27 Fevereiro 2019
"Esqueçamos, por um momento, as agruras de um governo ainda sem rumo e com ministros que nos envergonham e com políticos que representam mais os grupos que os elegeram que os reais interesses do povo. Apesar disso tudo, a alegria há de predominar", escreve Leonardo Boff, escritor, teólogo e filósofo.
O Brasil está vivendo uma das fases mais tristes e até macabras de sua história. Foi desmascarada a lógica da corrupção, presente em toda a nossa história, como parte de um Estado patrimonialista (colonialista, escravagista, elitista e anti-popular) e sequestrado durante séculos pelas oligarquias do ser, do ter, do saber, do dominar e do manipular a opinião pública. Por todo esse tempo, grassou a corrupção e não apenas, como se atribuiu, nos últimos anos, quase que exclusivamente ao PT (é verdade, que suas cúpulas foram contaminadas), feito bode expiatório como forma de ocultar a corrupção dos privilegiados de sempre.
Surgiu um novo “Collor”(“caça aos marajás”), o “mito” (Jair Bolsonaro) que iria exterminar a corrupção. Foram suficientes 50 dias de mandato para se identificar a corrupção também em suas próprias hostes, até em sua família. Muitos acreditaram ingenuamente na profusão de fake news e slogans de viés nazista: “Brasil acima de tudo”(“Deutchland über alles”) e “Deus acima de todos”. Qual Deus? Aquele dos neopentecostais que promove a prosperidade material mas é surdo à nefasta injustiça social e que dá muito dinheiro a seus pastores, verdadeiros lobos a tosquiar as ovelhas? Não é o Deus do Jesus pobre e amigos dos pobres, de quem falava Fernando Pessoa “que não entendia nada de contabilidade e que não conta que tinha uma biblioteca”. Era pobre mesmo que perambulava por todos os lugares anunciando “uma grande alegria para todo o povo” como relatam os evangelhos.
Dentro deste quadro sinistro se festeja o carnaval. Não poderia deixar de ser, pois é um dos pontos altos da vida de milhões de brasileiros. A festa faz esquecer as decepções e dá espaço às muitas raivas afogadas na garganta (como milhares em São Paulo, gritando indecentemente "B. vá tomar no c"). A festa, por um momento, suspende o terrível cotidiano e o tempo tedioso dos relógios. É como se, por um lapso de tempo, participássemos da eternidade, pois na festa se suspende o tempo dos relógios.
Pertence à festa o excesso, a ruptura das normas convencionais e das formalidades sociais. Lógico, tudo o que é sadio pode ficar doentio, como o caráter orgiástico de algumas expressões carnavalescas. Mas não é esta a característica do carnaval.
A festa é um fenômeno da riqueza. Aqui riqueza não significa possuir dinheiro. A riqueza da festa é a riqueza da razão cordial, da alegria, de mostrar um sonho de fraternidade ilimitada, gente da favela com gente da cidade organizada, todos fantasiados: crianças, jovens, adultos, homens e mulheres e idosos dançando, cantando, comendo e bebendo juntos. A festa é a exaltação de que podemos ser alegres e felizes mesmo dentro de desgraças coletivas.
Se bem refletirmos, a alegria do carnaval é uma expressão de amor que é mais que empatia. Quem não ama nada ou ninguém, não pode se alegrar, mesmo que o suspire de forma angustiada. Um teólogo da Igreja Ortodoxa, do século V da era cristã, São João Crisóstomo (de quem o Card. Dom Paulo Evaristo Arns era um grande entusiasta e leitor) escreveu bem: “ubi caritas gaudet, ibi est festivitas”; “onde o amor se alegra, aí se encontra festividade”.
Agora um pouco de reflexão: o tema da festa comparece como um fenômeno que tem desafiado grandes nomes do pensamento como R. Caillois, J. Pieper, H. Cox, J. Motmann e o próprio F. Nietzsche. É que a festa revela o que há ainda de infantil e mítico em nós no meio da maturidade e da predominância da fria razão instrumental-analítica que rege nossas sociedades.
A festa reconcilia todas as coisas e nos devolve a saudade do paraíso das delícias, que nunca se perdeu totalmente. Platão sentenciava com razão:”os deuses fizeram as festas para que pudessem respirar um pouco”. A festa não é só um dia que os homens fizeram mas também “um dia que o Senhor fez”, como diz o Salmo 117,24. Efetivamente, se a vida é uma caminhada onerosa, precisamos, às vezes, de parar para respirar e, renovados, seguir adiante com alegria no coração.
Donde brota a alegria da festa? Foi Nietzsche quem encontrou sua melhor formulação: “para alegrar-se de alguma coisa, precisa-se dizer a todas as coisas: “sejam bem-vindas”. Portanto, para podermos festejar de verdade precisamos afirmar positividade de todas coisas. Continua Nietzsche: “Se pudermos dizer sim a um único momento então teremos dito sim não só a nós mesmos mas à totalidade da existência” (Der Wille zur Macht, livro IV: Zucht und Züchtigung n.102).
Esse sim subjaz às nossas decisões cotidianas, em nosso trabalho, na preocupação pela família, pelo emprego ameaçado pelas novas leis regressivas do atual governo, na convivência com amigos e colegas. A festa é o tempo forte no qual o sentido secreto da vida é vivido mesmo inconscientemente. Da festa saímos mais fortes para enfrentar as exigências da vida, para a maioria, sempre lutada e levada na marra.
Temos boas razões para festejar nesse carnaval de 2019. Esqueçamos, por um momento, as agruras de um governo ainda sem rumo e com ministros que nos envergonham e com políticos que representam mais os grupos que os elegeram que os reais interesses do povo. Apesar disso tudo, a alegria há de predominar.
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Carnaval: celebrar a alegria de viver - Instituto Humanitas Unisinos - IHU