08 Março 2019
“O primeiro passo para romper com as teologias extrativistas é recuperar a capacidade de pensar alternativas e em poder decidir outros caminhos, ensaiar e inclusive desejar outro modo de relação com a Natureza e com as pessoas. Dito de outro modo, precisamos de hereges que possam colocar em contradição essas teologias”, escreve Eduardo Gudynas, analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), em artigo organizado a partir das ideias compartilhadas em uma mesa-redonda organizada pela Rede Igrejas e Mineração, Rede Muqui e a Comissão Episcopal de Ação Social do Peru, na Universidade Jesuíta Ruiz de Montoya, em Lima.
O artigo foi enviado pelo autor. A tradução é do Cepat.
A catástrofe de Brumadinho é possivelmente um exemplo extremo dos extrativismos no século XXI. Entendidos como a exploração massiva e intensiva de recursos naturais para ser exportados como matérias-primas, por um lado, são claros os enormes impactos sociais e ambientais que acarretam. A evidência é espantosa, e não só pelos acidentes mineiros no Brasil, mas por outras situações, como os vazamentos de petróleo no Equador, as enormes amputações ecológicas da mineração colombiana e o avanço da soja na Argentina. Ninguém pode sustentar que os extrativismos sejam seguros, dado que os acidentes se repetem em todo o continente. Também não se pode insistir em que automaticamente gerarão bem-estar econômico, porque seguem inseridos nos lugares mais pobres em cada país.
Mas, apesar de todas estas evidências e das resistências cidadãs, de todos os modos, os extrativismos seguem avançando. São defendidos por empresas como todos sabemos, mas também fazem o mesmo, e com toda intensidade, quase todos os políticos, a maioria das universidades, e uma boa parte da opinião pública. O apoio é majoritário, especialmente nas cidades, justamente porque essas pessoas vivem distantes dos lugares onde verdadeiramente ocorrem os impactos.
Isto obriga a reconhecer que os extrativismos descansam em crenças profundamente arraigadas e que são compartilhadas tanto pelas posturas políticas e partidárias de conservadores a progressistas, de direita ou esquerda. São atos de fé que os tornam imunes a todas as evidências de impactos e acidentes.
Por tudo isto é justificável abordar os extrativismos como uma teologia. Com isso, não aponto tanto a considerar que estamos em algo assim como um cristianismo extrativista, embora não faltem tentativas nesse sentido. Por exemplo, em 2013, na Colômbia, foi celebrado um muito comentado encontro sobre Cristianismo e Mineração, onde o CEO de uma empresa afirmava que esses empreendimentos são um mandato de Deus. Ainda que, em sentido contrário, a encíclica Laudato Si’ esteja repleta de elementos para desmontar os extrativismos.
Ao contrário, refiro-me a uma teologia política, entendida como a produção de políticas que ao contrário do que proclamam, não são neutras, nem racionais, mas, sim, estão imersas em crenças e espiritualidades. Nelas se gera uma certa sacralidade que é utilizada para legitimar e fundamentar ordenamentos e práticas políticas entre os humanos e na relação com a Natureza.
Com efeito, aquela ideia da Modernidade de uma secularização que a desprenderia de toda transcendência para se tornar objetiva e neutra, na realidade, acabou gerando outras crenças. Com isso, foram exitosos em anular a organicidade e encantamento da Natureza, mas, ao mesmo tempo, entronizamos a utilidade e a mercantilização. Aí estão as raízes de teologias políticas extrativistas que possui suas narrativas, sua sacralidade e até suas liturgias.
Todas compartilham uma narrativa do inevitável e essencial que é o aproveitamento intensivo da Natureza. Um exemplo conhecido é a sentença repetida há quase 200 anos, que Peru é um país mineiro. Fica parecendo que a condição da mineração é uma ontologia de todo um país, de cada indivíduo, e de cada lugar em sua geografia.
O crescimento econômico se sacraliza como sustentáculo do desenvolvimento, e este deve ser alimentado pelas exportações de minerais, hidrocarbonetos ou grãos. Deste modo, gera-se a condição de imperiosa necessidade de explorar a Natureza para evitar um apocalipse econômico.
Desenvolvem-se pastorais extrativistas que insistem não somente em legitimar os extrativismos, mas em desejá-lo. A partir da economia, são editados relatórios que enfatizam os êxitos econômicos, mas que, ao contrário, não calculam os custos econômicos dos impactos socais e ambientais. Dos ministérios, imprimem-se folhetos anunciando os projetos extrativistas como trampolins para o desenvolvimento. Pelos meios de comunicação se celebra as explorações mineiras e petroleiras.
A oposição é impossível, mais que isso, é quase impensável. Os que criticam os extrativismos estariam loucos, dizia o presidente do Equador, Rafael Correa, e alertava que em um país desenvolvido todos eles seriam encerrados no manicômio.
Estamos cercados de liturgias extrativistas. São as celebrações de presidentes, ministros e empresários que festejam uma nova mina ou torre petroleira, ou um aumento nas exportações. Talvez um dos exemplos mais dramáticos foi o do presidente da Bolívia, Evo Morales, em 2015, no ato de inauguração da exploração de uma nova jazida que triplicava as reservas de hidrocarbonetos do país. O presidente estava rodeado de ministros e outras altas autoridades, e a sua frente se encontrava o público e a imprensa. Parado ao pé de uma enorme válvula, girou-a para mergulhar sua mão no petróleo, e depois, como se fosse o pároco presidindo a missa dominical na igreja do bairro, passou a untar petróleo nos casacos de cada uma dessas autoridades. A bênção política governamental se fazia com o petróleo.
Também existe uma institucionalidade extrativista que alimenta estas teologias. Nelas se encontram as grandes associações empresariais de mineiros, petroleiros e de agronegócios (por exemplo, no Brasil, a Associação Brasileira do Agronegócio ou a ABDIP – Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás). Todo este emaranhado legitima e defende os extrativismos, mas, além disso, incide nas políticas públicas, gera campeãs de publicidade e até pode decidir a nomeação de um ministro).
É necessário entender estas teologias extrativistas para poder pensar alternativas que sejam capazes de chegar a esse profundo núcleo de conceitos, sensibilidades e espiritualidades. A solução aos extrativismos não passa por uma mera mudança entre equipes de governos, entre aqueles que se dizem de direita ou de esquerda, e os países do sul já sabem muito bem porque vivem todos os tipos de experiências extrativistas.
Este esforço não é somente necessário, mas urgente. O acúmulo de impactos sociais e ambientais é intolerável na América do Sul, e alcançou níveis tão altos que a integridade ecológica de todo o planeta está em questão. A mudança climática global é um claro exemplo disto.
O primeiro passo para romper com as teologias extrativistas é recuperar a capacidade de pensar alternativas e em poder decidir outros caminhos, ensaiar e inclusive desejar outro modo de relação com a Natureza e com as pessoas. Dito de outro modo, precisamos de hereges que possam colocar em contradição essas teologias. Recordemos que para além de seus usos correntes, heresia em seu significado original quer dizer escolha. O conceito hoje está revestido de sentidos negativos, e por exemplo se denuncia como heresia conceber, apresentemos como caso, uma moratória à exploração de petróleo na mata amazônica, já que isso violaria as necessidades dos mercados. Contudo, caso se apele a seu sentido original, é a escolha a que nos permitiria construir espiritualidades hereges para pensar e sentir outro tipo de vínculos entre nós humanos e com a Natureza (1).
Estamos cercados dessas tentativas e ensaios, ainda que as teologias extrativistas os invisibilizam e ocultam. Contudo, há múltiplas experiências em toda América Latina de relações com a Natureza que não descansam nos extrativismos, e que asseguram a qualidade de vida. Também há organizações que oferecem espaços para tornar evidentes os impactos dos extrativismos e explorar respostas a partir da fé, como é o caso da Rede Igrejas e Mineração (2).
É possível compartilhar alguns elementos dessas espiritualidades hereges como uma primeira reflexão. É claro que é necessário abordar tanto o pensar como o sentir – e, portanto, uma mudança no ‘sentipensar’. Não bastam as transformações em tecnologias ou planos de desenvolvimento, mas também as afetividades devem mudar.
Sem dúvida, deve-se assegurar a qualidade de vida das pessoas e eliminar a pobreza, mas também é preciso admitir que os atuais níveis de consumismo são intoleráveis. Então, estamos frente a espiritualidades que incorporam a austeridade.
Deve se romper com a dominação e em todas as suas formas. Isto inclui tanto a dominação, por exemplo, de veteranos sobre jovens, como as dos varões sobre as mulheres. É, portanto, um esforço que aposta por sua vez na convivialidade e na despatriarcalização.
As novas espiritualidades devem ser ecumênicas e interculturais. Distintos aspectos do ‘sentipensar’ dos povos indígenas nos ensinam outros tipos de vínculos com o meio ambiente e os territórios.
A partir disto é possível haver outros elementos. Começarei por destacar a importância de escutar as rochas. Nas teologias dos extrativismos, os empresários e os economistas “escutam” o mercado, e ninguém parece se surpreender com isso. Portanto, a alternativa é começar a escutar as pedras, o solo, as árvores. Isto não quer dizer que serão ensinadas a falar, mas é nossa responsabilidade e temos a capacidade de decifrar o que nos dizem sobre a saúde do meio ambiente. E aí há todo tipo de sinais e mensagens sobre o drama ecológico.
O ritmo do tempo é dos larícios (*). As teologias dos extrativismos sempre trabalham em muito curto prazo, e inclusive é raro irem além de uns poucos anos próprios de uma presidência. Para elas, não existem as gerações futuras. Diante disto, o ritmo dos larícios nos ilustram como estas espiritualidades hereges devem entender o tempo. Essas majestosas árvores andinas, que podem viver mil anos, e por isso com cada incêndio que destrói matas nativas no sul do Chile e Argentina. Fica claro que as medidas de restauração ecológica devem ser colocadas e pensadas no tempo que os larícios necessitam para se recuperar. Ou seja, mil anos. O mesmo se repete nos demais ambientes sul-americanos.
Tudo isto nos leva a repensar nossas responsabilidades a longo prazo, e a começar a abordar uma questão que cada vez será mais necessária: como podemos ser melhores ancestrais para assegurar que as gerações futuras possam viver? A justiça por certo é imperativa, mas deve ser uma justiça social e ecológica. De um lado, os extrativismos atuais estão repletos de injustiças, com o caso extremo de violências contra pessoas e a Natureza, e as teologias dominantes as naturalizaram. É necessário se rebelar até se tornar intolerável que, por exemplo, se assassine impunemente a líderes ambientais ou se destruam milhares de hectares de ambientes naturais. A erradicação da pobreza deve ir de mãos dadas com a preservação ambiental.
Finalmente, é fundamental uma mudança radical no modo como se entendem os valores. A visão tradicional, compartilhada por muitas diferentes correntes próprias da Modernidade, insiste em que somente os humanos são sujeitos de valor e por isso a Natureza acaba sendo uma coleção de objetos que podem ser aproveitados. Isso permite o reducionismo de conceber a Natureza, mas também as pessoas como recursos, alguns com valor econômico e outros que podem ser descartados. As categorias de capital social ou naturais foram aceitas e um utilitarismos mercantilista se converteu na forma generalizada de sentir e entender o entorno ecológico e social.
Possivelmente, a maior heresia está em romper com essas amarras e reconhecer que outras formas de vida também têm valores que lhes são próprios e que estes são independentes da utilidade para os humanos. O antecedente mais claro desse esforço é o reconhecimento dos direitos da Natureza no Equador, aos que seguiram, por exemplo, um reconhecimento análogo na Amazônia da Colômbia – outra vez fica claro que estamos rodeados de ensaios de alternativas. Esta é uma mudança ética, não sobre sua dimensão moral, mas sobre como se entende o valor e como é atribuído.
Todos estes pontos, que não deixam de ser preliminares, têm em comum tentar romper com as blindagens que as crenças conferem aos extrativismos. Essa é uma dimensão que é rejeitada ou menosprezada por muitos, assumindo que as transformações não são coisas dos sentimentos, mas da razão. Contudo, as teologias extrativistas existem e nos deixam claro que é indispensável abordá-las para promover mudanças reais. E, conforme se indicou acima, é indispensável fazer isto antes que seja muito tarde.
* Nota de IHU On-Line:
BOTÂNICA designação comum, extensiva às árvores do gênero Larix, da família das Pináceas, nativas do hemisfério norte, que inclui espécies exploradas para extração de madeira
BOTÂNICA (Larix decidua) árvore caducifólia de grande porte, que fornece madeira vermelho-escura, muito resistente e usada na construção de casas de montanha, e de cujo alburno se extrai uma resina da qual deriva a chamada terebintina de Veneza (Fonte: Infopédia)
[1] Deriva do latim “heresie”, que por sua vez provém do grego, “hairesis”, que é escolher ou decidir. Na Idade Média, o herege era aquele que, “após uma escolha pessoal ou coletiva, discorda de uma parte dos valores (teológicos ou morais) considerados oficiais pela comunidade dos crentes, colocando em dúvida seus fundamentos ou suas aplicações. Ver Bonassie, P. (1983). Vocabulario básico de la historia medieval. Barcelona: Crítica.
[2] A Rede Igreja e Mineração é um espaço ecumênico que reage frente aos impactos e violações dos direitos sociais e ambientais provocados pela mineração na América Latina. Esta rede agrupa uma ampla diversidade de organizações, desde o Conselho Latino Americano de Igrejas e o Observatório de Conflitos Mineiros da América Latina (OCMAL) a grupos nacionais como Muqui no Peru ou Justiça nos Caminhos do Brasil.
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Teologias extrativistas e espiritualidades hereges. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU