09 Agosto 2019
"Os processos de transformação urbana contemporâneos exigem novas formas de participação, que precisam incluir representantes de todos os estratos sociais, sobretudo os mais vulneráveis, que em seu cotidiano experimentam a ineficiência das políticas de bem-estar social e têm de descobrir por sua conta formas de usufruir os direitos elementares que lhes foram negados – como o da moradia", escrevem Philip Yang, fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole URBEM), Marisa Moreira Salles e Tomas Alvim, fundadores do Arq.Futuro, em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 08-08-2019.
Segundo eles, "governos e mercados devem procurar compreender, apoiar e integrar essa descoberta, expressão do empreendedorismo social responsável, em lugar de criminalizá-la. Só assim conseguiremos construir um caminho civilizatório para o conjunto da sociedade brasileira".
A prisão de lideranças dos movimentos de moradia em São Paulo no âmbito das investigações sobre o incêndio e o desmoronamento do edifício Wilton Paes de Almeida deve ser considerada com cautela. É evidente que é necessário coibir a ação de criminosos que se têm imiscuído nos movimentos sociais de São Paulo e do País. Mas é preciso cuidado para não pôr em risco conquistas obtidas com extremo esforço por indivíduos e instituições que enfrentam o déficit habitacional, um dos grandes desafios urbanos de nosso tempo.
As ocupações não são todas iguais. Quem acompanha a trajetória de organizações como a Frente de Luta por Moradia (FLM) ou o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) conhece o extraordinário impacto positivo por elas provocado na vida de grande parcela da população em situação de vulnerabilidade. Nosso objetivo, aqui, é sublinhar essa diferença, para que as ações – legítimas e urgentes – do Ministério Público não ponham sob o mesmo rótulo movimentos pautados por objetivos e métodos antagônicos.
O direito à moradia foi explicitado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e, 52 anos depois, garantido pela Constituição do Brasil, que reconhece ainda o princípio da função social da propriedade. No começo do século 21, o Estatuto das Cidades (2001) procurou também estabelecer diretrizes que assegurassem um lar digno a todos os cidadãos do País.
Princípios, conceitos e leis, porém, não têm sido suficientes para garantir direito tão elementar como a habitação para toda a população. É evidente a qualquer observador que o Estado brasileiro não consegue, por várias razões, equacionar o grave problema da moradia, sobretudo nos centros urbanos. As cidades assistem, assim, à proliferação da população de rua e à expansão de habitações precárias em regiões periféricas, desprovidas de infraestrutura básica.
É nesse contexto que crescem os movimentos de ocupação de prédios ociosos nas regiões centrais, ricas em infraestrutura e atendidas por serviços urbanos elementares. As ocupações atuam em imóveis abandonados, sem uso, e não devem ser confundidas com as invasões, que violam propriedades em uso. O ato da ocupação, assim, diferentemente da invasão, pressupõe que o imóvel-alvo esteja descumprindo sua função social, que é, simplesmente, o efetivo uso público ou privado. Nada mais razoável, pois, no contexto do desabrigo que marca as grandes cidades do País, que propriedades em desuso sejam ocupadas para usos habitacionais. “Se morar é um direito”, diz o grafite na rua, “ocupar é um dever”.
E é aqui que devem ser apontadas as várias formas que os diferentes movimentos de moradia assumem. Por um lado, há os que se mantêm pela extorsão dos moradores, amontoados em espaços precários marcados pelo improviso e pela negligência – como o Wilton Paes de Almeida. Esses grupos devem ser investigados com rigor pelo Estado e punidos pelos crimes que tenham cometido.
A contraface desses movimentos são as ocupações promovidas por organizações sérias. O MSTC, sob a liderança de Carmen Silva, defende o cumprimento de todas as determinações legais nas esferas municipal, estadual e federal, promove a requalificação e a manutenção dos prédios ocupados e faz uma rigorosa gestão dos condomínios – que não se limita à ordem e à organização das instalações, mas se estende a outras esferas de vida dos ocupantes, que observam regras estritas (como a obrigatoriedade de manter as crianças na escola) e dispõem de acesso a atendimento médico e odontológico, cursos de música e inglês e assistência jurídica. As cobranças visam à sustentação financeira de cada um desses organismos e são amplamente aceitas pelos moradores.
Alvos comuns dos movimentos são os prédios privados desocupados, que apresentam dívidas de IPTU de valor superior ao do imóvel, ou edifícios públicos integrantes da gigantesca carteira de imóveis do governo, que não consegue gerir esse patrimônio que pertence a todos nós.
Os movimentos de moradia sérios são os únicos grupos sociais no Brasil que lograram estabelecer uma metodologia consistente de gestão de edifícios abandonados e de comunidades interessadas no seu uso. Descartar esse conhecimento pela via da perseguição ou da criminalização de todos os movimentos, indiscriminadamente, seria um grande retrocesso. No Brasil, ao contrário de outros países, não assistimos à emergência espontânea, via mercado ou filantropia, de empresas sociais com tal capacidade de gestão, e tampouco à consolidação de um Estado de bem-estar social. Daí a importância de movimentos como o MSTC no preenchimento dessa lacuna na cadeia de valor e de conhecimento da produção habitacional como um todo.
O MSTC é responsável por ocupações particularmente bem-sucedidas, como a Ocupação Nove de Julho, num antigo edifício do INSS, abandonado em 1976, e a do antigo Hotel Cambridge, que se tornou uma referência na história dos movimentos sociais de moradia no País e foi retratada no longa-metragem Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé.
Este é o grande legado do MSTC: a criação de uma práxis, de um conjunto de experiências que abrem diálogos com o poder público e com a população urbana e podem ser replicadas em outras cidades do País.
Os processos de transformação urbana contemporâneos exigem novas formas de participação, que precisam incluir representantes de todos os estratos sociais, sobretudo os mais vulneráveis, que em seu cotidiano experimentam a ineficiência das políticas de bem-estar social e têm de descobrir por sua conta formas de usufruir os direitos elementares que lhes foram negados – como o da moradia.
Governos e mercados devem procurar compreender, apoiar e integrar essa descoberta, expressão do empreendedorismo social responsável, em lugar de criminalizá-la. Só assim conseguiremos construir um caminho civilizatório para o conjunto da sociedade brasileira.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Luta por moradia: por que criminalizar a cidadania? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU