19 Junho 2019
"O digital e a web serão um novo "lugar" de guerra, como já o são a água, a terra e o ar? O terrorismo, as operações militares sem declarações de guerra, as intervenções em países "terceiros" considerados perigosos, são situações de guerra que fogem a qualquer regulação legal? A ingerência humanitária com que razões é produzida?", questiona Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 18-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A tudo isto acrescenta-se e alia-se a criação de novas armas, em particular os sistemas de armas dotados de autonomia. Eles são chamados LAWS: sistema de armas letais autônomas. O que os caracteriza é "a ruptura, implícita ou explícita, intencional e constitutivamente estabelecida com um sujeito (em sentido jurídico e moral) consciente, voluntário e responsável".
Sistemas de armas, isto é, capazes de agir sem referência a um operador humano. É a nova fronteira da pesquisa militar que exige uma renovada reflexão teológica e pastoral.
A explicação é dada pela Revue d'étique e de Théologie morale (RETM) no n. 299 (setembro de 2018). Dominique Lambert escreve sobre o tema da robótica aplicada às armas (pp. 31-46). Sistemas de armas guiados por operadores remotos, como drones aéreos e robôs armados com tarefas de observação, já estão em operação. Em um esforço para não expor o "combatente - homem", se opta por robôs que possam operar sem a condução de um agente humano, por sistemas de armas capazes de identificar e analisar as ameaças, colocando em prática ferramentas adequadas para combatê-las.
As teleoperações militares e a autonomização das armas ao mesmo tempo que são capazes de enfrentar as formas anômalas dos conflitos como as intrusões ilegais em outros países, estão contextualmente modificando a percepção da natureza da guerra e reduzem as barreiras que impediam o início, tais como o medo da perda de soldados ou a censura internacional. Isto não impede o registo das vítimas colocadas intencionalmente próximas às instalações "sensíveis" ou da resposta terrorista aos países de origem do ataque.
A questão ética gira em torno do nível de responsabilidade humana, o papel do operador que deveria intervir quando o robô detecta a ameaça. Mesmo no caso de robôs com controle remoto capazes de decisões autônomas, permanece o espaço da responsabilidade. São os sistemas de armas preditivos e supervisionados. Mas se pode ir mais longe.
"É possível imaginar máquinas não preditivas por causa da capacidade de autoprogramação (a máquina poderia eventualmente estabelecer para si novas metas e adotar comportamentos não previstos) e de apreensão total ou parcialmente sem supervisão (a máquina aprenderia novos comportamentos sem critérios discriminantes impostos pelo operador humano). Nesse caso, teríamos que lidar com máquinas totalmente autônomas no sentido etimológico, capazes de possuir e determinar sua própria lei de funcionamento". O homem estaria totalmente fora disso e os sistemas de armas se tornariam autônomos.
Os sistemas de armas equipados com habilidades letais, que constitutivamente e intencionalmente não têm ligações reais com um sujeito humano em uma operação de guerra, levantam enormes problemas legais e morais. Como aquele de ter que reconhecer alguma personalidade legal para o robô, dotando-o com um sistema lógico que também pode responder a questões morais. Mas um juízo prudencial não se concilia com nenhum algoritmo.
A máquina não pode inventar novas regras, enquanto o humano pode ir além da regra, permitindo salvar seu espírito. Esses sistemas de armas não seriam capazes de interiorizar a transgressão, como o perdão e a reconciliação. Pode-se concluir "que não é possível construir sistemas autônomos de armas capazes de satisfazer corretamente as exigências do direito internacional humanitário: o princípio da não-discriminação entre combatentes e não-combatentes, o princípio da proporcionalidade na resposta a um ataque e o princípio da precaução.
A aplicação desses princípios requer uma fina interpretação das situações em contextos complexos e mutáveis (como, por exemplo, a guerra na cidade), difíceis de codificar em algoritmos. Mas mesmo que essa codificação pudesse ser realizada, a máquina permaneceria tal, já que não poderia ser dotada da atitude de "repensar" e da "transgressão construtiva e criativa" de que falamos.
Posição compartilhada pelo Observador Permanente da Santa Sé junto à ONU, Mons. Ivan Jurković, em um discurso em Genebra em 9 de abril de 2018: "Um sistema de armas autônomo nunca pode ser um sujeito moralmente responsável. A capacidade exclusivamente humana de juízo moral e tomada de decisão ética é mais do que uma complexa série de algoritmos e tal capacidade não pode ser substituída ou programada em uma máquina. A aplicação de regras ou princípios requer uma compreensão de contextos e situações que vão muito além das capacidades dos algoritmos. Por exemplo, caracterizar um fato ou aplicar uma lei geral a um caso particular requer, por parte de um juiz, algo mais do que a simples aplicação de uma lógica consequencial, é algo que excede a pura manipulação de regras formais e codificadas.
A este respeito, um sistema de armas autônomo poderia considerar normais em sentido estatístico - e, portanto, aceitáveis - comportamentos que o direito internacional proíbe, ou que - embora não explicitamente delineados - sejam ainda proibidos pelos ditames da moralidade e da consciência pública” (cf. SettimnaNews). Em pelo menos dois casos, durante a crise dos mísseis em Cuba (1961-1962) e em 1983, o início instrumental do confronto com armas nucleares foi impedido devido à decisão de um único adido militar (Vassili Askhipov e Stanislav Petrov).
As novas pesquisas sobre sistemas de armas induzem algumas dissimulações sérias: o fato, por exemplo, de pensar em uma guerra sem mortes ou de imaginar eventos bélicos sem graves consequências. Por isso, é importante recordar a centralidade da cadeia de responsabilidade e o papel do ator humano.
As fronteiras da pesquisa bélica nos permitem calibrar novamente e diversamente os critérios clássicos da "guerra justa". São eles: justa causa (legítima defesa ou remoção da tirania); último recurso, depois de ter tentado todas as possibilidades de diálogo; proporcionalidade do dano infligido; decisão de uma autoridade legítima; esperança de sucesso. Durante o conflito, o direito pede uma distinção entre um ato de guerra contra os combatentes e crime de guerra contra civis. Mas tanto o ius ad bellum (direito à guerra) quanto o ius in bello (direito durante a guerra) foram levados a profundas mudanças pelas experiências do século XX.
Basta pensar nos bombardeios “de tapete” de cidades ou no uso de armas atômicas. Do lado positivo, o pedido de uma autoridade mundial que, por exemplo, os papas não reconheceram na ocasião das guerras do Golfo, condenando-os sem incertezas. Novamente, a desaprovação do uso de armas nucleares, mas também a insuficiência da "dissuasão nuclear" e a crescente desconfiança sobre a construção e posse das próprias armas nucleares.
O ius in bello foi questionado pelos guerrilheiros antes e pelo terrorismo depois, que anulam a distinção entre combatentes e não-combatentes, provocando possíveis derivas autoritárias que colocam em questão os princípios do Estado de direito. Também o dever e o direito de ingerência em contextos nos quais populações inocentes não têm possibilidade de defesa são estritamente voltados para desarmar o agressor e fornecer a assistência necessária. A denúncia eclesial em relação à produção e ao comércio de armas está crescendo, sobretudo pelo fato de que tiram preciosos recursos do desenvolvimento.
Foi o Concílio Vaticano II que considerou a guerra com um espírito totalmente novo (cf. L. Lorenzetti (ed.), Dizionario di teologia della pace, EDB, Bolonha 1997, p. 303 - 326). Não para um retorno à não-violência da Igreja primitiva ou para a remoção da doutrina tradicional sobre a guerra justa. "Os católicos não são convidados a romper com o seu depósito doutrinário, mas a reinterpretar seus critérios de maneira tão estreita que nenhum recurso à violência bélica pode ser considerado como um meio ‘normal’ de resolver os conflitos, sem excluir que isso possa acontecer em casos realmente excepcionais" (Christian Mellon, RETM p. 24).
A experiência da "guerra total" e a ameaça de destruição nuclear tornaram a expressão "guerra justa" cada vez menos utilizável. Não se trata apenas de humanizar a guerra, mas realmente de erradicá-la. A extensão da doutrina do direito internacional segue na mesma direção. Em uma intervenção do card. Pietro Parolin, secretário de Estado (Universidade Gregoriana, 11 de março de 2015) teoriza-se, ao lado do ius ad bellum e ius in bello, também o ius post-bellum (direito após a guerra) e o ius contra bellum (direito contra a guerra).
"Os fatos e atrocidades de hoje pedem aos vários atores - estados e instituições intergovernamentais, em primeiro lugar - que trabalhem para prevenir a guerra em todas as suas formas, dando consistência a um ius contra bellum, isto é, a normas capazes de desenvolver, atualizar e principalmente impor os instrumentos já previstos pelo direito internacional para resolver pacificamente as controvérsias e evitar o uso de armas. Refiro-me ao diálogo, à negociação, à tratativa, à mediação, à conciliação, muitas vezes vistas como simples paliativos sem a necessária eficácia. Uma consideração diferente desses instrumentos não pode ser imposta, mas só pode vir de uma convicção geral: a paz é um bem precioso e insubstituível".
O papa Francisco deu um nome ao novo panorama bélico "uma guerra mundial em pedaços", fornecendo mais do que uma análise geopolítica, uma referência pedagógica e uma imagem de reconhecimento.
Por ocasião de uma conferência sobre desarmamento (10 de novembro de 2017), ele rejeitou a doutrina da dissuasão nuclear: "Não podemos deixar de sentir um grande sentimento de inquietude se considerarmos as catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer uso de armas nucleares. Portanto, mesmo considerando o risco de uma detonação acidental de tais armas devido a um erro de qualquer natureza, a ameaça de seu uso e sua própria posse deve ser fortemente condenada, precisamente porque sua existência é funcional a uma lógica de medo que não diz respeito apenas às partes em conflito, mas a todo o gênero humano”.
O possível uso de armas atômicas por fundamentalistas ou criminosos acentua o perigo. Pela primeira vez, o Papa dedicou a mensagem para o dia da paz (2017) à "não-violência", não mais apenas como opção possível para o crente, mas como um chamado e uma vocação para todos.
O aprofundamento teológico e evangélico mencionado brevemente é percebido pelos teólogos e pastores como um providencial kairos (tempo de graça) em relação ao "vínculo amaldiçoado" entre religião e violência.
Diante da banalidade da acusação de uma parte da inteligência laica ocidental às religiões e, em particular, ao monoteísmo de ser o terreno privilegiado da cultura da violência e à igualmente inaceitável recusa apriorística quase como não tivesse acontecido na história e no presente uma conexão entre religião e violência "trata-se de reconhecer ao kairos a irreversível dispensa do cristianismo das ambiguidades da violência religiosa, o traço de virada epocal que ele é objetivamente capaz de instituir no universo globalizado de hoje" (CTI - Comissão Internacional de Teologia, O Monoteísmo cristão contra a violência, 6 de janeiro de 2014, nº 64).
A ausência de uma competência teológica nos poderes civis ocidentais torna-os incapazes de compreender a relação entre violência e religiões, de sair do dilema de negar qualquer compatibilidade em conformidade com o sentimento dos fiéis ou de colocar sobre a fé todas as responsabilidades da patologia social, na onda do sentimento popular e midiático.
O tema é predominantemente imposto pelo fundamentalismo islâmico, mas não apenas. É difícil afirmar que a religião seja em si livre das pulsões violentas e que estas sejam atribuíveis apenas a determinadas circunstâncias sociais. O terrorismo político é percebido como uma instância ética. Sair de um dilema com a única pretensão da independência e da laicidade do Estado sem envolver a reflexão teológica das várias crenças significa condenar-se ao fracasso. Percebe-se isso na contraposição ingênua entre o monoteísmo ruim e o politeísmo bom; o primeiro, fonte de todo autoritarismo, o segundo, fonte do pluralismo tolerante.
"O monoteísmo, que parecia ser o ápice do pensamento filosófico imanente nas religiões, está sob acusação e o politeísmo é reabilitado. É um tipo de ateísmo que paradoxalmente critica a religião servindo-se de uma interpretação da religião. Enquanto antes se limitava a liquidar a questão de Deus como insignificante, agora brinca com os símbolos da religião e se atreve a julgar a qualidade humana do pensamento religioso: melhor o politeísmo que o ateísmo" (P. Sequeri na Settimana 40/2014. 8).
Não se sai disso senão com uma "laicidade acolhedora" e uma renovação teológica que implica purificação e reforma da fé. O CTI escreve: "No entanto, podemos atestar, com toda a firmeza e humildade necessária, que a advertência radical contra um uso despótico e violento da religião pertence de forma única ao núcleo originário da revelação de Jesus Cristo: e representa um dos seus aspectos mais inusitados e emocionantes, na história da espera pela manifestação pessoal de Deus e pela experiência religiosa da humanidade. A confissão do fato de que o único Deus, Pai de todos os homens, se deixa histórica e definitivamente reconhecer precisamente na unidade do supremo mandamento do amor, sobre o qual os próprios discípulos do Senhor aceitam ser julgados, ilumina a autêntica fé do único Deus que pretendemos professar" (n. 15).
Não se trata de cancelar as responsabilidades históricas do cristianismo, mas de tomar ato do caminho de purificação da fé cristã perseguido pela Igreja. A prática histórica nem sempre foi coerente com a autêntica inspiração evangélica. Como teólogos, consideramos "que o reconhecimento dessa contradição tenha realizado, na presente época da Igreja, um salto irreversível na qualidade, na doutrina e na prática: tornando-se inseparável do futuro do cristianismo, bem como do ideal de uma religião autêntica.
Por isso, pensamos, como teólogos cristãos e católicos, que esse aprofundamento represente uma oportunidade real de repensamento da ideia de religião. É assim para as culturas do Ocidente, tentadas pelo repúdio do cristianismo e da religião, à custa da resignação do niilismo. Será também para as religiões no mundo, novamente tentadas pelo fechamento sobre si mesmas, e até atravessadas por terríveis presságios de guerra".
A genialidade de Cristo é precisamente esta: no sacrifício cristão, ninguém é ferido, nem os amigos nem os inimigos. Jesus entrega a si mesmo. Ele não quer vítimas que, aliás, são sempre os "outros".
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Novas armas, novas guerras - e um kairos singular - Instituto Humanitas Unisinos - IHU