Por: Jonas Jorge da Silva | 13 Agosto 2019
Já passados seis anos daquela irrupção bombástica das manifestações de Junho de 2013, resultado daquele mal-estar geral que parecia vaticinar alguma mudança no cenário político posterior, a sensação que se dá é que uma multidão faminta por direitos pedia o maná do céu e recebeu as pragas do Egito. Não é fácil reler esses anos, como também não é fácil manter a lucidez em tempos de discursos polarizados. Olhar para a realidade em sua complexidade exige muito mais do que ideias bem concatenadas e narrativas que se articulam como na ficção.
Na tentativa de lançar luzes sobre a atual conjuntura, com base em uma avaliação dos desdobramentos das jornadas de Junho de 2013, o quarto encontro do ciclo de debates Contexto brasileiro na dinâmica das Metrópoles, intitulado Irrupções e sequestros de Junho de 2013, contou com a presença de Giuseppe Cocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. A iniciativa deste ciclo é do CEPAT, em parceria com a CVX Regional Sul, Instituto Humanitas Unisinos - IHU e Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, em sintonia com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida - OLMA.
Giuseppe Cocco em sua abordagem reconheceu que as narrativas sobre Junho de 2013 permanecem ainda hoje em disputa entre os diversos grupos da esquerda e da direita. Antes de fazer uma breve recapitulação daqueles dias de efervescência nacional, fez questão de deixar muito claro que, atualmente, sua posição é ultraminoritária entre as muitas análises sobre as Manifestações de Junho de 2013. Contudo, de maneira alguma isso o intimida, pelo contrário, Cocco é um desses intelectuais que buscam chaves de leitura na história presente e não em ilações que dão as costas para as contradições e complexidades dos fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais.
Inclusive, mencionou que seu rompimento definitivo com o Partido dos Trabalhadores se deu justamente em Junho de 2013. Antes, permanecia sustentando um apoio crítico, porque ainda enxergava algumas brechas nas políticas implementadas em anos anteriores, mesmo que carregadas de problemas, como a política de distribuição de renda via Bolsa Família e a valorização do salário mínimo, como também a política de cotas e os programas de acesso ao ensino superior (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI e o Programa Universidade para Todos - PROUNI) ou, então, inicialmente, as políticas ambientais de Marina Silva, quando ministra de Lula.
Crítico ao modus operandi da esquerda, Cocco considera que tais brechas que poderiam fortalecer a cidadania e escancarar, no núcleo das decisões políticas, as contradições com outras opções majoritárias do então governo petista, como, por exemplo, a política de fazer do Brasil um global player, não foram compreendidas e nem aprofundadas em sua dinâmica. Daí, quando veio o mal-estar generalizado em Junho de 2013, ficando evidente a distância entre a demanda por serviços públicos de qualidade e a opção governamental em dispensar recursos em grandes obras e megaeventos, assistiu-se uma esquerda paralisada, amedrontada, com setores do governo muito preocupados com o resultado final de tudo o que se assistia ou literalmente envolvidos no mar da corrupção.
Os anos seguintes seriam cruciais para o desvendamento dos bastidores mais espúrios da política brasileira. Aqui, a crise da representação, que é um fenômeno mundial, ganhou realces em um modelo de coalizão, liderado pelo PT, que se desgastou ao extremo pelas inúmeras revelações de casos de corrupção e desmando com a coisa pública, em nome da chamada governabilidade.
O mal-estar de Junho de 2013 foi então o estopim para a constatação geral, fria e dura, de que o país era governado pelo interesse de grandes empreiteiras e de que a corrupção era legitimada em nome da governabilidade. Essa era a dinâmica estrutural.
A reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, com uma campanha completamente tomada por um marketing eleitoral que praticamente serviu como protótipo para as fake news da extrema direita, muito bem utilizadas para a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, era central para tentar manter as coisas em seu devido lugar. É bom relembrar que a parte mais crítica da esquerda, formada principalmente por pensadores e cidadãos livres das amarras partidárias, logo no início de 2015, começava a chamar a reeleição de Dilma de estelionato eleitoral. E como os processos sociais e políticos são difíceis de mensurar, todos os desdobramentos seguintes só aumentariam o tamanho da crise. A Operação Lava Jato, independente das sinalizações políticas, persistia como uma verdadeira pedra no calçado de tais grupos políticos.
Giuseppe Cocco em sua exposição (Foto: Igor Sulaiman Said Felicio Borck)
Para Cocco, a Operação Lava Jato é um dos frutos positivos de 2013, sendo assim, não é possível negar que a mesma atingiu setores nunca antes alcançados em qualquer investigação de corrupção no país. A questão se Lula é ou não proprietário de um apartamento no Guarujá é menor frente ao que, de fato, a operação desmascarou: todos os brasileiros ficaram reféns de decisões políticas tomadas a partir de conchavos espúrios com grandes empresas, em lugares não republicanos da vida brasileira.
No mais, o que se vê como fenomenologia da crise de representação é uma verdadeira mistura entre aspectos do modo de operar da direita e da esquerda. Cocco relembrou, por exemplo, a figura icônica de Joaquim Levy, que tem em seu currículo funções como secretário do Tesouro Nacional, à época que Antonio Palocci foi ministro da Fazenda, já no primeiro governo de Lula, secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, na gestão de Sérgio Cabral, ministro da Fazenda por aproximadamente um ano, no segundo governo Dilma, e, por último, atuou brevemente como presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, no governo Bolsonaro.
Cocco relembrou a contradição entre o discurso eleitoral de Dilma para o segundo mandato e suas decisões de ajustes anunciadas antes mesmo do início de 2015. Com Temer, isso avançou com a aprovação do teto de gastos e a reforma trabalhista. Por fim, agora, com Bolsonaro, o ciclo continua com as reformas da previdência e tributária, que estão em tramitação no Congresso Nacional. Percebe-se grande sincronia entre os ditos projetos de esquerda e direita nas grandes decisões políticas e econômicas do país nos últimos anos.
Todos esses elementos conduzem ao que se pode chamar de sinais trocados entre a direita e a esquerda brasileiras. Para Cocco, diante desse quadro, em grande medida, para se manter no governo a qualquer custo o grupo dirigente do PT contribuiu para criar uma falsa polarização no país. Em tal contexto, houve um massacre geral de tudo o que pudesse se apresentar como uma alternativa à gestão do PT ou PSDB. Um exemplo disso foi a total desconstrução da figura de Marina Silva, nas eleições de 2014. É próprio de um contexto de polarização destruir tudo o que vai surgindo como alternativa política.
É dessa falta total de princípios, da carência de uma análise mais estrutural da política e da recusa em reconhecer os próprios erros, por mais paradoxal que pareça, que a esquerda ajudou a produzir o fenômeno Bolsonaro. Faltou autocrítica da esquerda, ao mesmo tempo em que sobrou sagacidade por parte do grupo que se articulou em torno de Bolsonaro.
A extrema direita brasileira se aproveitou dessa onda pró-establishment da esquerda capitaneada pelo PT, muito mais preocupada em salvar a si mesma, para se apresentar como alternativa de mudança para o país. Sendo assim, nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro conseguiu se consolidar como ator político capaz de se apresentar como a força da mudança contra a política tradicional, contra os conchavos e coalizões espúrias, contra a corrupção e em favor dos brasileiros.
Quanto à esquerda, ficou presa em seu labirinto. A seis anos de Junho de 2013, ainda procura uma saída. Transformou o combate à corrupção em uma nota só: perseguição política, sem enxergar a dimensão mais ampla desse processo. Sem oxigenar o espectro político, atualmente, a esquerda partidária confabula com autoridades do Judiciário e do Congresso, que antes eram vistos como adversários políticos, em nome do pretenso Estado de Direito, que no Brasil raramente chega aos nossos presídios, lotados de pessoas pobres e negras. Parece que a bandeira do Estado de direito só cabe a uma ínfima parcela privilegiada da população. Diante de tais desacertos, Cocco é muito duro e provocativo: “O PT morreu em 2013, mas continua como figura de zumbi”.
E, infelizmente, hoje, há uma grande parcela dessa esquerda ávida em destronar Bolsonaro, sem se dar conta da responsabilidade dos próprios dirigentes petistas nesse final trágico, com o país enfrentando verdadeiras pragas do Egito. A cegueira permanece tão grande que muitos, não sem razão, denunciam diariamente o autoritarismo de Jair Bolsonaro, mas são incapazes de fazer sequer uma crítica ao desastre de Nicolás Maduro e a crise dos direitos humanos na Venezuela, sem citar a Nicarágua e também aqueles que, em pleno século XXI, se encantam com o capitalismo de vigilância chinês, talvez porque ainda preserve comunista no nome.
Para Giuseppe Cocco, Hugo Chávez era uma espécie de Bolsonaro da esquerda. Novamente, sinais trocados. O viés autoritário de uma grande parcela da esquerda a torna muito próxima da extrema direita. O país precisa sair de uma falsa polarização. É preciso haver espaços de diálogo e de liberdade de pensamento. A crítica, quando bem fundamentada e intencionada, não pode ser anulada com a desqualificação política do proponente. Infelizmente, em momentos de polarização, facilmente as pessoas convertem os críticos em “cúmplices do fascismo” ou então “em comunistas desalmados”. É preciso saudar os que não aceitam entrar nesse jogo.
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Esquerda e direita: sinais trocados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU