26 Março 2019
O novo livro de Karen Keen, "Scripture, Ethics and the Possibility of Same-Sex Relationships" [Escritura, ética e a possibilidade de relações entre pessoas do mesmo sexo], é o tipo de livro que eu jamais pensaria que fosse ler. De regra, a teologia moral me entedia. Eu também não consulto frequentemente os teólogos protestantes evangélicos. Mas, com as questões LGBT continuando a desempenhar um grande papel nos debates culturais e políticos do nosso país, eu decidi ler o livro de Keen e estou feliz por ter feito isso, porque é uma obra reflexiva, abrangente e atenciosa com outros pontos de vista, qualidades que muitas vezes fazem falta nos debates das guerras culturais. Isso não é um desabafo, mas é um desafio para aqueles teólogos protestantes cujos argumentos contra as relações entre pessoas do mesmo sexo, na opinião de Keen, recorrem a qualquer coisa para se sustentar.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado em National Catholic Reporter, 25-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Keen começa com um panorama da história das atitudes cristãs em relação às pessoas gays e lésbicas. “Ao longo de grande parte da história, a Igreja entendeu a atração e as relações entre pessoas do mesmo sexo como sinais de depravação e doença espiritual”, escreve ela. “O século XX levantou desafios para essa perspectiva, incluindo novas pesquisas indicando que a atração pelo mesmo sexo não é o resultado de doença mental. Da mesma forma, as pessoas gays e lésbicas testemunharam cada vez mais que suas vidas não correspondiam a essas pressuposições negativas.”
Dentro desse relato extremamente deprimente do preconceito contra as pessoas gays e lésbicas, Keen discerne algumas consequências não intencionais que ajudaram a colocar em xeque as pressuposições implacavelmente negativas. Por exemplo, os cristãos evangélicos abraçaram a crença de que os gays podem ser convertidos e destacaram os “ex-gays” que retornaram à ortopraxia. No entanto, observa Keen, “os ex-gays foram capazes de desafiar o estereótipo de que ser gay era apenas uma opção comportamental rebelde. Os ex-gays testemunharam de forma persuasiva que nunca escolheram a atração pelo mesmo sexo”.
Keen faz um profundo mergulho no antigo pensamento judaico e cristão, examinando também as crenças culturais ambientais sobre a atração pelo mesmo sexo. Ela observa que as Escrituras hebraicas são exclusivamente negativas ao abordar as pessoas gays, ou mais especificamente os homens gays: as Escrituras hebraicas silenciam sobre a questão de mulheres que dormem com mulheres, o que atesta a compreensão protológica da sexualidade humana que produziu os ensinamentos antigays das antigas normas legais judaicas e outras no Oriente Médio.
Se você acredita, assim como essas culturas antigas pareciam fazer, que o esperma é um produto limitado e que a família e a comunidade precisam de homens jovens para trabalhar nos campos, então os homens que dormem com homens e a masturbação são ambos considerados como ameaças a toda a comunidade.
Por outro lado, o mundo greco-romano evidenciava uma tolerância à pederastia. Os leitores familiarizados com o trabalho seminal de John Boswell nessa área e publicado em seu livro "Christianity, Social Tolerance and Homosexuality: Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century" [Cristianismo, tolerância social e homossexualidade: pessoas gay na Europa ocidental desde o início da Era Cristã até o século XIV] estão familiarizados com essa abordagem bizarra para nós: as principais distinções para esses pagãos eram entre ser um parceiro sexual ativo ou passivo, e não havia vergonha no fato de um cidadão adulto manter relações sexuais com um homem jovem ou escravo, desde que o cidadão mais velho fosse o parceiro ativo.
Keen ressalta as várias razões pelas quais a Bíblia proíbe o sexo gay, desde a crença de que isso resultava de um excesso de paixão, como São Paulo parecia pensar, até a falta de potencial procriador mencionado acima. Ela também ressalta os desacordos acadêmicos sobre até que grau a prostituição masculina nos ritos pagãos fazia parte desse raciocínio.
Então, se a Bíblia diz que as relações do mesmo sexo estão erradas, há algo para debater? Sim, há. “Parte do debate é sobre se as razões que os autores bíblicos dão para rejeitar o homoerotismo são universais. Por exemplo, até mesmo os tradicionalistas reconhecem que algumas regras da Bíblia são culturalmente específicas, como as mulheres que usam véus para a cabeça. (...) Outra possibilidade é que os autores bíblicos não abordem especificamente as relações entre pares do mesmo sexo como uma questão ética”.
Aqui, eu não pude deixar de pensar no famoso episódio de “West Wing: Nos Bastidores do Poder”, em que o presidente Josiah Bartlet confronta um fanático bíblico antigay. Bartlet não é tão equilibrado ou gentil quanto Keen, mas o ponto é o mesmo: muitos teólogos tradicionais citam as injunções bíblicas como portadoras de autoridade, ao mesmo tempo em que descartam outras normas bíblicas.
Keen acredita que os teólogos mais sérios, liberais e conservadores, concordam sobre por que os autores bíblicos condenavam as relações entre pessoas do mesmo sexo. “O ponto crucial do debate atual é a complementaridade de gênero e anatômica”, observa ela, apontando para o primeiro relato da criação do Gênesis – “homem e mulher os criou” – no qual o casamento heterossexual é visto não apenas como uma norma jurídica, mas também como algo incorporado.
Vários textos-chave do Novo Testamento sustentam essa visão: Mateus 19, 1-6; Marcos 10, 1-9; Romanos 1; Efésios 5, 22-32; e Apocalipse 19, 7-9. Ela examina cada um desses textos e os argumentos que tanto os teólogos tradicionais quanto progressistas extraem desses trechos. Existem nuances que precisam ser levadas em consideração, como a introdução do ideal de abstenção sexual e a celebração da virgindade nas Escrituras cristãs (e na Igreja primitiva).
Keen está em sua melhor forma quando reconhece o valor em ambos os lados de uma discussão, mas aponta para as dificuldades da posição mais tradicionalista. Assim, por exemplo, ela estipula que a complementaridade homem-mulher e a subsequente procriação são sem dúvida uma coisa boa, reconhecível como uma “ordenança da criação”, mas ela se pergunta se a diferenciação sexual ou a relação de aliança é a norma bíblica fundamental. E ela não recorre a incontáveis argumentos falaciosos extraídos de outros dados bíblicos significativos:
“Os tradicionalistas às vezes argumentam que a diferenciação sexual é necessária para o casamento a fim de evitar uma inclinação escorregadia para a imoralidade. Se permitirmos que as pessoas gays se casem, todos vão querer se casar com seus animais de estimação, seus irmãos de sangue e a metade da turma da faculdade. Mas a diferenciação não é a base para a proteção contra essas coisas. A própria história de Israel é uma testemunha disso. A poligamia só foi rejeitada pelos autores bíblicos no período greco-romano, depois que os gregos introduziram a monogamia ao antigo Oriente Próximo. As Escrituras dão outras razões além da diferenciação sexual (...) para explicar por que as pessoas não devem se envolver em poligamia, incesto, bestialidade, adultério e divórcio.”
Keen continua examinando como Jesus interpretou certas leis judaicas e a sua ênfase em discernir a necessidade humana como um requisito relativizador da lei. Ela aborda e em grande parte rejeita a ideia de que o celibato é a única possibilidade moral deixada em aberto para as pessoas gays. E ela situa a discussão sobre as origens da homossexualidade em uma discussão mais ampla sobre aquilo que entendemos por “a Queda”. Tudo isso é muito bem feito e, novamente, é algo generoso com as posições com as quais ela discorda, no fim das contas. Ela também não é acrítica em relação a algumas posições progressistas. Um exemplo da sua imparcialidade se encontra nestas frases:
“Muitos tradicionalistas temem que aceitar casais gays exigirá abrir mão do desígnio de Deus em relação ao homem e à mulher. Mas apoiar relações de aliança entre pessoas do mesmo sexo de modo algum diminui a beleza da complementaridade masculino-feminina. Os tradicionalistas têm razão em dizer que há algo incrivelmente significativo em relação àquilo que as mulheres trazem ao mundo como mulheres e àquilo que os homens trazem ao mundo como homens. Enquanto algumas vozes defendem relações entre pessoas do mesmo sexo desconstruindo o sexo e o gênero, tais esforços são uma metáfora bem-intencionada, mas equivocada, de combater a discriminação (à la a falácia do ‘amor é daltônico’). Podemos afirmar a realidade de que a maioria das pessoas nascem homens e mulheres heterossexuais e reconhecer que as pessoas podem experimentar outros tipos de desenvolvimento sexual.”
Keen não joga o bebê fora junto com a água da pia batismal... Uma leitura cuidadosa dos textos bíblicos não se esquiva das normas, muito menos convida a uma desconstrução foucaultiana do gênero. Talvez ser gay seja mais como ser canhoto do que ser um exemplo de queda espiritual ou física.
O católico reconhecerá como esse livro é diferente da nossa própria tradição moral, enraizada na lei natural e no Apocalipse, durante a maior parte da vida da Igreja. Mas ele está bem escrito e é acessível: se eu tivesse um sobrinho ou sobrinha gay que estivesse se perguntando sobre como conciliar sua sexualidade com a sua fé, eu lhes daria um livro como esse, como uma introdução às questões que eles devem levar em consideração.
Keen oferece discussões ponderadas sobre esses tópicos, e se cada um, tradicionalista ou progressista, abordasse essas questões com a consideração dela, talvez não chegássemos a um acordo, mas poderíamos diminuir um pouco a temperatura das guerras culturais.
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Se a Bíblia diz que as relações gays estão erradas, há algo para debater? Sim, há - Instituto Humanitas Unisinos - IHU