22 Fevereiro 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, 24 de fevereiro (Lucas 6, 27-38). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A proclamação das Bem-aventuranças, no Evangelho segundo Lucas, assim como no segundo Mateus, é seguida, por parte de Jesus, por um discurso dirigido àquela multidão que viera para escutá-lo quando ele descera com os Doze da montanha (cf. Lc 6, 17).
Em Lucas, esse ensinamento é mais breve e tem uma tonalidade diferente. Nele, não se registra mais o confronto, até mesmo polêmico, com a tradição dos escribas de Israel, mas emerge, ao contrário, a “diferença cristã” que os discípulos de Jesus devem saber viver e mostrar em relação aos gentios, aos pagãos no meio dos quais se colocam as comunidades às quais se dirige o Evangelho.
“A vós que me escutais, eu digo...” Essas são as primeiras palavras de Jesus, que introduzem uma demanda, um mandamento, uma exigência fundamental: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam”. É claro que essas palavras estão ligadas à quarta bem-aventurança dirigida aos discípulos perseguidos (cf. Lc 6, 22-23), mas parecem ser dirigidas a cada ouvinte que quer se tornar discípulo de Jesus.
O amor dos inimigos, portanto, não é apenas um convite a uma extensão extrema do mandamento do amor ao próximo (cf. Lv 19, 18; Lc 10, 27), mas é uma exigência primeira, fundamental, que parece paradoxal e escandalosa. Os primeiros comentaristas do Evangelho, com razão, julgaram esse mandamento de Jesus como uma novidade em relação a toda ética e sabedoria humana, e os próprios filhos de Israel sempre testificaram que, com tal exigência, Jesus ia além da Torá.
Por isso, devemos nos perguntar: é possível para nós, humanos, amar o inimigo, quem nos faz mal, quem nos odeia e quer nos matar? Se até mesmo que Deus, segundo o testemunho das Escrituras da antiga aliança, odeia os seus inimigos, os malvados, vinga-se deles (cf. Dt 7, 1-6; 25, 19; Sl 5, 5-6; 139, 19-22 etc.) e pede que os que creem nele odeiem os pecadores e rezem contra eles, será que um discípulo de Jesus poderá viver um amor para com quem lhe faz mal?
Assumimos como muito evidente que isso é possível, enquanto deveríamos nos interrogar seriamente e discernir seriamente que tal amor só pode ser “graça”, dom do Senhor Jesus Cristo a quem o segue. Também na nossa vida cotidiana, não é fácil nos relacionarmos com aqueles que nos criticam e nos caluniam, com aqueles que nos fazem sofrer, mesmo sem nos perseguir por causa de Jesus, com aqueles que nos agridem e tornam a nossa vida difícil, cansativa e triste.
Cada um de nós sabe que luta deve travar para não retribuir o mal recebido e sabe como é quase impossível nutrir no coração sentimentos de amor por aqueles que se mostram inimigos, mesmo que não nos vinguemos deles.
Com esse mandamento, que ele mesmo viveu até o fim na cruz, pedindo a Deus que perdoasse os seus assassinos (cf. Lc 23, 34), Jesus pede aquilo que somente por graça é possível, e, significativamente, é também Lucas quem testemunha que, com esse sentimento do amor pelos inimigos, morreu a primeira testemunha de Jesus, Estevão, que pediu a Jesus, seu Senhor, que não imputasse aos seus perseguidores a morte violenta que recebia deles (cf. Lc 7, 60).
Jesus, portanto, aqui, rompe com a tradição e inova ao indicar o comportamento do discípulo, da discípula: eis a justiça que vai além da dos escribas e fariseus (cf. Mt 5, 20), eis o esforço do Evangelho, eis – diria Paulo – “a palavra da cruz” (1Co 1, 18). Amar (verbo agapáo) o inimigo significa ir ao encontro do outro com gratuidade mesmo que ele se oponha a nós, significa querer o bem do outro mesmo que seja aquele que nos faz mal, significa fazer o bem, cuidar do outro amando-o como a si mesmo.
E Jesus dá exemplos, indica também comportamentos exteriores a serem assumidos, expressados na segunda pessoa do singular: não opor resistência a quem te fere nem a quem te rouba o manto; dá a quem te estende a mão, seja quem for, conhecido ou desconhecido, bom ou mau, e nunca te sintas credor daquilo que te foi tirado.
Mas isso não significa assumir uma passividade, uma rendição diante de quem nos faz mal, e o próprio Jesus nos deu o exemplo disso quando, esbofeteado na bochecha pela guarda do sumo sacerdote, objetou: “Se falei bem, por que me bates?” (Jo 18, 23).
Nesse ponto, Jesus formula a “regra de ouro”, que profere o discurso na segunda pessoa do plural: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. Regra formalizada positivamente, na qual a reciprocidade não é invocada como direito, muito menos como reivindicação, mas como dever para com o outro, medido pelo próprio desejo: “Fazer aos outros o que eu desejo que seja feito a mim”.
Poucos anos antes do ministério de Jesus, o rabi Hillel afirmava: “O que não queres que seja feito a ti, não o faça ao teu próximo”. Mas Jesus dá a tal reivindicação uma forma positiva, pedindo para fazer todo o bem possível ao próximo, até ao inimigo.
Só assim, amando os outros sem reciprocidade, fazendo o bem sem calcular uma vantagem e dando com desinteresse sem esperar pela restituição, vive-se a “diferença cristã”. Nesse comportamento, há a conformação do discípulo ao Deus de Jesus Cristo, aquele Deus a quem Jesus narrou como amoroso, capaz de cuidar dos justos e dos pecadores, dos crentes e dos ingratos.
Se Deus não condiciona o seu amor à reciprocidade, a receber uma resposta, mas dá, ama, cuida de toda criatura, o cristão também deveria se comportar desse modo no caminho rumo ao Reino, no meio da humanidade da qual faz parte.
Depois de ter reafirmado o mandamento do amor aos inimigos, Jesus faz uma promessa: haverá “uma recompensa (misthós) grande” nos céus, mas já agora, na terra, aqui, os discípulos se tornam filhos de Deus porque se cumpre neles o princípio “tal Pai, tal filho”. Imitar a Deus, até ser seus filhos e filhas: parece uma loucura, uma possibilidade incrível, mas essa é a promessa de Jesus, o Filho de Deus que nos chama a nos tornarmos filhos de Deus.
Se, na Torá, o Senhor pedia aos filhos de Israel em aliança com ele: “Sede santos, porque eu sou Santo” (Lv 19, 2), e isso significava ser distintos, diferentes em relação à mundanidade, em Jesus essa advertência se torna: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. Na tradição das palavras de Jesus segundo Mateus, o mandamento ressoa assim: “Sede perfeitos (téleioi) como o vosso Pai que está no céus é perfeito” (Mt 5, 48).
Aqui, no entanto, o que se evidencia é a misericórdia de Deus. Por outro lado, ainda segundo os profetas, a santidade de Deus era misericórdia, mostrava-se na misericórdia (cf. Os 6, 6; 11, 8-9). A misericórdia, o amor visceral e gratuito do Senhor que é “compassivo e misericordioso” (Ex 34, 6), deve também se tornar o amor concreto e cotidiano do discípulo de Jesus pelos outros, ilustrado por duas sentenças negativas e duas positivas.
Acima de tudo: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados”, porque ninguém pode tomar o lugar de Deus como juiz das ações humanas e daqueles que são por elas responsáveis. Preste-se atenção e se compreenda: Jesus não nos pede para não discernir as ações, os fatos e os comportamentos, porque, sem esse juízo (verbo kríno), não se poderia distinguir o bem do mal, mas nos pede para não julgar as pessoas.
De fato, uma pessoa é maior do que as ações malvadas que realiza, porque nunca podemos conhecer o outro plenamente, não podemos medir até o fim a sua responsabilidade. O cristão examina e julga tudo com as suas faculdades humanas iluminadas pela luz do Espírito Santo, mas para diante do mistério do outro e não pretende ser capaz de julgá-lo: só a Deus cabe o juízo, que deve ser devolvido a ele com temor e tremor, reconhecendo sempre que cada um de nós é pecador, é devedor para com os outros, solidário com os pecadores, necessitado como todos da misericórdia de Deus.
Portanto, cabe ao discípulo – eis as afirmações positivas – perdoar e doar: per-doar é fazer o dom por excelência, sendo o perdão o dom dos dons. Mais uma vez, as palavras de Jesus negam toda possível reciprocidade entre nós, humanos: só de Deus podemos esperar a reciprocidade! O dom é a ação de Deus e deve ser a ação dos cristãos em relação aos outros homens e mulheres.
Então, no dia do juízo, aquele juízo que compete somente a Deus, quem deu em abundância receberá do Senhor um dom abundante, como uma medida de trigo que é calcada, cheia e transbordante. A abundância do dar hoje mede a abundância do dom de Deus amanhã.
A “diferença cristã” tem um preço alto, mas, pela graça do Senhor, é possível.
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A diferença cristã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU