08 Janeiro 2019
Medida contra descendentes de escravos, que para o presidente “não servem nem para procriar”, foram anunciadas logo após a posse; observatório mostrou em outubro os interesses da família do capitão nas terras tradicionais, no Vale do Ribeira.
A reportagem é de Leonardo Fuhrmann, publicada por De Olho nos Ruralistas, 05-01-2019.
Assim como a demarcação de terras indígenas, o reconhecimento de territórios quilombolas também está ameaçado pela decisão do governo Jair Bolsonaro de deixar o tema sob o comando do Ministério da Agricultura. Atualmente, são 230 territórios de remanescentes que aguardam a identificação, segundo dados da Fundação Palmares, ligada ao governo federal.
De Olho nos Ruralistas mostrou ontem o impacto das medidas do governo Bolsonaro para as terras indígenas: “Governo Bolsonaro coloca em risco a demarcação de 232 territórios indígenas“. O poder de decidir sobre essas terras – indígenas e quilombolas – passará para as mãos do ministério controlado pela ruralista Tereza Cristina (DEM-MS), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que representa os interesses do setor no Congresso.
Há um agravante no caso da decisão sobre quilombolas. A própria família do presidente, criado no Vale do Ribeira (SP) tem interesses diretos em terras quilombolas. O cunhado de Jair Bolsonaro, casado com uma de suas irmãs, foi condenado em setembro por invadir um desses territórios, no município de Iporanga: “Cunhado de Bolsonaro é condenado por invasão de quilombo no Vale do Ribeira“.
O candidato a deputado federal apoiado por Bolsonaro no Vale do Ribeira produz banana na região, onde se concentra boa parte das comunidades quilombolas paulistas. Ele também foi condenado, mas por invadir o Parque Estadual Caverna do Diabo. Após as eleições, foi recebido pelo então deputado, em Brasília: “Bolsonaro recebe empresário condenado por plantar bananas em parque estadual no Vale do Ribeira“.
A medida provisória que transfere a identificação de terras quilombolas foi publicada na noite de terça-feira. O ministério tratará também da demarcação de terras indígenas, a regularização fundiária na Amazônia, a reforma agrária e o Serviço Florestal Brasileiro, responsável pela recomposição florestal, proposição de planos de manejo e dos processos de concessão florestal também ficarão subordinados a este ministério.
O presidente já havia anunciado, durante a campanha e antes de tomar posse, que não pretendia demarcar um único centímetro de terra para os quilombolas durante os quatro anos de seu governo. Contra os quilombolas, Bolsonaro chegou a usar um argumento de autoridade: sabia do que está falando porque esteve lá. Em palestra na Hebraica, no Rio, em abril de 2017, ele relatou uma suposta visita a um quilombo no município de Eldorado, no Vale do Ribeira, região em que passou boa parte de sua infância e adolescência e onde alguns de seus irmãos e sobrinhos ainda moram:
– Quilombolas é outra brincadeira. Eu fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem pra procriador serve mais.
Segundo os quilombolas da região, uma das mais pobres do estado de São Paulo, a fala de Bolsonaro não é baseada em nenhuma observação da realidade local. Até porque, dizem, ele nunca esteve em nenhum dos quilombos do Vale do Ribeira: “Quilombolas de Eldorado dizem que Bolsonaro nunca os visitou“.
Enviamos em outubro uma equipe de reportagem à região. Confira um dos três vídeos publicados na época:
O candidato foi alvo de denúncia da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pela prática, indução e incitação da “discriminação e preconceito contra comunidades quilombolas”. A primeira turma do Supremo Tribunal Federal livrou Bolsonaro de responder por racismo. Considerou que a liberdade de expressão e, principalmente, a imunidade parlamentar o livram de responder criminalmente pelas declarações. Os ministros Marco Aurélio Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes votaram pelo arquivamento da denúncia.
Dos 230 pedidos em análise na Fundação Palmares no dia 26 de novembro, 38 ainda aguardavam a visita técnica para início do processo de identificação. Destes, 18 são na Bahia, 8 em Goiás, 4 no Maranhão e 4 em Minas Gerais. Os outros 192 estão em análise. Destes, 60 são no Maranhão, 32 na Bahia e 26 em Minas Gerais.
Segundo dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Maranhão era o único estado do Brasil em que mais da metade da população vivia em situação de extrema pobreza. O estado era também aquele com maior população na zona rural.
Ao todo, o Brasil reconheceu, desde 2004, 3.212 comunidades quilombolas: 783 na Bahia, 754 no Maranhão, 366 em Minas Gerais e 259 no Pará. A fundação não publica informações sobre o tamanho do território destas comunidades.
Em Eldorado, município citado por Bolsonaro, já existem nove territórios identificados como quilombolas: Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, São Pedro, André Lopes, Pedro Cubas (1 e 2), Sapatu e Poça. Mais um deles está em análise, João Surrá.
A prefeitura de Eldorado, por outro lado, enxerga nas comunidades quilombolas um atrativo turístico:
– Eldorado congrega vários grupos remanescentes de quilombos. Na viagem ao Circuito você terá a oportunidade de conhecer a organização das comunidades de Ivaporunduva, André Lopes, São Pedro e Pedro Cubas entre outras, visitar cachoeiras, como as quedas de Meu Deus e Sapatu, percorrer trilhas, acompanhar o preparo de comidas típicas e aprender a ler e interpretar o patrimônio histórico-cultural atual com os contadores de história, percebendo a diversidade cultural geral e específica das comunidades quilombolas. Além disso, manifestações como a Nhá Maruca (dança tradicional), a capoeira, a Tutuca (pilagem de arroz), preparo de farinha, entre outras, poderão ser vivenciadas ativamente.
O site da prefeitura destaca ainda que Ivaporunduva é a comunidade mais antiga do Vale do Ribeira e tem 80% de sua área de Mata Atlântica preservada.
Além de João Surrá, outras três comunidades quilombolas do Vale do Ribeira estão sob análise da Fundação Palmares: Rural Cerco, em Barra do Turvo, Jurumirim, em Iporanga, e Bairro Retiro, em Cananéia.
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230 territórios de quilombolas têm reconhecimento ameaçado pelo governo; cunhado de Bolsonaro invadiu quilombo em SP - Instituto Humanitas Unisinos - IHU