Um renovado filão de pesquisa sobre a obra de
Antonio Gramsci apresenta de novo e com força qual deve ser a relação entre a filosofia e o agir político. Um nó que o autor do
Cadernos do Cárcere desfaz por meio do conceito de hegemonia, em que, entre o ato de conhecer e o de fazer, existe um laço indissolúvel. Mas o que é investido pela problema é a tradição filosófica italiana que parte de
Maquiavel e chega até
Giovanni Gentile.
A análise é do juiz italiano
Luigi Cavallaro, publicada no jornal
Il Manifesto, 15-04-2011. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
A filosofia, escreveram uma vez
Marx e
Engels, é a expressão abstrata dos estados das coisas existentes, e essa sua característica ilude comumente os filósofos de poder deixar os estados de coisas existentes e os homens reais muito abaixo de si. Nos fatos, porém, a filosofia não consegue se distinguir realmente do mundo como concretamente ele é: e, justamente por isso, ela acaba, comumente, por não poder pronunciar sobre o mundo nenhum julgamento real e muito menos a agredi-lo praticamente, acabando por se contentar com uma práxis
in abstracto.
Como explica
Roberto Esposito no seu último e belíssimo livro, trata-se, porém, de uma conotação que não se adapta à filosofia italiana. Característica eminente desta última é, ao contrário, a ruptura com uma concepção rigidamente intelectualística da filosofia e, especularmente, o convencimento de que o saber filosófico deve florescer de si mesmo e incorporar o seu próprio "outro" – aquilo que é comumente considerado como "não filosófico".
Para poder chegar ao filão vital refratário à dimensão do conceito, o pensamento filosófico italiano foi obrigado, de fato, desde as suas origens (
Maquiavel,
Bruno,
Vico) a se inclinar a ela, fazendo-se "pensamento vivo", cruzando-se assim com a política e, ainda, redescobrindo a constitutiva "politicidade" da filosofia.
Por isso, não é por acaso que uma parte significativa da reflexão filosófica italiana seja associável a pensadores que não são filósofos de profissão, como
Dante,
Leonardo,
Cuoco,
Leopardi ou
Gramsci. E nem é um acaso se, quando foi obrigado a traçar a genealogia do conceito de "práxis",
Giovanni Gentile a reconstruiu por meio da tradição filosófica italiana, de
Bruno a
Vico, passando por
Spaventa: é, ao contrário, a confirmação de que – embora precisasse esperar a crítica de
Marx a
Feuerbach para reconhecer na práxis o lugar em que sujeito e objeto, fazer e conhecer coincidem em um único princípio constitutivo do mundo – só a tradição filosófica italiana podia conferir à sistematização marxiana toda a sua capacidade performativa.
A diferença entre ciência e vida
Politicidade da filosofia, portanto. Mas em que sentido? Isto é, em que sentido a filosofia expressa posicionamentos que se reverberam necessariamente na política, até quando – segundo a nota crítica gramsciana a
Croce – o pensamento puro gostaria de reivindicar sua própria distância de princípio da práxis política?
É olhando ainda para a tradição italiana que podemos compreender: porque aquela sua originária vocação prática (ou "civil") se reflete também nas respostas que – especialmente no século XX – ela foi induzida a dar à questão da diferença insanável entre a "ciência" e a "vida", isto é, da excedência que esta última manifesta com relação a todas as tentativas de compreendê-la conceitualmente.
É o tema da conferência com a qual um outro célebre "não filósofo",
Francesco De Sanctis, inaugurou o seu curso napolitano de 1872: quando o saber científico perde a relação com o seu próprio conteúdo vital e busca forçar a irregularidade da vida nos seus esquemas abstratos, acaba sendo arrastado pela reação violenta.
É a acusação de
Leopardi aos Iluministas franceses, mas também a de
Cuoco aos jacobinos napolitanos de 1799, incapazes de conceber que a revolução pudesse ser habitada pelo seu contrário e vice-versa. E é também a crítica que
De Sanctis irá dirigir a
Hegel, acusado de confundir o viciano [de Vico] "recurso" das formas com o dos conteúdos, que, ao invés, progridem sempre e, justamente por isso, inclinado a fazer com que "a humanidade acabe com ele".
Chamar-se-lhe-ia de uma dialética, embora
Esposito se defenda bem dela, e uma dialética materialista. Como, senão, traduzir aquela ideia de "imanência" que invade totalmente a reflexão filosófica italiana e que – no confronto com a analítica anglo-saxônica, a desconstrução francesa e a teoria crítica alemã – se conota pelo esforço constante de colocar novamente em discussão o primado transcendental da linguagem, revelando a relação que o liga ao filão biológico da vida e à ordem móvel da história? Como, senão, declinar a ideia segundo a qual a historicização integral da vida equivale a reconhecê-la como objeto de práticas políticas dirigidas a transformá-la e, portanto, como matéria de conflito?
Não admira, nesse quadro, o relevo atribuído ao pensamento de
Gramsci. Como explica
Fabio Frosini, que há anos conduz uma finíssima pesquisa sobre o pensamento do comunista sardo, a posição gramsciana move-se a partir de uma releitura em paralelo do cruzamento de política e filosofia em
Maquiavel e
Marx, uma releitura em que a definição deste último como "filósofo" se une ao esclarecimento de que se trata de uma filosofia de tipo novo: uma "filosofia da práxis", no duplo sentido de "unidade da teoria e da prática" e de uma prática dessa unidade, em que uma não se dá sem a outra.
A trama hegemônica
Não se trata, para
Gramsci, de postular uma identidade imediata entre teoria e prática, mas sim de pô-las em uma equação em que os dois momentos são a mesma coisa, embora em formas diferentes. E se a releitura conjunta de
Maquiavel e
Marx serve de trâmite para o reconhecimento que confere ao florentino o apelativo de primeiro "filósofo da práxis", o seu êxito – explica
Frosini – é o de reabrir o discurso relativo à relação intrínseca entre "verdade" e "política" nos termos de uma relação entre filosofia e hegemonia.
O critério da "verdade efeitual da coisa", que
Maquiavel põe no centro da reflexão entregue ao Príncipe, permite a Gramsci subtrair o conceito de "ideologia" à acepção puramente negativa de "falsa consciência" e de enganchá-lo ao de verdade: que certamente não se prestam às "elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos", mas sim à "superestrutura necessária de uma determinada estrutura", isto é, aquele âmbito em que se formam as "vontades coletivas" e em que, portanto, a verdade recebe a sua constituição prática.
Entendendo-se que tanto a cultura quanto a ideologia permanecem constitutivamente afetadas pelo conflito social, é errado, portanto, conceber a teoria da hegemonia de modo avulso à filosofia da práxis: esta última é, vice-versa, seu momento propriamente teórico, no sentido de que explica de que modo a construção de um aparato hegemônico é, enquanto processo político, sempre e também abertura de um "espaço de verdade".
Sob essa ótica, o próprio conceito de "poder" torna-se algo mais relevante do que o mero exercício da violência: como bem explica
Frosini, em
Gramsci o funcionamento da hegemonia postula, de fato, "um laço forte com a verdade entendida como imanência do pensamento, ou seja, em termos histórico-políticos, como capacidade de uma classe de produzir uma unificação ou um `bloco` em torno a um projeto estratégico de `progresso` aceitável como momento diretivo da sociedade inteira".
Entende-se, portanto, que a hegemonia se entrama na linguagem. Mas, exatamente como na grande tradição filosófica italiana, a redução da realidade a uma rede de relações linguísticas ocorre por força de um conjunto sempre provisório e jamais completo de traduções, que remetem, em última análise, às relações de dominância e subordinação das quais a trama hegemônica é expressão.
A construção das categorias cognoscitivas é, portanto, fruto de uma ativa elaboração ideológica, embora deva sempre se apresentar como "espelhamento" da realidade: e, nesse sentido, a filosofia torna-se verdadeiramente parte integrante da luta entre classes, porque o nível-base das relações de forças reflete, por sua vez, as relações sociais e os vínculos que o estado do seu desenvolvimento põe a uma "liberdade do querer" qualquer que pretenda desprezá-los.
As forças em campo
"Verdade da ideologia", para
Gramsci, não significa, enfim, redução da história ao arbítrio ou à vontade de poder: o "universal" existe sempre – explica
Frosini – ainda que como resultado provisório de "processos de universalização teórico-prática" sempre reversíveis, sempre parciais e jamais independentes das formas ideológicas dentro das quais ele ganha corpo.
O fato de
Gramsci colocar no centro dessa nova prática da filosofia o conceito de "imanência" não vale só para confirmar o seu pertencimento à tradição filosófica italiana, mas também para excluir da sua dialética materialista toda forma de materialismo filosófico que seja aparentado com o empirismo: como era o de
Bucharin, para nos entendermos, e como muitos marxistas entenderam o de
Sraffa.
Se isso é verdade, torna-se difícil entender por que
Esposito, depois de ter reconhecido corretamente que
Gramsci trabalha na extinção do Estado na forma de uma distensão do seu vínculo soberano ("é esse o papel ambivalente daquela `sociedade civil` encampada no coração da sua perspectiva política"), critique o comunista sardo por não saber reconstruir "a relação entre imanência e multiplicidade".
É verdade que a inversão gramsciana do atualismo de
Gentile ocorre "substituindo o sujeito transcendental de Gentile por uma subjetividade coletiva", mas essa substituição – explica
Frosini – é fiadora de "um diferente grau de força e coerência" das representações em jogo "no conflito das forças, enquanto momento da constituição hegemônica de uma delas": é por isso que "poder e verdade não podem jamais ser separados na análise de um aparato hegemônico", e é por isso que – como anota o próprio
Gramsci – a "unidade de teoria e prática" leva à necessidade de "identificação da filosofia com aquilo que
Croce chama agora de religião (concepção do mundo com uma norma de conduta uniforme)".
Fora da tradição
Entretanto, vem a dúvida se a crítica dirigida a
Gramsci – considerado culpado de querer tendencialmente anular o conflito em uma síntese "teológico-política" – serve para que
Esposito recupero no interior da tradição filosófica italiana as teorizações mais recentes de alguns filósofos italianos: e, entre estes, de
Tronti,
Cacciari,
Negri,
Del Noce,
Vattimo e
Agamben, aos quais é dedicado o último capítulo do seu livro.
Mas justamente aqui, a meu ver, compreende-se o
non sequitur da sua estimável reconstrução: porque, se é verdade que o seu ponto de partida comum é constituído pela "rejeição da síntese teológico-política" que foi de
Gramsci (e ainda mais do "compromisso histórico" dos anos 1970), não é menos verdade que essa rejeição, até aqui, produziu ou um pensamento crítico refratário a qualquer práxis hegemônica ou um pensamento "desdramatizante, remissivo e também, de algum modo, condescendente", como
Esposito foi obrigado a reconhecer, os quais acabaram por não poder opôr nenhum atrito ou resistência à realidade.
Tanto em um quanto em outro caso, estaremos, em suma, fora da tradição filosófica italiana e teremos dramaticamente recaído na variante pós-moderna do vício típico da filosofia já denunciado por
Marx e
Engels. E não causaria admiração que os resultados políticos desse filosofar tenham oscilado e oscilem entre "terceiras vias" sempre mais brandas e fabulosos extremismos anárquicos: é o mercado, amigo!
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O filólogo da práxis: a trama linguística de um pensamento em ação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU