05 Dezembro 2018
Há uma crise intelectual concernente aos modelos do passado que a Igreja Católica também deveria levar em consideração ao pensar sobre seu futuro.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 04-12-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O chocante testemunho que uma ex-freira da Alemanha ofereceu recentemente quando acusou uma autoridade da Congregação para a Doutrina da Fé de investir sexualmente contra ela durante a confissão é uma página tirada diretamente da Idade Média.
O crime de sollicitatio ad turpia (propostas indecentes ocorridas durante a confissão) era bem conhecido na Igreja medieval. Mas os intelectuais católicos neotradicionalistas e neomedievalistas que enaltecem esse período particular da história nem sempre falam sobre seus aspectos sórdidos, como esse.
A razão é evidente. O objetivo deles é recuperar uma versão medieval da Cristandade (do catolicismo, em particular) que seja pré-moderna e antimoderna, como um remédio para o atual estado das coisas.
Nessa agenda, a complexidade do passado é deliberadamente ignorada. Os católicos deveriam estar cientes de que essa é apenas a mais recente tentativa de reviver o mito da Cristandade medieval, que é continuamente reproposto à luz das emergências de hoje.
Em 1977, o medievalista francês Jacques Le Goff (1924-2014), renomado mundialmente, publicou um livro intitulado “Para uma outra Idade Média” (Pour un autre Moyen Age - Nota de IHU On- Line: tradução braslileira: Para uma outra Idade Média: Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, Vozes, Petrópolis, 2013, 3a. edição), em um esforço para renovar a nossa compreensão dos tempos medievais.
Le Goff via a Idade Média como um meio necessário para recapturar a nossa leitura da história – longe da Cila dos tempos antigos de Atenas e Roma, prisioneiros da erudição e da imaginação excessiva, e longe da Caríbdis do período contemporâneo, que tende a desconstruir visões de mundo unificadoras (“vue d’ensemble”).
Le Goff era um esquerdista político que via a Idade Média como um período crucial na história europeia, quando o extraordinário progresso social e econômico se combinou com a vasta influência da Igreja Católica para criar o mundo moderno.
Sua tentativa foi resgatar a Idade Média tanto dos detratores quanto dos apologistas.
Dizer que a Igreja Católica ainda precisa desse tipo de avaliação saudável da Idade Média é um grande eufemismo.
Na atual crise da globalização, há também uma crise intelectual concernente aos modelos do passado, que a Igreja Católica deveria levar em consideração quando pensa em seu futuro.
A Idade Média ainda fornece o modelo mais influente e atraente para os cristãos conservadores e antiliberais, e para os católicos em particular.
Assim, ainda estamos lidando com o problema que Le Goff tentou resolver há cerca de 40 anos.
De um lado, há a narrativa progressista-modernista, que identifica a Idade Média com as cruzadas, o feudalismo, as guerras, os Cavaleiros Templários e a magia.
De outro lado, há a narrativa do neomedievalismo católico (difundido não apenas através de contas anônimas no Twitter, mas também entre importantes intelectuais católicos e lideranças da Igreja), que vê na Idade Média o mais próximo dos possíveis pontos de retorno a um era pré-secular e pré-liberal.
Para os católicos que estão preocupados com a modernidade liberal, a Idade Média parece ser a única opção.
O período moderno inicial não serve, pois representa um passado inutilizável ou complicado.
Exceto por ser um período rico para o catolicismo e as artes, o período entre os séculos XVI e XIX traz à mente momentos menos desejáveis da história, como a ruptura no cristianismo ocidental apressada pela Reforma Protestante, o saque de Roma, a perda do poder temporal do papado e o advento do liberalismo e do modernismo.
O neotradicionalismo católico aponta para a Idade Média como o período em que se encontram os elementos do paraíso perdido da Cristandade: o papado, o monasticismo, as ordens mendicantes, a filosofia escolástica, as artes e o cavalheirismo.
Uma coisa que muitas vezes falta nesse quadro ideológico da Idade Média, no entanto, é a ascensão das cidades europeias e de seus governos seculares; em resumo, o começo da separação entre Igreja e Estado.
O neomedievalismo católico ressurgiu hoje no hemisfério ocidental por nostalgia do período anterior ao Concílio Vaticano II (1962-65), quando a Igreja desfrutava de uma onipotência sobre a política, a sociedade e a cultura.
Mas, assim como outras ideias neotradicionalistas, é um fenômeno muito moderno.
A Cristandade é um mito que nasceu no século XIX e dominou o magistério oficial da Igreja até a primeira metade do século XX.
É bem sabido, além disso, que a nostalgia católica pela Cristandade é dominada pelo conservadorismo político.
Yves Congar escreveu em seu “Verdadeira e falsa reforma da Igreja” (1950) que o neomedievalismo católico tinha uma “mentalidade de direita”. Ele retirou essa seção da segunda edição do livro, publicada em 1968, mas a conexão entre o medievalismo e a “mentalidade de direita” não desapareceu. Pelo contrário.
Um livro de ensaios editado e publicado há alguns meses por dois medievalistas italianos remonta a história do neomedievalismo na Igreja Católica nas décadas depois que Congar publicou seu trabalho sobre o assunto.
Tommaso di Carpegna Falconieri e Riccardo Facchini mostram claramente que a nostalgia por um retorno à Idade Média começa depois do Vaticano II.
Especialmente na Europa, os pensadores medievalistas dos anos 1960 e 1970 eram ativistas de direita, sem nenhum interesse especial pela Igreja ou pela teologia.
Não demoraria muito para que os intelectuais católicos pegassem esse medievalismo desses círculos, mas sem cortar os laços com a mentalidade política de direita.
Os motivos políticos e civilizacionais ainda são dominantes. Quatro ou cinco décadas atrás, o apelo da Idade Média se devia em grande parte aos desafios do comunismo soviético.
Nos anos mais recentes e em nosso tempo, isso se deveu ao desafio geopolítico que vem do Islã e da crise da ordem internacional liberal.
A Idade Média mítica e excessivamente idealizada serve como um refúgio ideológico para os neomedievalistas católicos.
Ele busca um papado politicamente forte para assegurar um papel dominante para a religião e a Igreja. Evoca as cruzadas como um compromisso com a religião, embora ignore seus elementos bélicos.
Usa a linguagem do cavalheirismo como um impulso contra as teorias de gênero e a revolução sexual, e o mito de uma sociedade ordenada hierarquicamente como um baluarte contra as políticas de identidade.
O comunitarismo se torna a cura para o individualismo liberal. E a unidade do “ecumene” cristão medieval oferece a resposta para a fragmentação do cristianismo global atual.
Há agora – em 2018 – uma série de teólogos influentes que defendem abertamente o retorno à Cristandade.
Esse tipo de teologia é bastante popular entre aqueles que estão revoltados com o atual estado das coisas na nossa política e economia, e entre aqueles que estão preocupados com o futuro do cristianismo.
Ele faz parte do quadro desse momento “pós-secular” que é capturado efetivamente em um livro recente de Michelle Dillon, especialmente sobre o papel do Papa Francisco.
Esse renascimento da Cristandade medieval está longe de ser puramente teórico. Ele está influenciando uma nova geração de cristãos e de lideranças da Igreja, especialmente intelectuais e membros do clero.
A equação entre a crise da ordem liberal e o retorno à Cristandade é uma fantasia perigosa. Também é ignorante em relação à história. Mas essa fantasia não vai desaparecer a menos que haja um argumento alternativo convincente.
Olhando para a história do medievalismo católico do último meio século, fica claro que ele é uma ideia político-cultural, e não teológica. Mas ele apela claramente para um senso de tradição.
O que a tradição católica diz sobre a própria tradição – por exemplo, na constituição do Vaticano II sobre a revelação divina Dei Verbum – é muito diferente das ideias dos neomedievalistas, que estão tentando tornar a tradição cativa de sua narrativa conservadora.
Eles estão tendo sucesso em parte porque os teólogos liberal-progressistas abandonaram amplamente a tradição, como se o Concílio Vaticano II tivesse legitimado a destradicionalização do catolicismo.
O tradicionalismo é uma reação a isso e levanta perigos significativos tanto para a Igreja quanto para as nossas comunidades sociais e políticas.
Lutar contra essa fantasia exigirá que teólogos e historiadores trabalhem por uma alternativa à Cristandade e por uma saída para a atual ruptura eclesial e política.
O catolicismo não se salvará das fantasias do neomedievalismo com seu apelo puramente literário, artístico e místico à imaginação católica.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os perigos do esforço ideológico para reinventar uma Igreja medieval mítica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU