24 Junho 2019
Um documento divulgado na última segunda-feira, 17, pela Igreja oficializou algo que já se comentava tanto no cardinalato quanto entre vaticanistas: existe uma possibilidade clara de que homens casados "de caráter comprovado" sejam, em breve, ordenados padres pelo catolicismo.
A reportagem é de Edison Veiga De Bled, publicada por BBC News Brasil, 23-10-2019.
O assunto será posto em discussão no Sínodo dos Bispos para a Amazônia, evento que ocorre na Santa Sé em outubro e terá a floresta brasileira como tema principal. O documento divulgado é o instrumento de trabalho para o encontro e a inclusão da questão dos padres casados foi, de acordo com o Vaticano, em função de o assunto ter surgido de forma recorrente nos questionários aplicados ao episcopado da região.
Um dos responsáveis pela organização do Sínodo, o bispo italiano Fabio Fabene afirmou à imprensa internacional que os pedidos de consideração da questão foram "muito difundidos" entre os participantes da pesquisa preliminar. Segundo a apuração do Vaticano, há muitas comunidades isoladas na Amazônia que passam meses sem ter acesso a uma missa. No rito católico apostólico romano, sacramentos como a celebração eucarística e a confissão só podem ser ministrados por sacerdotes.
A ideia seria suprir a falta de padres com a ordenação de homens considerados viri probati, expressão latina para designar aqueles tidos como exemplos de retidão moral na sociedade. Seriam idosos, casados e com participação já consagrada no dia a dia de suas comunidades. E, no caso da Amazônia, preferencialmente indígenas.
"Embora afirmando que o celibato é um presente para a Igreja, tem havido pedidos de que, para as áreas mais remotas da região, a Igreja estude a possibilidade de conferir ordenação sacerdotal a homens idosos, de preferência membros indígenas, respeitados e aceitos em suas comunidades", diz trecho do documento.
Na cúpula da Igreja, uma certeza: se o projeto for adiante, pode ser o rompimento de séculos de uma tradição em que o celibato se tornou fundamental para o exercício do sacerdócio. Porque a ideia de liberar padres casados na Amazônia seria um teste que, uma vez bem-sucedido, tende a ser replicado, primeiramente em regiões remotas, para suprir a falta de padres no mundo.
Dados divulgados no ano passado pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mostram que o País tem 27,3 mil padres - uma média de um sacerdote católico para cada 7.802 habitantes.
Considerando o peso que o catolicismo tem no Brasil, é uma média baixa. Na Itália há um clérigo para cada mil habitantes.
E esses 27,3 mil padres não estão bem distribuídos, considerando a população brasileira. Enquanto no Rio Grande do Sul há um padre para cada 5,8 mil habitantes, Estados do Norte e do Nordeste têm carência de sacerdotes. Maranhão tem a mais baixa proporção, com um sacerdote para cada 13,7 mil pessoas. Pará conta com um religioso para cada 13,2 mil habitantes, enquanto Amazonas e Roraima têm um para cada 9,7 mil.
Se por um lado a medida pode resolver um problema histórico da Igreja e, ao mesmo tempo, solucionar a carência de sacerdotes em regiões remotas, por outro a mudança já desperta críticas e preocupações no setor mais conservador da cúpula do Vaticano, justamente a oposição ao papa Francisco.
De acordo com estudos do vaticanista italiano Marco Politi, a oposição a Francisco hoje engloba 30% do episcopado mundial. Os opositores discordam do perfil progressista do atual sumo pontífice, que não raras vezes aborda questões políticas, ambientais e sociais. E também propõe aberturas em termos de participação nas comunidades, como já ocorreu com uma maior aceitação aos divorciados em segunda união, como se reflete nas palavras de acolhimento aos homossexuais e como agora pode ocorrer com a questão dos padres casados.
No livro La Solitudine di Francesco, Politi apresenta um cenário em que o papa, politicamente, precisa enfrentar o histórico conservadorismo da Igreja - e fora dela.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que, se levada adiante, a aprovação da ordenação sacerdotal de homens casados pode aumentar ainda mais esse grupo de opositores.
Consultor do Vaticano, o padre jesuíta americano James Martin pondera que alguns grupos criticam qualquer gesto do atual papa. "Há algumas pessoas - cardeais, bispos, padres e leigos - que se opõem a Francisco em quase todos os assuntos. Parecem discordar dele em tudo o que diz e faz", afirma. "Portanto, ele não vai agradar a esse grupo."
"No geral, aqueles que se opõem à questão dos padres casados o fazem por causa da tradição", acredita ele.
"Os críticos conservadores não vão gostar disso", afirma o vaticanista britânico Austen Ivereigh, autor de The Great Reformer: Francis and The Making of a Radical Pope (O grande reformista: Francisco e a criação do papa radical, em tradução livre). "Mas se houver um consenso no sínodo, certamente o papa vai permitir (a ordenação de padres casados em contextos específicos)."
"Contudo, como a Igreja Católica já tem padres casados, como os de rito oriental, eles (os críticos) dificilmente poderão argumentar que se trata de uma questão doutrinal", completa o britânico.
Para o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, a questão do celibato poderia ser atenuada com algumas adaptações. "Há bispos contrários porque temem um clero casado", acredita ele. "Mas seria possível com algumas mudanças quanto aos bens, aposentadoria e direitos da esposa e filhos."
"Não tenho certeza se isso (a flexibilização do celibato clerical) vai acontecer ou não", comenta Martin. "Mas certamente há uma grande necessidade de mais padres, especialmente para fornecer a Eucaristia a pessoas em áreas remotas. A ideia de ordenar homens casados tem sido amplamente discutida por muitos bispos."
Os primeiros sacerdotes católicos não eram celibatários. A começar por Pedro, apóstolo considerado o primeiro papa: ele era casado.
Os católicos de rito oriental - os ortodoxos - até hoje admitem clérigos casados.
O celibato começou a ser considerado dentro do catolicismo a partir dos séculos 3 e 4, com recomendações para que sacerdotes não constituíssem famílias. Desde então, diversas propostas internas recomendavam abstenção sexual de religiosos. Nos dois concílios de Latrão, no século 12, o celibato se tornou norma. Concílios posteriores - em Latrão, em 1215; e em Trento, em 1545 e 1563 - ratificaram a medida.
Ao longo do século 20, o tema seguiu sendo defendido. Papa Pio XII (1876-1958) defendeu o celibato na encíclica Sacra Virginitas. No Concílio Vaticano II, em 1965, dois documentos trataram do assunto.
Papa Paulo VI (1897-1978) escreveu sobre a questão em De Sacerdotio Ministeriali. João Paulo II (1920-2005) reiteradamente se manifestou em defesa do celibato. "Fruto de equívoco - se não mesmo de má-fé - é a opinião (...) de que o celibato sacerdotal na Igreja Católica é apenas uma instituição imposta por lei àqueles que recebem o sacramento da Ordem", pontuou ele, em carta de 1979. "Ora todos sabemos que não é assim."
"Os sacerdotes, religiosos e religiosas, com o voto de castidade no celibato, não se consagram ao individualismo ou a uma vida isolada, mas sim prometem solenemente pôr totalmente e sem reservas ao serviço do Reino de Deus as relações intensas das quais são capazes", afirmou, em uma missa, seu sucessor Bento XVI.
Papa Francisco também se declarou recentemente a favor do celibato. Em coletiva de imprensa realizada em janeiro, ele lembrou com respeito da possibilidade que existe no catolicismo do rito oriental mas enfatizou a importância da norma da Igreja Católica Apostólica Romana. "Quanto ao rito latino, lembro-me de uma frase de São Paulo VI (o papa Paulo VI): 'prefiro dar a vida antes de mudar a lei do celibato'. Isso me veio em mente e quero afirmá-lo porque é uma frase corajosa", disse Francisco. "Pessoalmente, penso que o celibato seja um dom para a Igreja e não concordo em permitir o celibato opcional. Não."
"A proposta não é permitir que padres se casem ou que ex-padres que são casados voltem a exercitar o sacerdócio", pontua Austen Ivereigh. "Mas, sim, ordenar homens mais velhos e casados que estejam presentes em suas comunidades. Ele (o papa) deixou claro que não mudará a regra do celibato para o sacerdócio em geral, então isso só se aplicaria em lugares remotos, onde é difícil para as pessoas terem acesso aos sacramentos."
"Permaneceria alguma possibilidade nos lugares mais distantes, penso nas ilhas do Pacífico, mas é algo em que pensar quando há necessidade pastoral", afirmou o sumo pontífice, em janeiro. "O pastor deve pensar nos fiéis."
Essa carência em lugares remotos, portanto, deve ser a justificativa. "Já existem padres católicos casados nas igrejas de rito oriental. É só ampliar para o rito latino por urgência", argumenta Altemeyer.
De acordo com o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, "a questão pastoral é a recolocação do papel do leigo na vida da comunidade". Por isso essa prerrogativa considerada em lugares remotos.
"De certa forma, para essas realidade onde a presença do sacerdote tradicional tem se mostrado inviável, surge a tentativa de aumentar a responsabilidade do leigo na vida sacramental", explica Ribeiro Neto. "Temos que considerar que os neopentecostais mostraram a eficiência pastoral de um grande número de agentes, com pouca e rápida formação, em detrimento do modelo católico, que acaba tendo poucos agentes, com uma formação aprofundada mas demorada."
"Existe uma antiga batalha de ex-padres que pedem o fim do celibato eclesial. Francisco não concorda com essa reivindicação", pondera o sociólogo. "Aliás, diante dos escândalos de pedofilia, a tendência da Igreja é a de ser mais estrita na escolha de 'vocacionados' e o fim do celibato tende a aparecer como um laxismo que aumentaria os riscos de termos padres mal preparados e humanamente inadequados para a função."
"Nesse sentido, o debate no sínodo, sobre a ordenação de homens casados, tem de ser desvinculado da bandeira por casamento de homens ordenados", resume ele.
Mas como o celibato não foi algo imposto desde os primórdios da Igreja, o argumento de que é uma regra que pode ser derrubada também pode pegar carona nessa urgência. "Durante muitos séculos na igreja, padres foram casados. E ainda hoje temos alguns padres casados nos 'ritos orientais'", pontua o padre James Martin. "E o próprio São Pedro era casado. Sabemos isso porque os evangelhos mencionam sua sogra."
"Então", provoca ele, "se você tem algo contra padres casados, pergunte a São Pedro o que ele pensa."
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como discussão sobre o celibato na Amazônia deve ampliar oposição ao papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU