19 Março 2019
"Diante de uma sociedade doente, haveria um trabalho perseverante e cuidadoso para descobrir, no coração de uma irracionalidade conservadora, um núcleo de verdades escondidas", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Não adianta seguir repetindo ao cansaço a evidência de que estamos diante de um presidente e seus três filhos despreparados, cada dia confirmada por novas ações descabidas. A de ontem, por exemplo: em viagem oficial, Bolsonaro fez uma visita privada à CIA para, como indicou o filho Eduardo, ter a “oportunidade de conversar sobre temas internacionais da região com técnicos e peritos do mais alto gabarito”(!). Nada deve surpreender, nem despertar reações emocionais que se assemelhariam com as do outro lado, apenas de sinal trocado. Não é o tempo de uma indignação que traga boa consciência, mas a busca para entender a razão - na verdade a “razão- da- sem- razão - para uma irracionalidade montante. Numa sociedade visivelmente doente, não podemos deixar-nos contagiar pela mentalidade neurótica que Erich Fromm via na ascensão do nazismo e que renasce agora nessa extrema-direita autoritária.
O que temos de perguntar é por que largos segmentos da população passaram a apostar num deputado apagado do baixo clero, surgindo à luz das mídias no dia em que prestou homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra. Daí em diante, pela força de twiters, blogs, faces, foi nadando em fake news, com uma enorme improvisação, como acaba de revelar o filho Carlos a Leda Nagle; mas entrou em sintonia fina com largos setores do país, que foram se identificando com ele, até construir uma ampla maioria, que elegeu presidente, senadores e deputados, carregando governadores e varrendo políticos de antigas carreiras.
Houve talvez dois movimentos, um negativo, de rejeição a um certo “espantalho”, plantado cuidadosamente na sociedade, chamado “petismo”, construído desde a Lava Jato e a república de Curitiba, passando pelo mensalão e procurando inverter a imagem de um presidente popular num sinal de corrupção e de desmando. Outro movimento, desta vez positivo, foi a identificação com um sinal de novidade e de esperança numa varredura política. Tivéramos algo, ainda que menor, com Jânio e sua vassoura e Collor e sua luta contra os marajás. A esquerda, principalmente o PT, parece não ter percebido a tempo a força emergente da reação, fechada que estava numa boa-consciência auto-referida e numa maneira tradicional de fazer política, não sabendo escutar o rumor que subia do fundo da sociedade.
Nos Estados Unidos, isso acontecera com um tosco Trump, colocando em escanteio um “sofisticado” Obama. E de nada servia, nem ali nem aqui, elencar apoios de intelectuais, artistas e universitários, diante da aceitação de matrizes conservadoras. Entre nós estas emergiam, por exemplo, nas opções de choferes de táxi, donas de casa de classe média, setores marginalizados – muitos que, paradoxalmente tinham se beneficiado de medidas de governos petistas.
Reprodução da Capa Revista Istoé | 17/11/2017
O que causa espécie, é que parte dessa esquerda posta em parcial derrota, não está sendo capaz de compreender um movimento telúrico profundo, presa a uma batalha limitada para salvar o grande líder de ontem, sem entender a ascensão de novas demandas e de outras lideranças de forte apelo popular, consideradas por ela simplesmente absurdas, em suas avaliações ligeiras e tradicionais.
Poucos pensamentos são mais toscos do que os de um furibundo a auto-referido Olavo de Carvalho. Mas ele congrega, em seus cursos pagos, milhares de jovens que não estão interessados no valor de ideias, mas na força de um chamado simplório que lhes dê segurança.
Podem parecer estapafúrdias, seja a declaração de Bolsonaro, em sua posse, de que saímos do socialismo ou então a denúncia vaga de um “marxismo cultural”, emprestado de um Gramsci mal digerido; mas um enorme contingente, sem parar para pensar, se sente identificado com tais afirmações.
Já que Gramsci volta ao debate, tomando dele a noção de hegemonia, haveria que descobrir na sociedade a direção intelectual e moral das classes dirigentes, com seus valores e ideias. Mas ao lado dela, agora mais do que nunca, teríamos que desocultar, em sua periferia, um núcleo cognoscitivo e emocional de setores marginais efervescentes e radicalizados à direita.
Ali estão os que se encerram no medo e na pulsão dos acuados e que afiam suas garras de autodefesa. Raymond Aron e Hannah Arendt estudaram a emergência de um movimento crispado que levou ao totalitarismo. Uma Alemanha de altos voos intelectuais e artísticos afogou-se diante da frustração, da raiva e do medo. Lá, o partido comunista alemão, preso à luta tradicional contra a social democracia, apesar dos alertas de Trotski, não percebeu a tempo o que bradava um tosco porém contagiante Hitler, o verdadeiro perigo pela frente. Aqui, a revista Isto É, em novembro de 2017, alertava para um perigo, na ocasião, aparentemente pouco credível: Bolsonaro. Em primeiro de janeiro de 2019 ele seria presidente.
Diante de uma sociedade doente, haveria um trabalho perseverante e cuidadoso para descobrir, no coração de uma irracionalidade conservadora, um núcleo de verdades escondidas. Chesterton chamava a atenção para uma razão enlouquecida que tinha sua força nas verdades que ocultava. Há esperanças e anseios legítimos que lá se escondem e que deveriam ser assumidos e extrojetados de seu núcleo enfermo.
Deveríamos saber tratar de temas como segurança, identidade, solidariedade, liberdade, tirando-os de um contexto conservador asfixiante. E mais do que isso, articulando alianças numa frente pluralista nacional, popular e democrática, liberadas de uma prisão autoritária e dogmática, nos quadros de uma inovação tecnológica inédita, pondo de lado, sem medo, estilos tradicionais de trabalhar na sociedade civil e no espaço político a recriar.
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Um presidente errático em sintonia com frustrações e anseios inconscientes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU