01 Abril 2019
Escritor moçambicano conta ter chorado no reencontro com sua cidade natal, devastada pelo Idai. E se diz decepcionado com a quantia enviada pelo governo brasileiro.
A reportagem é de Sandra Cohen, publicada por G1, 30-03-2019.
Há duas semanas, o escritor moçambicano Mia Couto falava ao telefone com um amigo e morador da cidade da Beira quando o ciclone Idai tocou terra firme. A ligação caiu, e Mia só conseguiu restabelecer o contato quatro dias depois para saber que o amigo sobrevivera. O que ele diz ter pensado inicialmente ser uma ventania passageira transformou-se rapidamente no maior desastre natural ocorrido naquela região, com pelo menos 700 mortos e 1,9 milhão de pessoas atingidas.
Autor da trilogia “Areias do imperador”, entre quase 20 livros publicados, Mia Couto foi particularmente atingido pela tragédia causada pelo Idai: quarta maior cidade do país, a Beira, onde nasceu e de onde saiu aos 17 anos, é a mais afetada pelo ciclone e teve 90% de seu território devastado, com mais de 200 mil desabrigados.
A cidade seria personagem de seu próximo livro. Para isso, Mia, que vive em Maputo, a 1.200 quilômetros de distância, planejava passar um tempo lá para recuperar memórias. Não deu tempo, o Idai chegou antes. O escritor sobrevoou a Beira, nesta quarta-feira, mas o reencontro foi com a destruição de sua cidade natal.
“Neste meu romance há um capítulo grande que se passava numa igreja, a de Macuti, na Beira. Era um prédio sólido, mas foi derrubado pelo ciclone. Só restou uma parede”, revelou o escritor ao G1, por telefone.
Ainda sem saber como a tragédia se refletirá em sua obra, ele mergulhou numa campanha de solidariedade, para a ajuda chegar aos atingidos pela catástrofe, por meio de uma parceria entre a Cruz Vermelha e a Fundação Fernando Leite Couto, que leva o nome de seu pai e da qual é o presidente. As contas abertas aos interessados em doar dinheiro para ajudar as vítimas do Idai estão no site da fundação.
Quais foram as suas impressões ao voltar à Beira, sua cidade natal e a mais devastada pelo ciclone Idai?
Fiz um sobrevoo pela Beira, que é a cidade da minha infância e da minha adolescência. Saí aos 17 anos, voltei várias vezes e ainda tenho lá meus amigos. Quando aconteceu esta tragédia, não sei definir o que senti.
Foi como se meu próprio tempo deixasse de ter esta referência básica, este chão que é um lugar que me conta histórias, que me fez ser pessoa. E este reencontro agora me fez chorar. É uma visão apocalíptica, todas as casas sem teto, as ruas cheias de água.
O que se nota, quando falo com as pessoas, é que elas estão se reerguendo, reconstruindo suas casas da maneira que podem.
O primeiro momento deste embate mais violento e mais dramático está passando. Agora é preciso enfrentar e resistir à segunda fase, com a eclosão de doenças, as questões de refúgio e a reconstrução da cidade.
Qual o papel da fundação que você dirige na ajuda aos desabrigados do Idai?
Fizemos uma campanha dentro e fora de Moçambique e escolhemos a Cruz Vermelha como parceira. A questão da credibilidade e a crença da pessoa que vai doar é fundamental. As pessoas têm o desejo de ser solidárias, mas às vezes desistem porque não têm confiança no agente. Por isso, a importância de prestar contas e ser transparentes. Estamos conseguindo angariar recursos. Vamos abrir uma conta no Brasil em reais para que os brasileiros possam fazer as doações.
Você considera satisfatória a resposta do governo brasileiro à tragédia?
Fiquei espantado com a quantia de 100 mil euros, que foi doada pelo Brasil a Moçambique. Não corresponde à relação histórica e afetiva entre os dois países e ao desejo dos brasileiros de contribuir. Não posso ser deselegante. É uma contribuição e temos que ser gratos. Mas eu esperava que fosse mais significativa. Timor Leste, outro país de língua portuguesa, deu dez vezes mais e não tem a economia na escala do Brasil, que é uma das maiores do mundo. Fiquei surpreso de forma negativa com a intervenção do governo brasileiro.
De que maneira esta tragédia na Beira pode embaçar as suas memórias e a sua relação com a cidade que sempre lhe serviu de fonte de inspiração?
Fiquei algumas horas lá depois do desastre e entendi algo que não percebia até então. A cidade é feita pelas pessoas.
Elas me deram grande coragem e me confortaram, quando se esperava o inverso, que eu fosse lá para abraçá-las. Mas não. Foram as pessoas da Beira que me abraçaram e me consolaram. Foi uma lição para mim.
A escala deste desastre é tão grande que Moçambique não conseguiria enfrentá-lo sozinho. As pessoas estão ajudando-se, sem esperar que a ajuda venha de fora. Neste momento, escrevo um romance em que a cidade era um personagem. É uma maneira disfarçada de revisitar tempos que foram meus. Minha primeira reação foi achar que minha infância foi perdida. Hoje tenho uma perspectiva mais fundamentada, porque a minha infância são as pessoas, não apenas um lugar físico.
Seus parentes e amigos foram atingidos pelo Idai?
Só tenho um primo em Beira, que não estava lá no momento, mas teve sua casa destruída. Todos os meus amigos foram afetados, todos tiveram suas casas danificadas. Alguns estão vivendo na cozinha até hoje. Ninguém perdeu a vida, mas não há um amigo que não tenha sido atingido.
Consegue visualizar como será no futuro esta Beira já registrada na sua obra?
Por um lado, acho que era um momento para repensar a cidade, construída sobre um pântano e abaixo do nível do mar. A reabilitação de Beira poderia representar uma oportunidade em cima desta desgraça. Mas as pessoas estão com pressa de refazer suas vidas. Têm urgência, não podem esperar por um novo plano de reurbanização. A pressão do imediato vai reconstruir a cidade tal como estava. Numa etapa seguinte, urbanistas podem propor novos ares, mas é um processo que vai demorar muitos anos.
Enquanto esta tragédia se desdobra, você imagina uma forma de transformá-la em ficção?
Estou dividido. De um lado, por uma relação de respeito com este assunto, com esta dor. A última coisa que eu quero é fazer um aproveitamento literário de uma tragédia. De outro, a obra não pode ser a mesma.
Por uma enorme coincidência, enquanto eu ia à procura destas memórias para este romance, daquilo que me inspirou a ser pessoa, eu percebia que esta memória era toda inventada. A cidade tinha se inventado a si própria.
Havia uma luta com a memória, uma luta em que se impunha esta grande verdade, a de que as memórias são sempre falsas.
Eu ia à procura de uma coisa que era uma miragem. Agora tudo isso é muito mais real, é quase que um imperativo, uma imposição. Esta cidade já não é a mesma, não é mais aquela que eu posso procurar.
O conto “De como o velho Jossias foi salvo das águas”, publicado em seu primeiro livro, praticamente antecipa esta tragédia. Qual foi o impacto que teve ao relê-lo depois do ciclone?
Tive um impacto enorme. A verdade é que os ciclones são frequentes aqui. O Canal de Moçambique é muito propenso a estes eventos extremos. A minha infância ficou marcada pelo fato de a cidade da Beira ser atingida por ciclones, embora não tão graves como este.
Ao reler o conto, uma frase que Jossias fala ao ser salvo me fez pensar: “Você está a salvar-me da morte, mas quem vai me salvar da vida?” Esta é a grande questão. São duas mortes, este sentimento está presente no conto.
Não é só tirar a pessoa de dentro d’água, a vida é muito mais do que isso. Eu sinto como se estivesse escrevendo de novo a mesma história.
Você considera que uma tragédia na África é subestimada e não desperta a comoção da comunidade internacional?
Sim. Dez pessoas que morrem numa cidade europeia merecem uma atenção que mil pessoas que morrem na África não merecem. Há uma desvalorização da vida nestes lugares que são distantes. Não existe o mesmo critério de importância à vida humana.
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Moçambique. 'A visão da destruição do ciclone é apocalíptica'. Entrevista com Mia Couto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU