
Para o que estou tentando chamar atenção nesse caso em oposição aos outros dois casos? É que nem sempre a gana por precisão de matar os bandidos acontece quando estamos lidando com pessoas brancas. Essa é uma questão que temos que considerar quando se trata da política de segurança. A política de segurança do governador [Wilson Witzel], que legitima que se deve atirar primeiro, resultou na morte de vários jovens, como a de um rapaz que tinha chuteiras na mochila. E o policial disse, depois da morte do garoto: “E não tinha nada...”. Ou seja, essa é a política do atira primeiro e pergunta depois, cuja consequência é o genocídio da população preta.
IHU On-Line – Por que houve um aumento dos assaltos a ônibus no Rio de Janeiro?
Ana Paula Mendes de Miranda – Só se fala que cresceram os índices de assalto no Rio de Janeiro, sem muita explicação. Obviamente isso tem a ver com a estratégia de política de repressão ao tráfico de drogas. O tráfico de drogas é uma atividade criminosa e tem dentro do seu escopo uma rede de custos que tem que ser mantida, o que inclui o “arrego” pago aos policiais. Então, quando se reprime o tráfico de drogas numa determinada área e o custo operacional do tráfico continua valendo, vai continuar aumentando o crime em outras áreas, áreas geográficas e tipos de crimes, porque a rede criminosa precisa continuar funcionando.
Geralmente quando se tem um aumento de repressão às facções, tem aumento de assalto e esse aumento vai acontecer em diferentes contextos. O roubo em coletivos de ônibus é um deles, porque é onde ainda se tem dinheiro vivo circulando. Claro que hoje muitas pessoas usam o cartão de acesso ao ônibus, mas muitos ainda pagam em dinheiro. Hoje em dia, quase todas as pessoas no ônibus têm celular e isso se transforma em dinheiro muito rapidamente, porque existe um mercado ilegal em torno da revenda ou desbloqueio de celulares.
Assim, o ônibus tem uma centralidade na circulação de capitais e, do ponto de vista simbólico, ele é um bem de mobilidade que leva as pessoas das regiões afastadas para o centro da cidade. São Gonçalo é uma cidade-dormitório. Por acaso, este ano estou lançando um livro com duas colegas, no qual apresentamos uma pesquisa que fizemos em São Gonçalo e Caxias [“Mapa de Percepção de Riscos: Metodologia multimétodo para análise de territorialidades afetadas pelo domínio armado”. Rio de Janeiro: Autografia, 2019], sobre um mapeamento das áreas violentas, e garanto que o mapa que fizemos em São Gonçalo é um mapa de uma cidade muito marcada por crimes.
E ninguém discutiu problemas como os de São Gonçalo. Ficam discutindo se a polícia pode ou não matar. É evidente que a polícia pode matar; ela é uma instituição criada para isso. Mas o problema não é que ela pode matar, mas como, quando e em que circunstâncias ela vai matar. Então, acabamos desvirtuando totalmente a discussão para um detalhe e abandonamos tudo o mais que é importante, que é em que situações a polícia estará autorizada a atirar em uma pessoa. Evidentemente que, como no caso do ônibus, se havia o risco para todas as outras pessoas, a ação em si está legitimada. Mas daí comemorarmos... Esse é o problema em relação ao que aconteceu, porque o governador comemorou – depois ele disse que não comemorou, mas comemorou – a morte do William.
Tentou-se dizer que este episódio foi diferente do ônibus 174 porque não houve interferência política, mas é mentira: evidente que houve interferência política e toda ação da polícia é política. O ato de ter autorização para matar é um ato político. Talvez estejam querendo dizer que não é um ato partidário, porque o que se dizia na época do governo Garotinho [Anthony Garotinho era governador à época do ônibus 174], era que o governador teria impedido que um sniper atirasse para não haver um assassinato em rede nacional.
Então, nesse sentido, descemos um degrau e agora se autoriza um assassinato em rede nacional – ou melhor, em rede internacional, porque isso foi transmitido internacionalmente. Se alguém acha que isso é positivo, eu, particularmente, acho que não é. Até o último minuto temos que tentar evitar a morte, do ponto de vista da ação política – não estou discutindo a questão tática e estratégica, porque não tenho formação.
IHU On-Line – De que forma o crime organizado se relaciona com as milícias e como essas duas entidades redesenham o quadro da violência no Rio de Janeiro?
Ana Paula Mendes de Miranda – Esse é o principal ponto. A principal causa de violência no Rio de Janeiro é o crescimento das milícias. A partir desta pesquisa que fiz em São Gonçalo e em Duque de Caxias, fica evidente que o que está em disputa é o controle territorial para a realização de atividades criminosas, sejam elas quais forem. O tráfico de drogas hoje já não é mais tão lucrativo assim, por uma série de razões.
Primeiro, mudou o perfil do consumo de drogas. O tráfico de drogas que está nas favelas é um tipo de tráfico que não interessa mais tanto à classe média alta. O segundo ponto é o custo do tráfico: o “arrego”, o aluguel das armas e as milícias, que controlam o “gato net”, que é como chamamos o acesso às televisões, wi-fi, o controle da venda de gás, do moto-táxi, do furto de energia – tem uma rede institucional que vende o serviço de energia, concorrendo com as empresas concessionárias. Tudo isso é altamente lucrativo.
No caso de São Gonçalo, o prejuízo da empresa de energia é de mais de 50%. Imagina o que é para uma empresa concessionária o prejuízo. Com perdas de mais de 50%, qualquer empresa pode falir. Esse caso era tratado como um caso individual, mas provamos que não é um caso individual, porque existe um esquema industrial de furto de energia que concorre com a empresa. Tudo isso é controlado pela milícia e pelo tráfico, para categorizarmos em dois setores apenas, porque muitas vezes traficantes e milicianos são sócios.
Essa ideia romantizada de que a milícia vem para evitar o crime na sua área, não é necessariamente verdadeiro. Eu diria que não é empiricamente verdadeiro, dependendo da área. Existem áreas em que milicianos adotam essa postura, da mesma forma em que há áreas em que traficantes adotam essa postura, e isso aparece na nossa pesquisa em São Gonçalo: tinha uma região da cidade em que o tráfico de drogas não deixava fazer assalto na região. Não é só o miliciano que não deixa; o traficante também não deixava.
Isso leva a um equívoco muitas vezes na análise dos dados, porque há regiões em que se pensa que acabou o assalto, mas na verdade as pessoas estão sob outro regime de medo: o da extorsão. O que garante o poder dos milicianos e dos traficantes? A fabricação do medo; é essa mercadoria que está sendo negociada o tempo todo. As pessoas que se recusam a pagar as taxas que eles cobram são assaltadas, coagidas ou mortas por eles. Há relatos de pessoas que foram assassinadas porque se recusaram a pagar as taxas cobradas pelos milicianos. Vi recentemente uma matéria sobre uma área de condomínios de moradores das forças armadas que são cobrados pelos milicianos, mas eles têm desconto em relação às taxas cobradas dos outros moradores, em nome de uma proteção.
Aí temos um ponto-chave: proteção não é segurança. Há uma confusão, nesse cenário, de que estamos falando da mesma coisa. A proteção é um bem comerciável: eu vendo e quem tem dinheiro compra. A segurança, que deveria ser o objetivo da política, é um bem intangível, não é negociável. Segurança ou todo mundo tem ou ninguém tem. Não tem como eu ter segurança e o morador da favela não ter, porque segurança é um bem coletivo. Uma área segura é uma área para todos, sempre, indistintamente.
Como o brasileiro tem muita dificuldade de entender o que é direito, porque entendemos direito como privilégio, a fantasia é segmentada: quem mora na zona sul do Rio de Janeiro acha que a zona sul pode ser segura e não tem problema o que está acontecendo na periferia ou na favela, porque quem mora na zona sul paga pela sua segurança. Mas o fato é que ela não paga pela segurança, ela paga por outras coisas. Por segurança todo mundo paga. Segurança é um bem intangível, como deveriam ser também os direitos à saúde e à educação, que são os direitos protegidos por legislações constitucionais no mundo todo. São bens de atividade obrigatória do Estado.
A milícia é a privatização da segurança. É a institucionalização da privatização da segurança. Quando a classe média larga de mão o SUS e opta pelo plano de saúde, ela opta pela privatização da saúde. A milícia é uma opção pela privatização da segurança; só terá segurança quem paga. Mas é uma ilusão achar que se terá segurança pagando para a milícia, porque não vai ter. A milícia cobra até do próprio militar.
IHU On-Line – As milícias são forças policiais paralelas que, dado o seu poder, podem acabar assumindo uma força política no Estado?
Ana Paula Mendes de Miranda – As milícias já assumiram uma força política no Estado, mas eu não gosto de usar a expressão “paralela”. A milícia é um grupo paramilitar formado por pessoas da ativa ou não. A milícia é composta por ex-policiais que podem ter sido expulsos da corporação por crimes, como pode ter pessoas da reserva, e não só policiais, mas membros do corpo de bombeiros, guardas municipais, agentes penitenciários, pessoas das forças armadas. Ou seja, tem uma composição diversificada de pessoas da ativa ou não, com uma força paramilitar que já controla o Estado.
Eu não diria que a milícia vai controlar o Estado; ela já controla. A morte de Marielle [Franco] é um exemplo claro de como eles já controlam o Estado. Recentemente, tivemos a notícia de mais um vereador assassinado em Maricá, também região metropolitana do Rio de Janeiro. O The Intercept fez uma matéria sobre o número de vereadores assassinados, e o número é enorme, assustador, principalmente na Baixada Fluminense. Isso mostra que a milícia já tem o controle. Além disso, quando a milícia impede grupos partidários de entrarem em determinadas regiões para fazerem campanha eleitoral, temos as milícias controlando a política do Estado.
Quando se diz que fulano – vou evitar dizer nomes – foi o mais votado, beltrano foi o segundo mais votado em tal região, todos eles ligados à milícia, é evidente que a população, coagida pelo medo, vai votar neles para não sofrer represálias. As milícias são hoje o voto de cabresto contemporâneo, indiscutivelmente; isso já é um fato. O estado do Rio de Janeiro já está dominado pelas milícias. Mas eu gostaria de chamar atenção de que não é somente o estado do Rio de Janeiro: há outros estados, embora o fenômeno ainda esteja mascarado.
Por que digo isso? Porque uma coisa que tenho estudado há dez anos, que é a destruição dos terreiros de Candomblé, já está acontecendo no Nordeste. Essa destruição está vinculada a esse fenômeno: o que está em disputa não é só a destruição do terreiro, mas o espaço do terreiro, porque se precisa daquela área para especulação imobiliária, que é outro ramo muito lucrativo das milícias no Rio de Janeiro.
Lembrem do prédio que desabou no Rio de Janeiro recentemente. Aquilo era área de milícia e uma área em que não se podia construir, ainda mais do jeito como foram construídos os prédios. Estamos diante de um cenário equivalente ao que aconteceu com o México, o qual passou por um processo muito grave de “miliciarização” e foram décadas para conseguir romper com isso.
IHU On-Line – A milícia surge como um poder paramilitar. Como esse poder se associa com o tráfico e como chega ao Estado? Pode recuperar historicamente qual é a origem desse processo em que a milícia surge e se alastra até chegar ao Estado?
Ana Paula Mendes de Miranda – Um professor da Universidade Estadual Rural do Rio de Janeiro estuda a atuação dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense desde a ditadura militar. Ele associa a ditadura à organização desses grupos. O que eu diria em relação a isso é que sim, temos uma relação com a ditadura militar, mas os grupos de extermínio associados à ditadura militar naquela época na Baixada Fluminense – e aí eu discordo um pouco do professor – tinham um pouco a lógica de limpar o terreno para não ter assalto. Tinha a ideia da proteção particularizada. Hoje, o cenário é diferente. Podemos ter tido aquilo que ele menciona como um fenômeno histórico e podemos associar as milícias a um momento da ditadura militar, e não é por acaso que alguns desses atores são defensores de um militarismo, de um nacionalismo violento, mas hoje a situação é diferente.
Hoje, quando estamos lidando com esse poderio miliciano, o que está em disputa é o domínio do território. Não é só o domínio do poder do ponto de vista da conquista do território, mas o domínio comercial. O interesse é financeiro; esse pessoal está na especulação para ganhar dinheiro e para isso eles cobram com o medo porque vendem proteção. A milícia é uma atividade comercial. O que está em jogo aí é a disputa pelos mercados ilegais. Eu prefiro a interpretação do professor Michel Misse, meu colega da UFRJ, que está preocupado com a construção dos mercados ilegais e dos mercados legais, que tem a ver com a regulamentação do consumo das drogas. O mundo todo está fazendo esta discussão, mas no Brasil nós nos recusamos a isso.
Em termos de custos, o custo da violência é infinitamente mais alto. Aí se pergunta o que fazer com os dependentes químicos. Tem que tratá-los na saúde; é mais barato. Estou pensando do ponto de vista da política e não do ponto de vista moralista. Não estou defendendo o uso de drogas ao dizer isso, mas falando o que significa morar na Cidade de Deus: existem pesquisas mostrando que os moradores da Cidade de Deus e do entorno têm uma perda de dias letivos que corresponde a quase um mês a menos do que todos os moradores do resto da cidade; isso não tem como recompor. Esses meninos não vão passar no vestibular e terão uma formação pior do que a dos outros. Isso tem um custo político.
Eu falo muito da Cidade de Deus porque tenho uma orientanda que mora num condomínio que fica ao lado de uma das entradas da Cidade de Deus. Já perdi a conta de quantos compromissos de trabalho essa moça perdeu por não conseguir sair. Quando ela consegue sair, fica num desespero de não conseguir voltar para casa, porque o filho dela, um menino de 13 anos, está sozinho. Esse é um caso que acompanho pessoalmente.
O custo dessas coisas não é considerado quando temos uma política do atira primeiro e pergunta depois. Ao dizer isso, não estou defendendo que o bandido tenha direito de estar armado. Evidentemente que não. Mas se quisermos tirar as armas dos bandidos da favela, que tal começarmos a investigar de onde vem a munição, as armas que são vendidas pelas forças armadas? O que digo é que ficamos produzindo eventos midiáticos de “vamos atirar em qualquer um”, “vamos prender qualquer um” e, com isso, ficamos matando pessoas que andavam com uma furadeira elétrica, com uma chuteira na bolsa. Há um custo social que não é produzido pelos bandidos, mas pela política. Um exemplo são as empresas que deixam de se instalar no Rio de Janeiro por causa da violência.
IHU On-Line - Levantamento do portal UOL aponta que, no primeiro semestre de 2019, a polícia do Rio matou 881 pessoas, mas nenhuma em área controlada pelas milícias. O que isso significa?
Ana Paula Mendes de Miranda – Pura coincidência, para aqueles que acreditam em coincidências (risos). Esse dado corrobora o que estou falando. Não é em área de milícia que ocorrem essas mortes, porque a milícia não aceita que ninguém atrapalhe o negócio dela. A coisa mais conhecida no Rio de Janeiro é o “empurra o corpo para cá, empurra o corpo para lá”. Então, o fato de a pessoa não ser morta ou não aparecer morta numa região, não significa que o crime não tenha acontecido naquele lugar. Temos inúmeros casos de desaparecimento de corpos. Um dado bastante assustador que se comenta é o fato de dar os corpos para jacarés e porcos.
Isso passou a acontecer depois da morte do [jornalista] Tim Lopes, porque, até então, quando o tráfico matava, ele tinha a técnica da incineração nos pneus. Quando estavam procurando o corpo do Tim, encontraram várias outras ossadas e ninguém se perguntou sobre aquelas outras ossadas; só foi feita a investigação do DNA nos pneus e se identificou que havia o DNA. Assim, se viu que tem como fazer prova desses crimes, e isso resultou na mudança de tática de desaparecimento de corpos. Há inúmeros relatos de que passaram a dar os corpos para bichos porque, no caso de jacaré e porco, não sobra nada de osso. Isso se institucionalizou e na zona oeste do Rio de Janeiro tem muito jacaré, não é à toa que se chama Jacarepaguá. Há estudos do ponto de vista da Biologia mostrando que há um crescimento excessivo desses animais, o que mostra que eles estão sendo muito alimentados. É por isso que falo sobre um processo de mexicanização do fenômeno, porque o que está acontecendo é equivalente ao que aconteceu em relação à violência no México.
Temos um cenário de que notícias como a que você se refere é a melhor propaganda da milícia, porque uma matéria como essa só serve para a milícia fazer festa e dizer que é eficiente. Acontece que ela é eficiente em que sentido? É difícil pensarmos quais são as consequências disso, porque qual seria a forma para impedir essa situação? É não ter uma conivência das forças públicas, mas acontece que tem e, inclusive, há um envolvimento dos três Poderes.
IHU On-Line – Na entrevista coletiva, depois do desfecho do sequestro na ponte, o governador do Rio, Wilson Witzel, voltou a dizer que é preciso rever a legislação e reendossou a autorização de que policiais devem atirar em “bandido com fuzil”. O que isso representa? E por que o governador usa o episódio da ponte, que não tem relação com o uso de armamento pesado por supostos bandidos, para defender sua tese?
Ana Paula Mendes de Miranda – Significa uma cortina de fumaça para mostrar que ele não está fazendo nada. Essa é a conversa de todo mundo: “vamos rever a legislação”. Todo mundo sabe que a legislação dura muito mais do que um mandato. A pergunta que tem de ser feita a ele é: o que ele, enquanto governador, está fazendo para a política de segurança do Rio de Janeiro? Eu, como moradora desse estado, não sei qual é a política do estado. Quer dizer, sei: matar. Mas para além de matar, o que mais?
Para além de matar, o que temos em funcionamento? O que eu sei é que na polícia está tudo sucateado, que não tem dinheiro nem para combustível. O primeiro ato que o governador fez foi o desmembramento da Secretaria de Segurança. Isso, na minha opinião, é um equívoco, porque há um esforço da Secretaria de Segurança em produzir uma interação entre as duas polícias e foi por isso que se criou uma secretaria de segurança unificada. Desde a década de 1980 se teve essa busca de unificação de propostas, já que não vai haver unificação das polícias – não acredito nessa unificação e acho isso um equívoco.
Mas desde que o governador assumiu, ele desfez essa integração de propostas e desde então as delegacias que deveriam fazer as investigações dos crimes, para que aí sim se tivesse um sistema de repressão significativo, estão totalmente sucateadas, não têm estrutura para trabalhar. Todo o projeto de delegacia legal, que foi um projeto de modernização das delegacias do Rio de Janeiro, foi abandonado e hoje as delegacias estão sucateadas. Quando ele fala disso [rever legislação], está fazendo uma cortina de fumaça para não revelar o quanto o Rio de Janeiro segue sem ter uma política de segurança que realmente dê conta, do ponto de vista legal, do que acontece com o crime no Rio de Janeiro.
Sobre os homicídios no Rio de Janeiro, eu fiz uma pesquisa em 2005, a qual mostrava que o percentual de casos de homicídios elucidados é ínfimo. Na época não chegava a 5%, e dentro desse índice estavam os flagrantes – o mais difícil é prender alguém em flagrante e, quando isso acontece, se está diante de um crime passional. Os crimes de encomenda, as chacinas, que têm a ver diretamente com a política da milícia, são crimes planejados e não há investigação sobre eles.
No caso da Marielle, até hoje não se sabe quem mandou matá-la. Descobriu-se quem executou, mas não se descobriu quem mandou matá-la. Temos uma forma de atuação policial muito segmentada. É um equívoco achar que política de segurança se faz só com policial na rua fazendo papel de “boneco de posto”. Precisamos pensar a política de segurança para além disso.
IHU On-Line - O presidente Jair Bolsonaro tem um discurso muito parecido com o de Witzel. O que aproxima e o que distancia ambos no que diz respeito à elaboração do que é a política de segurança pública?
Ana Paula Mendes de Miranda – O que os aproxima é que nenhum dos dois têm uma política de segurança pública; eles têm medidas midiáticas para produzir cortinas de fumaça. De estruturação de segurança, de formação e capacitação permanente, de accountability [responsabilidade] eles não têm nada. O que eles propõem não pode ser chamado de política de segurança. Ou seja, o que eles propõem não atende, internacionalmente, ao que se entende por segurança pública. A política de segurança é parte de um conjunto de políticas sociais.
Quando as pessoas pegam o caso da Colômbia para discutir como um caso de sucesso – não estou nem dizendo se acho um caso de sucesso ou não – associado com a repressão ao tráfico, vem uma outra política sobre o que fazer com esses garotos, porque eles vivem do dinheiro do tráfico. Mas se acabar com o tráfico de drogas, do que eles vão viver? A economia da favela gira em torno do tráfico de drogas. Tira o tráfico da favela, as pessoas vão viver de quê?
Internacionalmente, quando está se discutindo a repressão ao tráfico de drogas, se está igualmente discutindo e pensando outras estratégias. Lembro que quando fui a Medellín, a convite do governo de lá, o cozinheiro que serviu o jantar para a comitiva era um ex-traficante que havia passado por um processo de acompanhamento para ser reinserido na sociedade. É muito fácil dizer que o grande traficante está na favela: um menino de chinelo, que não tem escolaridade, preto, que muitas vezes nem saiu daquele lugar. Aí eu pergunto: é esse sujeito que movimenta milhões nos mercados internacionais? Me desculpe, mas evidente que não é. Ele é a ponta armada, mas no mundo inteiro o tráfico não é financiado por esse sujeito.
Se estamos falando do enfrentamento do tráfico de drogas – não estou nem dizendo que temos que ser a favor da legalização, porque sei que eles [Bolsonaro e Witzel] não são –, há outras estratégias de repressão que não são tão violentas. Outros países do mundo adotaram políticas de repressão às drogas através da investigação e prisão dos principais líderes, coisa que no Brasil não se faz. Ao contrário, as investigações não dão em nada. Então, o que Bolsonaro e Witzel têm em comum é uma opção pela cortina de fumaça.
IHU On-Line – Também não há um combate às milícias como há um combate às drogas?
Ana Paula Mendes de Miranda – Não há um combate às milícias e a interferência na Polícia Federal mostra isso.
IHU On-Line – Justamente a última polêmica empregada pelo presidente Jair Bolsonaro é sua intenção de intervenção na Polícia Federal. Como a senhora lê esse caso?
Ana Paula Mendes de Miranda – Significa que ele nunca achou que iria ter uma Polícia Federal independente. Pelo contrário, quem quis acreditar nisso, acreditou porque quis. Na medida em que atrapalha os interesses particulares dele, ele interfere. Ou seja, não tem princípios institucionais, porque quando se tem princípios institucionais, se assegura que as instituições tenham o seu funcionamento preservado, seja do ponto de vista financeiro, seja por conta do funcionamento da polícia federal.
A intervenção na Polícia Federal é uma clara indicação de que a PF só vai fazer as coisas que o presidente quiser que ela faça. Isso é uma decisão política, mas não é uma política democrática. Quando eu critico essa política, estou dizendo que ela não é adequada aos princípios democráticos. Isso é um ato partidário de gente que fica dizendo que não tem atos partidários. O Witzel e o presidente fazem uma narrativa de que são independentes, mas não são, como o ministro [Sérgio] Moro também não foi. Um juiz que vira político, como no caso do Moro e do governador, poderia até não ser partidário antes, mas a partir do momento em que fez a opção pela política, passou a ser. Então são. Vamos parar de mentir e de enganar a população e dizer claramente.
IHU On-Line – Como a senhora observa figuras como o governador Witzel, o ministro da Justiça Sérgio Moro e o presidente Bolsonaro no cenário eleitoral para 2022, considerando também a questão da segurança pública no Rio de Janeiro?
Ana Paula Mendes de Miranda – No Rio de Janeiro temos uma outra variável: a presença da Igreja Universal, uma vez que o prefeito do Rio de Janeiro [Marcelo Crivella] é ligado à Universal. O Rio sempre foi uma vitrine e para falar sobre as eleições, eu preciso voltar à primeira eleição para governador que tivemos no Rio quando o Leonel Brizola foi eleito. O tema da segurança pública é tema no Rio desde sempre desde o início das eleições democráticas. Do ponto de vista das eleições democráticas, desde a campanha do Brizola, temos uma tensão no Rio de Janeiro entre tentar fazer as coisas do ponto de vista do respeito aos direitos e um discurso da dureza.
Quando o Brizola nomeou o coronel Nazareth Cerqueira, que foi o primeiro comandante negro da PM e a primeira pessoa a trazer a discussão sobre o policiamento comunitário no país para garantir o direito de ir e vir da população, ele foi acusado de estar negociando com os bandidos. Na época se discutia que não poderia haver a invasão de um domicílio na favela. A polícia não podia empurrar o pé na porta de um barraco e entrar, porque o morador da favela tem tanto direito quanto um morador de classe média. O policial não pode entrar na minha casa sem um mandado de segurança. Então, por que ele pode entrar na casa de um morador da favela? Na época, o que estava em discussão era isso e rapidamente a promessa do Moreira Franco – eleito logo depois – era risível: ele ia acabar com o crime em seis meses.
Eu costumo dizer que para acabar com o crime em seis meses, só com bomba atômica. A polícia não existe para acabar com o crime, e esse é o problema equivocado; a polícia existe para administrar os resultados dos crimes praticados, para minimizar o impacto para a população, para diminuir o sofrimento da população. Essa narrativa de que queremos fazer as coisas garantindo os direitos sobreposta a uma narrativa de que temos de entregar todo o poder para eles, isso é a causa dos males que vivemos hoje.
Admiramos muito alguns modelos, como o de Portugal, mas o país passou por uma reestruturação profunda das polícias ao fim do regime militar e mudou completamente a sua forma de agir. Portugal é considerado o país mais seguro do mundo ocidental, com a polícia menos violenta. Eu morro de rir daquelas pessoas que vivem em Portugal e são contra o comunismo e o socialismo, mas não sabem que foram morar em um país socialista. Portugal passou por uma mudança política da sua intervenção policial.
O que deve nos preocupar quando pensamos o Rio de Janeiro do passado e o Rio de Janeiro de hoje, é que temos mudado de personagens, mas não mudamos a discussão. Os personagens são outros, mas a polarização segue sendo a mesma: direitos humanos, de um lado, como uma coisa negativa, e o uso da força, de outro, como uma coisa positiva. Internacionalmente não existe discussão do uso da força fora da discussão dos direitos humanos. Os países que tomamos como referência utilizam direitos humanos; ninguém atira primeiro e pergunta depois. Há um controle e capacitação dos policiais para assegurar essas práticas. Infelizmente seguimos na mesma discussão sem aprender nada com isso, repetindo o mesmo erro.
Para não ser totalmente pessimista, o que me dá alguma esperança é ver que dentro das instituições nem todas as pessoas concordam com isso. Gostaria de lembrar que quando o governador falou de “atirar na cabecinha”, vários policiais se manifestaram contra essa argumentação do governador, dizendo que não é assim. Então, temos, por outro lado, no Rio de Janeiro, um corpo de profissionais.
Essa talvez seja a principal diferença entre o caso do ônibus 174 e o caso da ponte Rio-Niterói. No caso do 174, o Sandro não foi morto durante a operação policial, mas no percurso. Todo mundo sabe disso. No caso do William, ao ser alvejado naquela situação, a polícia não tinha como saber que ele tinha uma arma de brinquedo. Há quem diga que a polícia deveria ter negociado mais, mas só a perícia poderá dizer e não cabe a nós especularmos sobre isso. Mas tem uma pequena mudança aí: não houve uma morte após o ato; ele não foi morto asfixiado durante o transporte, e isso faz uma diferença para nós.
Precisamos pensar que embora o Rio de Janeiro seja uma vitrine, temos situações muito dramáticas no resto do país que não são visibilizadas. O que tem acontecido em estados do Norte e Nordeste são fenômenos equivalentes e que não estão sendo tratados com a devida gravidade. Com isso, trago um elemento que não apareceu na nossa conversa, que é a questão penitenciária. A maneira como temos achado e tratado essa discussão, como fora do problema de segurança no país, é um equívoco. Achar que o PCC é o responsável por São Paulo ser mais tranquilo é um perigo, porque significa então que temos que votar no PCC e não nos políticos. Achar que eles administram o crime melhor do que a polícia e que eles são os pacificadores da ordem social, é um problema.
Temos que tomar cuidado com análises simplistas e pensar que uma política de segurança é a base da garantia de direitos. Se não vemos isso como claro, vamos seguir repetindo o erro até que isso seja compreendido. Neste momento temos um agravamento porque estamos num momento de destituição de direitos e podemos viver um momento ainda pior nas próximas eleições.