13 Fevereiro 2019
A cultura do puxadinho, do quartinho deve sangrar as consciências adormecidas.
O artigo é de Roberto Tardelli, advogado e Procurador de Justiça Aposentado, publicado por CartaCapital, 12-02-2019.
Demorou para que eu percebesse. Foram anos, muitos de minha vida, sem que me desse conta de que aquilo não poderia ser natural, normal, moral, embora provavelmente fosse lícito, porque víamos muitos iguais, uns até estranhamente acanhados, mas, como se diz na linguagem de hoje, absolutamente viralizado. As casas, apartamentos, fossem de que tamanho fossem, tinham suas “dependências de empregada”. Sempre assim, no feminino, empregada.
São quartos minúsculos, desprovidos de armários, em que cabe uma pequena cama, um catre, um pequeno espaço para umas poucas roupas, uma velha TV, ligada não raro em uma gambiarra, um fio puxado do soquete da lâmpada da área de serviço. Na saída do quarto, a área de serviço, único lugar da casa que é de livre circulação para a “empregada”. Tanque, varal, roupas, vassoura, balde, rodinho, panos de chão e panos de prato, ao lado um banheiro que surpreende pela justaposição do chuveiro sobre o vaso sanitário e uma pequeníssima pia e um espelho que mal cabe um rosto.
No Brasil, o xixi da empregada é mais grave e sujo do que o xixi dos patrões. Para a empregadas, o elevador é o de serviço. Será preciso muita coragem e destemor para que uma delas se atreva ao elevador “social”.
É evidente que “as dependências de empregada” são ainda resquícios da ordem escravagista que assentou nossa História por nada menos do que 388 anos, o mais longevo e estável instituto jurídico de que temos notícia, a escravidão.
É um puxadinho da Casa Grande.
O “quarto de empregada”, já uma Instituição Arquitetônica, é um exemplo daquilo que se cuida chamar de “racismo estrutural”, uma forma cruenta de discriminação, na medida em que se naturalizou e não mais provoca gritos de protestos. Não se vê, não se percebe e não se reflete sobre a miséria ideológica desse apartheid de engenharia, presente em nove de cada dez edificações domésticas no país.
***
O “Ninho do Urubu”, nome do Centro de Treinamentos do Clube de Regatas Flamengo, o de maior torcida no Brasil, tinha seu puxadinho invisível, feito às escondidas, para alojar adolescentes que sonhavam com a glória e a fortuna do futebol. Todos foram retirados de suas famílias, a maioria, a imensa maioria, de rapazes negros e pobres, foram retirados de seus núcleos de amigos, cachorro, peladas, escolas, namoradas, ficantes, paqueras, cidade, praça, rua e foram levados para morar sob a direta responsabilidade do clube.
Algum diretor ou funcionário deveria ter um termo de guarda desses meninos e responder por eles, por exemplo, junto a escolas, que imagino frequentassem. Comiam, treinavam, sonhavam em ser craques, dormiam, estudavam o pouco que estudavam, tudo de suas vidas, ali.
Todavia, como suas mães, tias e avós, eles dormiam no “quarto de empregada” do clube. Um alojamento, que foi descrito pelo MP como parecido àqueles das instituições correicionais, que foi interditado pela prefeitura e omitido pelo clube à prefeitura, esse era o lugar que destinavam os senhores diretores do clube às suas promessas, a seus futuros craques, àqueles que encheriam os cofres do Mengão de dinheiro europeu, chinês, árabe.
Em dependências que jamais se saberão como eram, mas que se sabe que eram inteiramente inadequadas ao abrigamento de seres humanos, os filhos das empregadas eram colocadas e deles se cobrava uma constante atitude de gratidão com aquele clube, time, nação que os recolhera da pobreza profunda para catapultá-los para glória.
A cultura do “puxadinho”, a cultura de que “para pobre, qualquer coisa basta”, a cultura da esperteza, da cupidez, do racismo estrutural, fez com que diretores bem nascidos e ricos ou enriquecidos construíssem alojamentos onde não permitiriam que seus próprios filhos se abrigassem.
Amontoaram crianças de outras famílias, de famílias que também lhes deveriam ser gratas, eternamente gratas.
O fogo é a forma mais cruenta de morrer ou matar. Separados por paredes, feitas de material altamente inflamável e comburente, os meninos não tiveram chances. Morreram, não porque se permitiram a condutas de risco, uma vez que estavam dormindo. Morreram de irresponsabilidade e culpa grave, gravíssima, dos adultos que os tomaram de suas famílias, cuja dor nos rasga, nos comprime, nos faz pensar em cada uma das mães, em cada um dos pais, irmãos, amigos, namoradas.
A cultura do puxadinho, do quartinho, a esperteza da gambiarra causou Brumadinho, custou centenas de vidas e destruiu a natureza, por décadas. A cultura do puxadinho matou as crianças que moravam no Flamengo.
Não vai demorar e alguma autoridade vai sustentar e jurar aos céus, bradar na TV, que tudo se resolverá no dolo eventual, uma vez que o Zé Um, que era o funcionário responsável, teria assumido o risco das mortes. Zé Um, o único, acompanhado talvez de um Zé Dois, sentirá o peso da lei. O dolo eventual sofre de mutações que o foram tornando apenas uma arma de vingança social, em tragédias de grande porte. Houve um tempo em que o dolo eventual tinha até uma principiologia, mas são águas passadas. Hoje, o dolo eventual é o martelo que faz desabar o peso da lei.
O peso da lei substitui o peso das consciências e abafa o mau cheiro insuportável da memória escravista, que ainda tolera que crianças sejam amontoadas, em troca da venda de um sonho, sem lhes dizer que elas, as crianças, não passam de eventuais mercadorias de luxo.
O Direito Penal jamais conseguiu e jamais conseguirá consolar tragédias, sem que se sacrifiquem princípios jurídicos elementares; o que está em jogo é uma formatação social, é uma licença que todos concedemos a todos para que haja essa discriminação de tratamento social.
As famílias desesperadas devem estar se perguntando por que motivos deixaram seus filhos ir, de mochila nas costas e com um sonho nos pés, para morrerem longe de seus entes queridos.
Foi emblemático que esse absurdo acontecesse no Mengão, o time do povo, do pobre, da comunidade, da favela. Foi emblemático porque nem ele escapou ao apartheid brasileiro.
Fossem filhos dos dirigentes e tenho certeza que as instalações seriam da maior segurança possível, algo que se dispensou aos filhos das empregadas, uma vez que crescemos, nós, burgueses brancos, burguesas brancas, vendo-as no quartinho abafado e quente, nos fundos da casa/apartamento, com a televisão puxada de um fio qualquer de uma tomada próxima.
Essas mortes devem sangrar as consciências adormecidas, devem sangrar e doer naqueles que se prestam a combater “ideologias de gênero, ideologias de raças”, seja lá o que for isso.
E, por favor, que ninguém diga que todos os clubes são assim, que há clubes em que o tratamento dado às divisões de base é muito pior. Esse argumento só agudiza o grau do racismo estrutural que atingimos e torna tudo ainda mais funesto, triste e detestável.
Na Bahia, na terra de todos os santos, a madame milionária saúda seus convidados, abanada por jovens negras, vestidas de mucama. Era seu aniversário e tudo não passou de uma brincadeirinha, mal interpretada por uma gente mal humorada, que vê maldade em tudo. Ela pagou cachê (provavelmente, no valor de uma diária de faxineira, não mais do que isso) para as meninas, ora bolas.
Em Brasília, um governo delirante e cheio de ódio, estuda medidas para acabar com o sistema de cotas. O Ministro da Educação não se conforma que o ensino superior possa ser atingido pelos filhos das mulheres dos quartos de empregada. Treze meninos pretos foram mortos, numa única noite, num único fato. Dez meninos dormiam, quando foram calcinadas pelo fogo, causado pelo desprezo racista de quem os tirou de suas famílias. Era um puxadinho, era uma coisa à toa, mas que estava bom demais para aquela molecada miserável.
Minha dor, minha mais profunda dor, minha mais doída solidariedade às famílias de Christian Esmério, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, Pablo Henrique da Silva Matos, Bernardo Pisetta, Vitor Isaias, Samuel Thomaz Rosa, Áthila Paixão, Jorge Eduardo, Gerson Santos e Rykelmo Viana, bem como a Jhonata Cruz Ventura, que respira por aparelhos, Cauan Emanuel Gomes Nunes e Francisco Diogo Bento Alves.
Aos dirigentes do Flamengo, que passem anos pagando indenizações que compensem a perda econômica das famílias, que sejam alijados do futebol e que recebam sanções justas ao que fizeram.
À nação rubro-negra, a bandeira dá o tom da mensagem, o rubro do sangue dos garotos e o luto eterno pelas mortes e que a torcida cante os nomes desses meninos, antes, durante e depois de todos os jogos do Mengão.
Ad eternum.
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Meninos do Flamengo foram mais uma vítima do racismo estrutural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU