30 Julho 2019
"A falsa notícia passada como verdade, ao ponto de cunhar o paradoxal sintagma "pós-verdade", na verdade tem um ilustre fundador. Trata-se nada menos que a serpente tentadora da narrativa prototípica do Gênesis bíblico, um réptil certamente não registrado na taxonomia zoológica", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 28-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a matriz teórica da falsificação comunicativa pode ser identificada em uma tese reiterada nos últimos tempos: não existem fatos, apenas interpretações".
"O que poderia ser um mundo ou mesmo simplesmente uma democracia em que se aceitasse a regra de que não existem fatos, apenas interpretações?" - pergunta o cardeal, concluindo: "Especialmente se estas forem o fruto de uma manobra enganadora ramificada ao longo das artérias virtuais da rede informática?"
Falsidade. A serpente tentadora do Gênesis representa o arquétipo de uma comunicação doentia que, mesmo assim, se espalha e se credita cobrindo-se com as cores da verdade. O zelo anglômano já impôs a expressão fake news. Na realidade, quando se folheia um dicionário, o substantivo e verbo fake cobrem os nossos conceitos de "falso, engano, fraude, farsa, falsificação, truque" e assim por diante (a única exceção é no americanismo musical to fake it que se refere a "improvisar um solo" no jazz). Pois bem, a falsa notícia passada como verdade, ao ponto de cunhar o paradoxal sintagma "pós-verdade", na verdade tem um ilustre fundador. Trata-se nada menos que a serpente tentadora da narrativa prototípica do Gênesis bíblico, um réptil certamente não registrado na taxonomia zoológica.
É, de fato, um símbolo que originalmente se referia à idolatria dos cananeus, o povo indígena da terra bíblica que praticava os cultos da sexualidade, vistos como expressão do divino que se manifesta na fecundidade humana e animal e na fertilidade agrícola. A serpente é, de fato, um símbolo fálico; de fato, no antigo Oriente Próximo, era um indicador da vida perene, especialmente com suas mudanças de pele. Também era uma representação do caos: a deusa mesopotâmica negativa Tiamat era representada como uma serpente gigantesca.
A própria Bíblia, no entanto, em um texto grego tardio, o Livro da Sabedoria, percebe por trás deste animal simbólico o Tentador por excelência, Satanás: "É por inveja do demônio que a morte entrou no mundo e fazem dela triste experiência aqueles que lhe pertencem" (2,24). No Apocalipse, a terrível "antiga serpente", o dragão, é "Satanás, o diabo" (20.2). Ele é definido pelo Gênesis (3,1) como "astuto", um adjetivo sapiencial que evoca a capacidade de elaborar um projeto, expresso precisamente no recurso de um hábil envolvimento enganoso da mulher e do homem.
A sedução ocorre à sombra de uma árvore desconhecida à classificação botânica de Lineu, sendo um vegetal "metafísico" e, portanto, simbólico. É "a árvore do conhecimento do bem e do mal", na prática uma representação metafórica da moral: o "conhecimento" na Bíblia não é apenas intelectual, mas também volitivo, afetivo, efetivo, é um ato global de consciência, enquanto "bem e mal" são os dois polos extremos dentro dos quais toda a moralidade está encerrada. Essa árvore simbólica é dada por Deus que a plantou no terreno da história, para que os valores morais nos precedam e excedam, sejam transcendentes e objetivos. O homem, ao contrário, violando o preceito divino que propõe e impõe a moral, quer - com a liberdade com que foi dotado por Deus - decidir por si mesmo o bem e o mal, recusando-se a recebê-los como codificados por Deus. Escolhe, portanto, ser ele mesmo o árbitro da ética, rejeitando qualquer definição superior. Nisto, ele é estimulado precisamente pela fake news que lhe passa a serpente acima evocada, que insinua odiosamente que Deus proíbe tudo, "toda árvore no jardim" do Éden (3,1) e não apenas a do "conhecimento do bem e do mal".
Mas o engano continua com outra indicação maliciosa que tem uma alma de verdade, mas que é apresentada de maneira hostil: "Deus sabe que ... seus olhos se abrirão e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (3,5). Ora, é verdade que decidir por si próprio o que é bem e mal é um ato divino e, portanto, o "pecado original" é um ato de hybris, como diriam também os gregos, é substituir-se a Deus, arrogando-se sua sabedoria e sua autoridade, o senhorio divino sobre a moral. Mas o que o Tentador esconde é que este é um ato de rebelião com consequências catastróficas porque a humanidade, com sua escolha de minar a ética, cria aquela avalanche de maldade, de violência e de injustiça que o capítulo 3 do Gênesis descreverá em suas linhas sucessivas.
Agora, porém, a sedução da fake news diabólica gerou seu efeito fascinante: “Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também." (3,6). A falsidade persistente e bem elaborada prolifera e se espalha (basta pensar na Internet de hoje) e já se regenera como uma verdade pseudo-objetiva, aparentemente sólida e convincente, na realidade deletéria e devastadora. Na prática, no relato do Gênesis, como dissemos, temos o arquétipo de uma comunicação doentia que, de qualquer modo, se espalha cobrindo-se com as cores da verdade. É por isso que na literatura bíblica sapiencial pode-se identificar um fio preto sistemático que repetidamente condena "a boca cheia de engano", sinal distintivo do poderoso e do maléfico.
A partir daquela fonte desce a genealogia infinita das falsidades, muitas vezes cristalizadas em textos escritos, como agora acontece de forma exponencial nas páginas eletrônicas das mídias sociais. Apenas para citar alguns casos emblemáticos religiosos, pensemos na correspondência apócrifa entre São Paulo e Sêneca, capaz de tornar o filósofo latino um filo-cristão e até um convertido à nova fé: na realidade, as cartas haviam sido elaboradas no século IV.
E o que dizer sobre a famosa "Doação de Constantino", um texto que enfureceu Dante: " Constantino! Ah! que males derivaram, Não do batismo teu, mas da riqueza. Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram!" ou seja, o papa Silvestre I (Inferno XIX, 115-117)? Na realidade, essa ideia de teocracia papal foi uma inteligente criação inventada pela Cúria Romana na segunda metade do século VIII para dar aval ao poder temporal dos pontífices.
Cada um poderia estender essa lista, puxando-a também para a esfera política, por exemplo, com os infames Protocolos dos sábios de Sião ou com a “farsa” das armas de destruição em massa de Saddam Hussein, inventada por George Bush para justificar a primeira guerra do Golfo. Aliás, a antiga metáfora da "farsa” (em italiano “búfala") nasce da expressão "puxar alguém pelo nariz como uma búfala", ou seja, arrastar alguém para onde se quiser, puxando-o pelo anel preso ao nariz, então usado em búfalos e bois. Caso se queira, a matriz teórica da falsificação comunicativa pode ser identificada em uma tese reiterada nos últimos tempos: não existem fatos, apenas interpretações.
O filósofo Maurizio Ferraris em seu ensaio Postverità e altri enigmi (Pós-verdade e outros enigmas, em tradução livre, Il Mulino 2017) partia justamente da asserção acima apresentada e comentava: “Frase poderosa e promissora porque oferece em prêmio a mais bela das ilusões: a de estar sempre certo, independentemente de qualquer desmentido”. Essa deriva tem seu protótipo ideal precisamente na interpretação falsificada do preceito divino pela serpente e se espalha para inumeráveis pós-verdades que mesmo os políticos mais poderosos não hesitam em desfraldar como instrumento de governo. Mas no final vale uma pergunta que o próprio Ferraris deixa ao leitor: "O que poderia ser um mundo ou mesmo simplesmente uma democracia em que se aceitasse a regra de que não existem fatos, apenas interpretações?" Especialmente se estas forem o fruto de uma manobra enganadora ramificada ao longo das artérias virtuais da rede informática?
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Diabólicas “fake news”. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU