14 Fevereiro 2019
"Apesar dos aspectos negativos assinalados, a sociedade digital apresenta - como toda experiência humana - características ambivalentes. Ao lado dos riscos, que impõem vigilância e controle, novas oportunidades de crescimento acontecem, que merecem ser exploradas e valorizadas. Muitos são os desafios que se abrem e que devem ser aceitos", escreve Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, n. 4, 15-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O fenômeno digital também alcançou na Itália níveis de difusão elevadíssimos, com um avanço constante e um envolvimento cada vez maior de pessoas de diferentes idades e pertencentes a diferentes categorias sociais. Para limitam a resposta a um único exemplo o Instagram, que é a mídia social mais popular na atualidade alcançou no ano passado 19 milhões de usuários ativos na Itália por mês, contra os 14 milhões do ano anterior; 36% superior aos 27% registrados um ano antes.
Segundo as estimativas do Observatório Nacional sobre tendências das mídias sociais, é possível supor um uso diário de pelo menos 11 milhões de italianos.
Crescimentos inferiores, mas não tão distantes ocorreram (e ocorrem) em outras mídias sociais, revelando o quanto a sociedade digital tenha se tornado a sociedade de fato, com um inevitável (profundo) impacto sobre os comportamentos individuais e coletivos. Isso implica uma mudança de mentalidade e de costumes de vastas proporções, um verdadeiro e próprio novo modo de estar-no-mundo com uma alteração das tradicionais modalidades de viver a relação com os outros, com as coisas e com tempo.
Muitas e de diversas natureza são as reflexões críticas levantadas nos últimos anos por filósofos, antropólogos e psicólogos.
A objeção mais importante que é apresentada por várias partes é de estar sujeitos a uma espécie de homologação, que se traduz no plano pessoal em um amortecimento (até o desaparecimento) do senso crítico e da capacidade criativa, em uma adaptação passiva às lógicas dominantes, com a consequente expropriação de própria identidade individual. Como bem observa Bernard Stiegler "a eliminação do que não pode ser calculado e a marginalização do que é singular" levam inevitavelmente "a ser teleguiados com base nos critérios de mercado", dando vida àquele “'homem sem qualidades” de que fala Musil.
As razões desse processo devem ser buscadas em várias frentes, mas todas têm uma ligação estreita com as dinâmicas próprias dos novos instrumentos. O uso continuado do display, de fato, impede a concentração e ao mesmo tempo afrouxa as emoções, especialmente devido à ausência do corpo, o que favorece, por conseguinte, a aridez interior e até mesmo a dissociação pessoal.
A ilusão é de viver uma vida hiperconectada, mas na verdade o mundo que se conhece é apenas aquele representado pelas mídias - o que não passa por sua mediação é considerado quase nada - e se trata de um mundo fragmentado e dividido, de uma vida "a uma dimensão", que gera solidão e desenvolve uma tendência à "polarização cultural", isto é, a acreditar e difundir a própria "verdade", ignorando a realidade para o benefício das próprias opiniões subjetivas.
A vida social também é afetada, onde as estruturas de convivência são esvaziadas de seus conteúdos e de sua função; onde, também por causa da anulação da diversidade, falta o crescimento daquela racionalidade crítica que é uma condição necessária para dar vida a uma sociedade aberta. É compreensível nesta situação a afirmação do fenômeno das fake news que tiveram (e ainda têm) um impacto significativo sobre o destino das democracias. A esse respeito foi clamoroso o escândalo de Cambridge Analytica, uma empresa de consultoria política, cuja coleta de dados de 87 milhões de usuários do Facebook influenciou a campanha presidencial USA de 2016 trazendo uma grande contribuição para a vitória de Trump.
Além do que foi aqui assinalado, existem repercussões significativas da sociedade digital que merecem uma especial atenção devido aos imediatos reflexos de caráter antropológico. Na verdade, em primeiro lugar, a esse respeito, está em jogo a questão da liberdade. Não é verdade que uma sociedade rica de informação e na qual todos podem se expressar seja automaticamente uma sociedade mais livre.
O fluxo de conexões múltiplas e permanentes e a total transparência, para além do risco (sempre à espreita) de ser assomado pela avalanche dos dados recebidos, geram desorientação e aumentam a possibilidade de ser manipulados.
Sem falar que a tendência a absolutização do próprio ponto de vista, do qual se procura confirmação através das media, provoca a acentuação da violência no debate social e político.
A prevalência do conformismo desencadeia fortes contraposições, transformando em inimigo quem pensa de forma diferente e pulverizando a comunicação. Caraterístico é o caso do Facebook, onde o uso de técnicas cada vez mais sofisticadas para induzir a dependência nos usuários favorece a difusão de linguagens que alimentam a intolerância. Assiste-se, assim, a um forte aumento do conflito social, enquanto a liberdade sofre uma severa contração, e é principalmente vivenciada - observa com perspicácia Gianni Vattimo - em uma condição particularmente precária "como oscilação entre pertencimento e desorientação”. Outra não menos relevante é constituída pela percepção do tempo.
Como ressalta o economista Daniel Kahneman, que distingue entre "pensamentos rápidos" e "pensamentos lentos", o digital leva a recorrer cada vez mais aos mais rápidos, atrofiando a capacidade de lidar com pensamentos lentos também para as situações mais complexas, que exigem decisões ponderadas, para as quais uma importância determinante é exercida pela avaliação dos fatores em jogo, a proposição de hipóteses e o discernimento mental sustentado por sólidas argumentações.
A experiência de um tempo contraído, em razão da velocidade com a qual se deve lidar com as situações, obriga a permanecer na superfície, acostumando-se a dar espaço exclusivamente a temas mais leves – a própria leitura sofre um contragolpe: a velocidade corre o risco de comprometer a compreensão - e se acaba chegando apenas a uma representação parcial (e frequentemente deformada) da vida e do mundo.
Apesar dos aspectos negativos assinalados, a sociedade digital apresenta - como toda experiência humana - características ambivalentes. Ao lado dos riscos, que impõem vigilância e controle, novas oportunidades de crescimento acontecem, que merecem ser exploradas e valorizadas. Muitos são os desafios que se abrem e que devem ser aceitos. A impossibilidade de parar o futuro - é absurdo pensar que se possa voltar atrás - exige a predisposição de anticorpos que permitam evitar as recaídas negativas mencionadas, e impõe o desenvolvimento de condições que tornam possível usufruir positivamente das novas oportunidades que se abrem. A primeira ordem de intervenções necessárias para que isso ocorra chama em causa as instituições públicas, solicitadas a promulgar novas regras e a impor novas sanções para garantir transparência nos processos em curso. Alguma iniciativa nessa direção felizmente já foi realizada.
Data de 25 de maio passado o Regulamento da Comissão Europeia, destinado a "reforçar e tornar mais homogênea a proteção dos dados pessoais". Nesse regulamento estão incluídas uma série de medidas destinadas a criar um regime de transparência, que prevê: que a utilização de dados dos usuários não possa ocorrer sem a sua autorização direta, com a obrigação de seu cancelamento no caso de o consentimento ser retirado por eles; que os clientes devem ser informados da eventual existência de uma campanha política em suas páginas e percebam quem está pagando pelas informações; finalmente, que os sistemas são configurados para reconhecer as fake news e remover os conteúdos violentos. Tudo isso com a imposição de uma auto-regulamentação e com a previsão de penalizações de até 4% do faturamento.
Para essa ação de longo prazo no lado institucional, objetivada a colocar ordem na rede para proteger a liberdade e os direitos dos usuários, foram se somando, nos últimos anos, iniciativas não menos louváveis de cidadãos preocupados com a preservação do "bem comum". Merece ser lembrada, a tal respeito, por sua exemplaridade a criação de Inrupt, uma start-up que se propõe a remover o controle da web de gigantes como Google, Facebook e Amazon através da ativação de uma plataforma livre denominada Solid, que permite a cada um conservar os próprios dados e evitar seu controle decidindo, caso queira, com quem compartilhá-los. Timothy Berners-Lee, o autor deste projeto, afirma ter se sentido na obrigação, diante do uso perverso da web por forças poderosas que perseguem seus próprios fins lucrativos, de agir "para restaurar o poder e a ação da pessoa". Ao lado dessas providências, públicas e privadas, destinadas a dar um rosto humano e democrático para a web em nome da transparência e da liberdade, não pode (e não deve) faltar – e esta é a segunda ordem de intervenções a ser praticada - uma ação educativa para o uso das ferramentas que desenvolva a capacidade de interagir criticamente com os conteúdos fornecido por elas, sabendo reconhecer as deformações da verdade, devidas não só a formas explícitas de falsificação, mas também (e especialmente) a apresentação de episódios reais, que assumem, graças à sua obsessiva repetição, conotações totalmente irreais.
A complexidade dos processos da sociedade digital e a multiplicidade dos efeitos gerados por ela exigem um suplemento de senso crítico, que não só permita tomar a distância das notícias falsas, identificando a origem e as modalidades de expressão, mas também ajude na não confundir com verdade o que é apenas opinião, por mais plausível que seja - os algoritmos nada mais são que opiniões expressas em código informático - e conservar a atitude para o discernimento em toda situação.
Nestas condições (e somente nestas) é possível se beneficiar das potencialidades positivas da web, sem incorrer em formas de manipulação e adquirindo novas possibilidades de conhecimento e de ação.
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Riscos e desafios da sociedade digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU