28 Julho 2019
No Brasil, além de sustentar os parentes, os aposentados cuidam das crianças e de outros idosos. Como fica depois da reforma?
A reportagem é de Thais Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 28-07-2019.
Depois de quase 40 anos no vaivém entre conchas, pratos e caldeirões, a ex-merendeira Geralda da Silva Costa, 79 anos, ganhou uma missão tão laboriosa quanto aquela que cumpria em uma escola estadual no Jardim das Flores, bairro pobre no extremo sul de São Paulo. No mesmo ano em que deu entrada na papelada da aposentadoria, em 2000, ela assumiu a criação de uma neta desamparada, fruto do casamento de um dos filhos. A mãe biológica de Iara, conta a avó, tem problemas psíquicos graves e era incapaz de cuidar de uma criança. “Se não fosse ela, sei que minha vida seria muito pior. Nem sei se estaria viva”, lembra a menina, hoje com 20 anos completos e grávida de nove meses.
Apesar de crescidos, os filhos continuam a orbitar em torno de dona Geralda. Sete dos seus nove rebentos moram com ela em um terreno de 25 de metros de comprimento por 10 de largura, adquirido pela família ainda nos anos 60 e convertido em um condomínio improvisado de quatro pavimentos. A aposentada acompanha de perto o crescimento da terceira e da quarta geração da família. Também vivem lá 13 netos e 6 bisnetos. Sete, aliás, se contabilizado o bebê na barriga de Iara.
Sua aposentadoria e a do marido de 86 anos, que somam dois salários mínimos, seguram as pontas do orçamento familiar em um mercado de trabalho cada vez mais incerto. Todos trabalham, mas a renda fixa do casal é garantia. Com ela por perto, os netos não precisam ir para a creche. “Tenho um filho segurança, que chega tarde. Outro que às vezes vira a noite no trabalho. Só eu mesma sei o horário de quem chega e de quem sai”, relata a aposentada. Outra filha, de 54 anos, que vive com ela, em tratamento para artrite e problemas na coluna, briga na Justiça para receber o auxílio-doença. Enquanto a decisão não vem, o sustento sai do salário do neto, cobrador de ônibus, e da pensão que o garoto recebe desde o falecimento do pai. Os Silva Costa contam ainda com o suporte de um filho que conseguiu se aposentar antes dos 60 anos por trabalhar com carteira assinada desde a adolescência.
O mito do idoso que se torna um fardo para a família no fim da vida está longe de refletir a realidade brasileira. Desde os anos 1990, o número de famílias chefiadas por maiores de 60 anos só cresce. Com o aumento da expectativa de vida, os idosos brasileiros passaram a viver melhor, trabalhar mais e manter a autonomia pessoal e financeira. Na virada deste século, o IBGE contou 9,9 milhões de idosos provedores, aumento de 40% em relação a 1991. Foram 12,2 milhões em 2006, total que em 2015 chegou a 17 milhões. Em tempos de informalidade e desemprego, retomam a responsabilidade pelo sustento da família com a renda garantida das aposentadorias e pensões.
Segundo um levantamento da LCA Consultores com base em dados oficiais, o número de domicílios em que esses benefícios respondem por mais de 75% da renda cresceu 12% entre 2016 e o ano seguinte, em grande parte por causa do desemprego e do aumento da informalidade. Como o IBGE postergou a divulgação dos dados de renda de todas as fontes do ano de 2018 para algum momento deste segundo semestre, trata-se da estimativa mais recente. “Acredito que eles estejam revisando os dados, inclusive”, avalia o economista Cosmo Donato, responsável pelo estudo. Uma pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito confirma essa tendência: 9 em cada 10 idosos contribuem com o orçamento da casa. Desses, quatro são os principais responsáveis por pagar as contas e colocar o pão na mesa.
No Itaim Paulista, a 70 quilômetros do lar da família de dona Geralda, o aposentado José Batista de Araújo, de 71 anos, também engrossa as estatísticas. “Pago o colégio do neto, dentista, alimentação, roupas…”, enumera. Araújo afirma gastar cerca de 2,5 mil reais por mês com as despesas da família. E completa: “Também ajudo a minha filha de 40 anos, que está desempregada faz tempo”.
Como Araújo, os idosos muitas vezes são os únicos em condições de amparar os demais afetiva e economicamente. São as chamadas famílias intergeracionais, nas quais netos, filhos e avós convivem sob um mesmo teto. A aprovação da reforma da Previdência tende a mudar drasticamente esse cenário. Agora, além da idade mínima, quem quiser pleitear a aposentadoria terá de comprovar ao menos 15 anos de contribuição. O economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho, diz que a reforma vai aumentar o contingente de inaposentáveis. “Quem recebe um quarto de salário mínimo pode pleitear o BPC, mas tem muita gente que ganha um pouco mais que isso.” Segundo ele, as regras aprovadas até agora não levam em conta a realidade demográfica brasileira. Em média, o trabalhador brasileiro do sexo masculino contribui 5 meses a cada 12 trabalhados.
Goste-se ou não, as pensões, benefícios e aposentadorias são essenciais para combater a desigualdade no Brasil. Sem a transferência previdenciária, 46% dos brasileiros viveriam abaixo da linha de pobreza, segundo um estudo da Secretaria de Previdência publicado em 2017. Com ela, o porcentual fica em 26%. O repasse também é essencial para a economia das cidades. De acordo com um estudo da Associação dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), o volume pago pelo INSS supera as transferências da União em 73% dos municípios. Essa taxa é ainda mais expressiva no Nordeste, que viu crescer a renda nos rincões com os programas sociais e outras políticas incrementadas durante os governos petistas. Com a crise e os cortes disfarçados de “pente-fino”, a procura pela seguridade social voltou a crescer. No Recife, a Secretaria de Assistência Social tem notado um aumento na busca por benefícios como o Bolsa Família, o BPC e o auxílio-doença.
Outro ponto de atrito é o corte na pensão por morte, que afeta principalmente as mulheres. Conforme as regras aprovadas até agora, o benefício integral será substituído pela soma da metade do valor da aposentadoria e uma cota suplementar de 10% por dependente. Além de viver mais do que os homens, as mulheres são minoria entre quem se casa de novo depois da viuvez e costumam assumir o cuidado dos netos quando os filhos se separam, incluído o apoio financeiro.
Viúvas, ex-cônjuges, filhas, irmãs e mães são 83% daqueles que recebem pensão por morte do INSS, aponta o Anuário Estatístico da Previdência. Destas, 7 em cada 10 têm 60 anos ou mais. Para lidar com essa realidade, a Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos pretende sugerir ao Senado uma emenda que garanta às pensionistas o recebimento de valores até o limite do teto do INSS. O presidente da entidade, Warley Martins, explica: “Eu e minha mulher ganhamos 2 mil reais cada. Pelas novas regras, se eu morrer, ela recebe só a metade do meu benefício. Queremos garantir essa segurança às viúvas”.
Não quer dizer, porém, que os idosos estejam confortáveis com essa demanda. Muitas vezes, os problemas de saúde e o sustento dos filhos e netos viraram sinônimo de endividamento. Ex-funcionário dos Correios, o mineiro Adilson Rodrigues, de 66 anos, compromete mais da metade da aposentadoria de 3 mil reais com empréstimos. Rodrigues viu-se obrigado a vender o carro para manter um filho de 18 anos desempregado e uma neta também de 18 anos, além de ajudar a nora e cuidar da sogra quase centenária que vive na casa da família, em Belo Horizonte. “Faz três anos que a situação está ruim, mas piorou de um ano para cá. Todos os meus colegas estão na mesma situação, enrolados com o banco.” No estado, um em cada 3 idosos tomaram empréstimos consignados, segundo dados do INSS divulgados pelo jornal O Tempo no fim do ano passado. A dívida desses aposentados chega a impressionantes 74 bilhões de reais. O cenário nacional é parecido: dos quase 28 milhões de beneficiários da Previdência, ao menos 75% deixam uma parte da aposentadoria com uma instituição privada.
A inadimplência dos mais velhos é a que mais cresce no País. Disputados pelos bancos graças ao acordo com o INSS que garante desconto direto na folha, os idosos assumem os débitos gerados pela penúria financeira da família. Essa guerra abre espaço para práticas abusivas. A Secretaria Nacional do Consumidor acaba de abrir investigações contra dez bancos por supostos abusos. Há até casos de empréstimos contratados por analfabetos.
Desde 2014, o Brasil viu evaporarem 4 milhões de empregos com carteira assinada. O efeito colateral foi a explosão da informalidade e do porcentual de subocupados, aqueles que trabalham menos do que gostariam. Os netos de dona Geralda experimentam essa realidade. Natalia Costa Santos, de 23 anos, faz bicos como manicure desde que perdeu o emprego no setor administrativo, ironicamente, em um posto de atendimento da Secretaria Estadual do Emprego. “Dos seis netos maiores, dois estão desempregados, mas os outros trabalham em mercado, loja… ganham por hora”, lista.
Daqui em diante, em um futuro no qual o emprego formal será cada vez mais incerto – a FGV estima que a inteligência artificial tende a aumentar o desemprego em até 4 pontos porcentuais na próxima década e meia –, a figura dos avós como esteio emocional e financeiro pode dar lugar a um cenário no qual os maiores de 60 anos disputarão empregos cada vez mais precários com os próprios netos. “Os idosos têm a renda, conseguem manter a família, mas também ficam doentes. Quem vai cuidar deles?”, pergunta Fagnani.
Tudo indica que essa responsabilidade será de outros idosos. No Brasil, a maioria dos cuidadores de doentes ou dependentes também tem mais de 60 anos, em geral mulheres da mesma família que não recebem pelo trabalho. Como os cuidadores formais são caros, a maior parte das famílias recorre a algum parente. Seriam estes os “privilegiados” que a reforma da Previdência diz combater?
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Reforma da Previdência ameaça famílias sustentadas por aposentados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU