31 Mai 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo, festa da Ascensão do Senhor, 2 de junho (Lucas 24, 46-53). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A supressão, na Itália, da festa da Ascensão (quinta-feira da VI Semana, 40 dias depois da Páscoa) e o seu consequente deslocamento para o domingo posterior, infelizmente, não nos permitem contemplar o mistério da intercessão do Ressuscitado junto do Pai (VII Domingo de Páscoa). Hoje, portanto, na Igreja italiana [e brasileira], celebra-se a Ascensão, evento pascal que Lucas relata no seu Evangelho (o trecho de hoje) como evento final da vida de Jesus de Nazaré e nos Atos dos Apóstolos como evento inicial da vida da Igreja (cf. At 1, 1-11, também este proclamado hoje na liturgia).
É significativo que os dois relatos não sejam plenamente harmonizáveis entre si, pois leem o mesmo evento a partir de duas perspectivas diferentes. Nos Atos, a ascensão de Jesus ao céu ocorre 40 dias após a sua ressurreição da morte (cf. At 1, 3), enquanto no Evangelho ela é colocada no fim de tarde daquele “dia sem fim”, “o primeiro da semana” (Lc 24, 1), dia da descoberta do túmulo vazio e da aparição do Ressuscitado às mulheres (cf. Lc 24, 1-12), aos dois discípulos no caminho para Emaús (cf. Lc 24, 13-35), enfim a todos os discípulos reunidos em uma casa em Jerusalém (cf. Lc 24, 36-49). Dois modos diferentes de narrar o único evento da ressurreição, que Lucas tenta iluminar em toda a sua amplitude: de fato, a ressurreição significa a entrada de Jesus como Kýrios na vida eterna à direita de Deus Pai (Ascensão) e também a descida do Espírito (Pentecostes: cf. Atos 2, 1-11).
Na página conclusiva do seu Evangelho, Lucas conta como Jesus se separou dos seus, não para abandoná-los, mas para estar sempre com eles, o Immanuel, o Deus-conosco (cf. Mt 1, 23; 28, 20), em uma nova forma de vida. A sua existência humana terminou com a morte, e agora, após a ressurreição do seu corpo, a vida de Jesus é outra, é a do Senhor vivo, é a vida divina daquele que está na vida íntima de Deus, à sua direita, o lugar do Filho eleito e amado (cf. Sl 110, 1bc; Lc 3, 22; 9, 35).
Eis-nos, então, na casa dos discípulos em Jerusalém: os dois de Emaús retornaram e relataram a sua experiência, enquanto os Onze e os outros testemunhavam também eles que Cristo havia ressuscitado e havia sido visto por Simão Pedro (cf. Lc 24, 33-35). Enquanto todos juntos falam de Jesus, ele em pessoa está no meio deles, dá o shalom, a paz (cf. Lc 24, 36), depois profere palavras que ressoam em uma absoluta novidade: “São estas as palavras que eu lhes falei, quando ainda estava com vocês” (Lc 24,44a). Sim, porque Jesus não está mais com eles como antes, como homem, mestre e profeta; agora é o Senhor vivo que não fala mais em aramaico, com o som da sua voz humana por eles escutada por muito tempo, mas de um modo novo, um modo mais eficaz, persuasivo, porque a sua voz está dotada da força do Espírito de Deus plenamente operante no Ressuscitado.
No poder do Espírito, o Senhor Jesus mostra aos discípulos o cumprimento das Escrituras e o cumprimento das suas palavras nos eventos que precederam aquele dia (cf. Lc 24, 44b-47). O Ressuscitado explica as Escrituras de modo que os discípulos compreendam a conformidade entre o “está escrito” e o que eles viveram: agora, os discípulos podem finalmente compreender o que antes não conseguiram entender.
Certamente eles leram muitas vezes a Torá, os Profetas e os Salmos, mas agora que os fatos se cumpriram eles podem compreendê-los crendo, à luz da fé. Jesus lhes havia repetidamente várias vezes a necessitas da sua paixão e morte (cf. Lc 9, 22.43b-44), mas esses discursos lhes haviam parecido escandalosos, enigmáticos (cf. Lc 9, 45). Agora, porém, que eles se cumpriram – não por destino ou fatalidade, mas pela necessidade mundana segundo a qual “o justo” (Lc 23, 47) em um mundo injusto deve morrer (cf. Sb 1, 26-2,22) e por necessidade divina pela qual Jesus, em obediência à vontade do Pai, não se defende, mas acolhe o ódio sobre si amando até o fim –, agora sim é possível crer nas Sagradas Escrituras. E, crendo, é possível tornar-se “testemunhas”, até anunciar a morte e ressurreição de Cristo como evento que pede conversão e dá a remissão dos pecados: o perdão de Deus a toda a humanidade, à espera da boa notícia da salvação.
Todos são testemunhas – enfatiza Lucas –, todos são anunciadores do Evangelho, não só os Onze, os apóstolos, mas também os outros presentes no mesmo lugar.
Sim, Jesus, esse homem de Nazaré, filho de Maria e de Deus, que só Deus nos podia dar, viera sobretudo como Palavra feita carne (cf. Jo 1, 14), como Visita de Deus (cf. Lc 1, 68), uma Visita não para a punição, para o castigo dos pecados cometidos pelo povo de Deus e pela humanidade inteira, mas uma Visita que anunciava o perdão dos pecados (cf. Lc 1, 77). Com aquela morte como “homem justo” que acolhia sobre si o ódio, a violência e a mentira dos malvados, e respondia a isso não com a violência, mas com o amor, Jesus entregava ao Pai a verdadeira imagem de Deus, o Adão como Deus desejara (cf. Cl 1, 15).
E precisamente como justo que está do lado dos pecadores, solidário com publicanos, impuros, prostitutas, ladrões e malfeitores, Jesus subia ao Pai dirigindo-lhe a oração incessante que invoca perdão e misericórdia. Entre as suas últimas palavras antes da morte, ele não dissera: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)? E a sua última promessa não havia sido dirigida a um malfeitor: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)?
Portanto, os discípulos, testemunhas dessa misericórdia vivida, ensinada e narrada por Jesus, devem anunciá-la a todos os povos. Essa é a pregação da Igreja, que, ao contrário, às vezes é tentada a se atribuir tarefas que o Senhor não lhe deu: a única tarefa evangélica é anunciar e fazer misericórdia, que significará anúncio do Reino, da salvífica morte e ressurreição de Cristo, e, portanto, serviço aos pobres, aos doentes, aos sofredores, proximidade e solidariedade com os pecadores.
“Começando por Jerusalém” e até os confins do mundo, as testemunhas, como viandantes e peregrinos, anunciarão o perdão dos pecados em todos os lugares e, por isso, perdoarão e convidarão todos a perdoar: esse é o Evangelho, a boa notícia. Ser testemunhas de tal anúncio (e não de outra coisa!) é uma tarefa árdua, porque parece pouco credível, quase impossível de se realizar, mas aqueles pobres discípulos e aquelas pobres discípulas, na noite da Páscoa, escutaram, entenderam e, desde então, tentaram pôr em prática nada mais do que isto: o perdão, a remissão de pecados.
Será preciso “o poder que vem do alto”, a descida do Espírito Santo de Deus, para serem habilitados a cumprir esse mandato, mas nada de medo: quando Jesus, o Filho de Deus, sobe ao céu, eis que desce do céu o Espírito de Deus, que é também e sempre o Espírito de Jesus Cristo, força que sempre nos acompanha e nos inspira nessa missão.
Como narrar a ascensão de Jesus com palavras humanas? Lucas tenta narrá-la, recordando como o profeta Elias havia deixado esta terra para ir para junto de Deus (cf. 2Re 2, 1-14), e assim escreve que Jesus, depois de ter conduzido para Betânia aqueles discípulos que já haviam se tornado testemunhas, deixou-lhes a bênção e, “enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu”. Esse é o êxodo de Jesus da terra ao reino de Deus. O evangelista não atenua de modo algum a separação de Jesus dos seus: ele não está mais presente como antes, mas a benção que ele dá é uma bênção contínua, é a imersão dos seus no Espírito Santo (cf. Lc 3, 16).
Esse é também o último ato do Ressuscitado: ele dá a bênção sacerdotal que havia sido suspensa, não dada no início do Evangelho pelo sacerdote Zacarias, depois da aparição do anjo e do anúncio da vinda do Messias (cf. Lc 1, 21-22). Essa bênção deixa alegre a comunidade de Jesus precisamente enquanto ele se separa dela, mas também a torna sacerdotal (cf. 1Pd 2, 9): aqueles que creem em Jesus Cristo, de fato, são o novo templo, “sacerdotes” e adoradores do Ressuscitado, capazes de responder com a oração de bênção à bênção de Jesus.
A incredulidade, finalmente, foi vencida, e a fé em Jesus vivo, Senhor e Deus, é tamanha que permite que os discípulos sintam Jesus presente no meio deles mesmo após a separação do seu corpo glorioso, agora na intimidade do Pai, Deus.
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