05 Janeiro 2019
“Nós somos Reis que acreditam ser Mendigos. Não ponho em discussão apenas o cristianismo, mas também toda a civilização ocidental e a sua filosofia, segundo a qual nós viemos do nada e acabamos no nada. Essa é a essência do niilismo. Não, cada um de nós é um deus com a convicção de ser contingência, sombra de um sonho.”
A opinião é do filósofo italiano Emanuele Severino, em entrevista a Pier Luigi Vercesi, publicada por Corriere della Sera, 31-12-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Professor Emanuele Severino, “filósofo herege”, permita-nos a simplificação para poder lhe fazer a primeira pergunta: o que se sente ao sofrer uma condenação do Santo Ofício, como ocorreu com Galileu Galilei? Aliás, justamente enquanto os estudantes universitários, na Universidade Católica de Milão, onde o senhor lecionava, levantavam as barricadas?
Eu tentava evitar que o meu discurso filosófico fosse confundido com as manifestações estudantis, até porque Mario Capanna, seu líder, pedira para se formar comigo. As minhas ideias amadureciam há muito tempo, desde que, em trabalhos anteriores, eu havia apoiado a possibilidade de que o cristianismo fosse um erro. Tudo precipitou em 1964, quando escrevi Ritornare a Parmenide, livro no qual ficava evidente não só que o cristianismo poderia ser uma loucura, mas que certamente o era.
Tese defendida por um jovem estudioso educado em ambientes católicos.
Dois tios jesuítas e duas tias religiosas na Sicília, escolas com os jesuítas em Bréscia, universidade em Pávia no colégio católico Borromeo e uma maravilhosa relação com o Mons. Francesco Olgiati, número dois da Universidade Católica depois do padre Gemelli. Olgiati me defendeu quando o Vaticano se opôs aos meus trabalhos anteriores limitando-se a sugerir: “Filhinho, você não pode substituir as palavras ‘fé’ e ‘cristianismo’ por outras mais genéricas?”. Mantive-me firme: “Padre, estou falando precisamente de ‘fé’ e ‘cristianismo’, como posso mudá-las?’. Ele se comprometeu pessoalmente com a publicação, e, felizmente, já estava morto quando o “caso Parmênides” estourou.
O senhor foi convocado pelo Santo Ofício. E posto na berlinda?
Embora o procedimento fosse o mesmo sofrido por Galileu, eu sabia que não me mandariam para a fogueira. Ao contrário, eles me receberam, oferecendo-me chás e doces. Não podiam fazer nada além de me condenar, e o meu caso acabaria nos Acta Apostolica, mas eu não recuei. Mas um dos juízes, o professor Enrico Nicoletti, abandonou a batina depois de aprofundar as minhas ideias. Como professor ordinário, eles não podiam me demitir, então me propuseram receber o salário sem lecionar. Não aceitei, porque sentia fortemente a responsabilidade para com meus alunos. Passei para a Universidade de Veneza, levei-os comigo, e a vida voltou a fluir.
Pode me explicar, da maneira mais simples possível, em que consiste a sua filosofia?
Nós somos Reis que acreditam ser Mendigos. Não ponho em discussão apenas o cristianismo, mas também toda a civilização ocidental e a sua filosofia, segundo a qual nós viemos do nada e acabamos no nada. Essa é a essência do niilismo. Não, cada um de nós é um deus com a convicção de ser contingência, sombra de um sonho. O homem é uma coisa pobre: Píndaro diz isso, Shakespeare e Leopardi dizem isso, é o clima criado por Bertolt Brecht. Na realidade, somos o eterno aparecer do destino. Os nossos mortos nos esperam assim como as estrelas do céu esperam que passem a noite e a nossa incapacidade de vê-las senão na escuridão. Estamos destinados a uma Alegria mais intensa do que a que as religiões e as sabedorias deste mundo prometem. Mendicante é o fato de estarmos convencidos, por exemplo, de que eu estou delirando, porque as coisas reais são este mundo, a Europa, a Itália, as relações econômicas, jurídicas, sexuais. Enquanto o fundo do homem consiste na sua permanência absoluta. Com a morte, nós superamos o estado de mendicância: a morte nos permite ultrapassar o senso do nada.
O senhor é ateu?
Também para o ateu as coisas surgem do nada e vão ao nada: o amigo de deus é um tolo que acredita que precisa de um patrão, de um senhor, de um criador; o ateu é um tolo que acredita que não precisa disso, mas ambos pertencem à mesma alma. O meu pensamento está além da loucura.
Como o senhor explicou isso à sua família católica, aos seus tios?
Os tios padres e freiras já estavam mortos. Nos anos 1950, quando fui ver o tio Sebastiano, que era uma eminência na Sicília, ele já estava muito velho. Bati no colégio dos jesuítas de Messina, e me acompanharam até ele, em um terraço. Abrigado sob um guarda-sol, ele perscrutava o mar. Abraçou-me, perguntou se estávamos todos bem e depois começou a se enfurecer contra Garibaldi. Meu pai era um oficial de carreira, ferido na garganta na Primeira Guerra Mundial. Assim como minha mãe, ele era católico, mas não fanático. Estavam preocupados que a minha coerência dificultasse a minha vida. Já haviam tido a terrível experiência de perder um filho. Meu irmão mais velho era estudante na Normale di Pisa quando o forçaram a se alistar. De dia, ele atirava; de noite, preparava-se para o exame de História da Literatura Italiana. Estava no front francês quando a morte o levou embora. Rapaz de gênio nada comum, admirava Giovanni Gentile, apesar do primeiro encontro deles ter sido traumático. Tio Sebastiano orgulhava-se de uma amizade com o filósofo e provavelmente dedicou uma palavra para facilitar o seu acesso à Scuola [Normale di Pisa]. Na Normale, os exames de admissão eram realizados em público. Diante de um candidato despreparado, Gentile se levantou e disse: “Este é talvez Severino, aquele recomendado pelos padres? Recusem-no!”. Meu irmão estava na sala: “Não, Severino sou eu”. O filósofo voltou a se sentar, e o meu irmão passou brilhantemente no exame, apesar de terem posto ele na mira.
Eles não lhe dificultaram a vida, mas o senhor também não teve cargos importantes, ou estou errado?
Eu nunca os quis: as presidências levam tempo embora. Quando aceitei dar conferências pelo mundo, em Havana, Teerã, Moscou, fiz isso para dar uma volta com a minha esposa. Quando soube da minha partida para Cuba, o Pe. Verzé agitou todo o [hospital] San Raffaele para que encontrassem uma garrafa especial de vinho para levar ao seu amigo Fidel Castro. Em Teerã, diante dos aiatolás, defendi que o capitalismo e a tecnologia também devorariam o Islã. Não sei se o tradutor relatou tal e qual o meu pensamento, mas, no fim, vieram me parabenizar. Quanto ao restante, a minha vida é transcorrida pensando, escrevendo e sendo marido da minha esposa, da qual sempre fui muito apaixonado. O que me consola é que Sócrates também não se mudou de Atenas, nem Kant de Königsberg.
Mas Hegel viu Napoleão passar debaixo da janela da sua casa. E o senhor, quem viu?
As tropas alemãs: entrando e saindo de Bréscia. Depois do dia 8 de setembro, chegaram audaciosamente. Na viela aqui em frente, além deles, não havia sequer uma alma, mas o comandante se separou para saudar. Nós nos desvencilhamos nas Ronchi, as colinas não muito distantes da cidade. Um ano e meio depois, de Verona, chegou a coluna estadunidense com os tanques, e os alemães foram literalmente despedaçados. Um soldado alemão subiu assustado nas Ronchi, veio ao meu encontro e me perguntou onde poderia se salvar. “Se você subir, em um quilômetro, encontrará os partigiani”. Jogou em meus braços a sua metralhadora e começou a correr até desaparecer. Acabada a guerra, eu queria deixar rapidamente para trás essa tragédia e, assim, fiz o exame para pular um ano do liceu. Toda a dor e todo o desespero se aplacaram um dia, de bicicleta. Com os amigos, conhecemos uma garota, a mais linda do liceu Arnaldo. Uma noite, fomos chamá-la para dar uma volta. Ela não tinha bicicleta e teve que subir em uma das nossas. Ela escolheu a minha. O meu rosto se afundou nos seus cabelos, senti o seu perfume. Aos 22 anos, Esterina e eu nos casamos.
Uma vida familiar feliz, com dois filhos. Mas, todas as vezes que o senhor escreve um livro, rompe com alguma coisa: o cristianismo, o capitalismo, a tecnologia...
A raiz é sempre a mesma. Não é que eu ataque aleatoriamente. A forma mais rigorosa de loucura hoje é a técnica: vivemos o tempo da passagem da tradição a este novo deus. A globalização autêntica não é a econômica, é a técnica. Cometemos o erro de crer que capitalismo e técnica são a mesma coisa: não, eles têm propósitos diferentes. O capitalismo visa ao aumento infinito do lucro privado; a técnica, ao aumento infinito da capacidade de alcançar objetivos, ou seja, da potência. A técnica matará a democracia, começando pelos Estados mais fracos como a Itália. Tal processo, depois, também investirá os Estados Unidos, a Rússia e a China. Os Estados Unidos, em certo ponto, prevalecerão, mas não como nação, mas sim como gestores primários da potência tecnológica. Agora, custamos a compreender isso, porque nos encontramos em um tempo intermediário. Somos como o trapezista que deixou um trapézio (a tradição) e ainda não se agarrou ao outro (a tecnologia, o novo deus). Estamos suspensos no vazio e parecemos estar perdidos.
Mas é uma previsão orwelliana!
Mais cedo ou mais tarde, conseguiremos agarrar o outro trapézio. No entanto, a tecnologia também está destinada a entrar em declínio, para que se cumpra o destino do homem.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''O cristianismo certamente é uma loucura.'' Entrevista com Emanuele Severino, o ''filósofo herege'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU