10 Janeiro 2019
“Os debates em círculos conservadores e tradicionalistas na Igreja oferecem um contraste gritante com a visão desse pontificado sobre a relação entre a Igreja e o mundo moderno. Alguns ‘ismos’ teológicos um tanto mofados estão novamente em circulação.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Commonweal, 08-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na exposição universal de 1867 em Paris, o Estado papal optou por ser representado por uma catacumba. Era uma época em que o papado, que já havia perdido a maior parte do Estado papal e também perderia Roma em 1870, era apocalíptico sobre o futuro da Igreja no mundo moderno.
Ao mesmo tempo, os leigos católicos estavam entrando em uma nova era de mobilização e engajamento com o mesmo mundo, com o encorajamento da hierarquia católica, que sabia que perdera grande parte de sua influência direta sobre a sociedade moderna.
Hoje, durante o pontificado do Papa Francisco, vemos uma situação oposta: um papa que prega “a alegria do Evangelho” e tem pouco tempo para nostalgia, e uma crescente coorte de intelectuais católicos (uma minoria na Igreja, mas especialmente ativa nos Estados Unidos) que olham com expectativa para o século XIX.
Os debates em círculos conservadores e tradicionalistas na Igreja de língua inglesa – e particularmente nos Estados Unidos – oferecem um contraste gritante com a visão desse pontificado sobre a relação entre a Igreja e o mundo moderno. Alguns “ismos” teológicos um tanto mofados estão novamente em circulação.
Há, por exemplo, uma nova onda de ultramontanismo que busca uma concepção idealizada de Roma para seus pontos de referência. Há também um relativo ressurgimento do “integrismo”, inspirando congressos na Universidade de Notre Dame e em Harvard. O novo integrismo dá um passo além do pós-liberalismo católico mais provisório, ou da simples proclamação da crise do catolicismo liberal. O integrismo é a tentativa de imaginar para a Igreja Católica – mas também para o mundo em que a Igreja vive – um futuro que rejeite a separação “liberal” entre os poderes temporal e espiritual, e subordina o primeiro ao segundo.
De acordo com Sacramentum Mundi (publicado pela primeira vez entre 1968 e 1970, e agora disponível online – seu editor geral foi Karl Rahner, SJ), o integrismo é:
“A tendência, mais ou menos explícita, de aplicar padrões e diretrizes tiradas da fé para toda a atividade da Igreja e de seus membros no mundo. Ela surge da convicção de que a autoridade básica e exclusiva para dirigir a relação entre o mundo e a Igreja, entre a imanência e a transcendência, é a autoridade doutrinal e pastoral da Igreja.”
Aqui, pode-se detectar uma diferença sutil entre a definição clássica de integrismo e a sua variação do século XXI. Essa nova linhagem está focada quase exclusivamente no campo político. De fato, o que mais se assemelha é outro fenômeno da cultura católica do século XIX: o intransigentismo – a crença de que qualquer concessão ou acomodação com o mundo moderno põe a fé em perigo.
Ao contrário do mero conservadorismo, que valoriza elementos do passado e procura preservá-los, o intransigentismo rejeita o moderno de forma direta e preventiva. Isso tem consequências para o pensamento teológico dos católicos que hoje se chamam integristas, tradicionalistas e ultramontanistas.
Para esses católicos, os últimos 60 anos – e especialmente o Vaticano II – ou não importam de modo algum ou só importam se puderem ser interpretados como uma confirmação do ensinamento passado da Igreja.
Essa é, entre outras coisas, uma leitura errada do que o Papa Bento XVI disse sobre a continuidade; enquanto ele enfatizava a continuidade da própria Igreja como um único sujeito estendido ao longo da história, isso não significa necessariamente que toda doutrina permaneça constante. Os documentos da Igreja que são essenciais para entender como a tradição teológica funciona na Igreja Católica, especialmente as quatro constituições do Vaticano II (por exemplo, a Dei verbum sobre a Escritura, a Tradição e o Magistério), não fazem realmente parte da cultura dessa visão de mundo intransigente. Tipicamente, essa cultura teológica lê a declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae, como se ela estivesse perfeitamente de acordo com o ensinamento anterior da Igreja sobre esse tópico.
O novo intransigentismo celebra o “Sílabo dos Erros” de Pio IX (1864) e a sua recusa em se adaptar aos tempos modernos. O Sílabo apontou seu fogo contra quatro desenvolvimentos modernos: a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa e o Estado liberal. Mesmo assim, havia raízes comuns entre o intransigentismo teológico, o legitimismo (a legitimidade sagrada do poder político) e o tradicionalismo legal (em oposição ao constitucionalismo). Os reacionários católicos de hoje acrescentariam mais um alvo: o Vaticano II, entendido como a capitulação da Igreja à modernidade e à ordem liberal.
É interessante como o catolicismo liberal do século XIX é diferente do catolicismo liberal de hoje, e como o intransigentismo católico do século XIX é semelhante ao intransigentismo de hoje. O catolicismo liberal hoje aceita muito mais a sociedade individualista e burguesa do que no século XIX, quando tinha um viés mais profético. Mas o intransigentismo realmente não mudou muito nos últimos 150 anos, especialmente quando se trata da questão do Estado confessional – uma questão sobre a qual o ensinamento oficial da Igreja mudou, sim, durante esse período.
Seria interessante perguntar aos proponentes desse tipo de catolicismo o que eles acham da difícil situação dos católicos que têm de viver como minorias sob regimes integristas confessionais não cristãos, e por que esses católicos não parecem ter tanto medo do liberalismo.
Todos os interessados nesse assunto devem ler o que Yves Congar escreveu sobre isso em um famoso apêndice ao livro “Verdadeira e falsa reforma na Igreja”, de 1950 (curiosamente, Congar decidiu não publicar esse apêndice sobre o “integralismo e a mentalidade de direita” na segunda edição do seu livro em 1969, e a mesma decisão foi tomada para a tradução em inglês publicada em 2011).
Lá, Congar abordava a afinidade desse tipo de catolicismo pela direita política, fundamentado no sonho de restaurar uma ordem monárquica, ou pelo menos autoritária. O “integrismo” e a “mentalidade de direita” convergem na tendência de condenar tudo o que apareceu depois de uma certa data na história.
Congar listou oito elementos típicos da mentalidade integrista:
- o pessimismo sobre a natureza humana;
- a crença na necessidade de uma autoridade forte;
- a desconfiança no desenvolvimento doutrinal;
- uma inclinação para assegurar que o catolicismo não se torne muito fácil;
- uma ênfase em fórmulas dogmáticas sobre a realidade subjetiva da fé;
- uma preferência pelo raciocínio dedutivo sobre o raciocínio indutivo;
- o autoritarismo eclesial; e
- a ideia de que a eclesiologia da Igreja deveria ser moldada não pela dimensão mística, mas por uma hierarquia rígida.
O integrismo, continua Congar, não é uma heresia, porque escolhe a ortodoxia e a hierarquia. Mas Congar observa: “Uma ênfase exagerada na ortodoxia também pode ser um modo de abandonar o catolicismo”. E acrescentava as palavras de John Henry Newman sobre o integrismo: “Eles constroem uma Igreja dentro da Igreja (...) enquanto fazem de seus pontos de vista um dogma. Eu não estou defendendo a mim mesmo contra eles, mas sim contra o que eu chamaria de seu espírito cismático”.
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Uma Igreja dentro da Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU