28 Novembro 2018
Antropóloga, que saiu do país por causa de ameaças de morte, fala sobre eleições, militarismo, direitos civis e conservadorismo. Para ela, uma das surpresas do governo Jair Bolsonaro pode ser Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça
A entrevista é de Paloma Oliveto, publicada por O Estado de Minas, 26-11-2018.
Reconhecida pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100 maiores pensadores globais, a pesquisadora, escritora e documentarista Débora Diniz já era nome consolidado no meio acadêmico quando, há 14 anos, tornou-se, também, popular fora da cátedra. Foi ela que, em 2004, trouxe à luz uma questão de direitos reprodutivos praticamente desconhecida por quem jamais viveu o drama de gestar um feto sem cérebro: o aborto de anencéfalos.
A Anis, instituto de bioética fundado por ela em Brasília, comprou a briga que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e culminou em um dos mais polêmicos julgamentos da Corte. A luta da antropóloga resultou no direito de retirada do feto sem chance de sobrevivência fora do útero. De lá para cá, Débora tem amplificado a voz de minorias e denunciado situações como o abandono de famílias pobres cujos filhos nasceram com síndrome da infecção congênita pelo vírus zika. Autora do primeiro livro sobre a descoberta da doença no Brasil, ela venceu a categoria ciências da saúde do Prêmio Jabuti com Zika: do sertão nordestino à ameaça global.
Em julho, a carreira da pesquisadora como professora do curso de Direito na Universidade de Brasília (UnB) foi pausada à força por grupos fundamentalistas que a ameaçaram de morte devido à militância dela nas questões de gênero. O caso foi tão grave que ela se licenciou da instituição, foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal e, atualmente, vive em outro país — por motivos de segurança, ela não revela onde está. “Mas eles nunca vão me calar”, avisa.
Por telefone, Débora Diniz, 48 anos, conversou sobre eleições, militarismo, direitos civis e o ressurgimento do conservadorismo na sociedade brasileira. “Não há politização nos quartéis; há uma politização de ressentidos da história que, como Jair Bolsonaro, entraram na academia militar numa expectativa de que comporiam o poder político e viram a redemocratização”, acredita.
Para ela, nos próximos anos, o Supremo terá de se dedicar mais às pautas dos direitos fundamentais, uma função que ficou ofuscada por julgamentos criminais, como os da Lava-Jato. O protagonista da operação e futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, também poderá surpreender, acredita. “Ele pode ser alguém perturbador para a política bolsonarista no campo dos direitos fundamentais.”
É possível identificar o início dessa onda conservadora ou o brasileiro, na verdade, sempre foi conservador?
São as duas coisas juntas. Toda a nossa história política é de dificuldade de incorporação de alguns princípios fundamentais, como a igualdade. O que nós tivemos foi um período em que os nossos ranços dos privilégios, sejam da casa grande, sejam dos produtores de café, ficaram presos à sala de jantar, no almoço de domingo. A gente teve um momento em que a igualdade como valor passou a ser uma exigência da vida pública, fosse nas universidades com as cotas, fosse na existência de uma nova paisagem política com mulheres, com negros; fosse por mudarmos o vocabulário sobre como se referir aos grupos que são discriminados socialmente. A gente passou a falar em raça, em gênero. Então, o que nós tivemos foi a incorporação de um novo vocabulário político com algumas conquistas. Mas as gerações que viveram os privilégios ainda coexistem no tempo histórico. Esse período de trégua provocou uma perda de privilégio. Por que ele volta com tanta força? Porque nunca deixou de existir, nunca deixou de existir como ressentimento daqueles que perderam suas posições, e ele volta como uma onda mundial de países muito importantes economicamente, como os Estados Unidos. Volta em um bloco de países conservadores do Leste Europeu, mas volta também dentro de 30 anos de uma abertura democrática em que nós não conseguimos solucionar de uma maneira histórica o que foi o nosso período ditatorial.
O escritor israelense Amós Os diz que o nazismo na Alemanha ressurge quando o tempo passa, fazendo as pessoas esquecerem e perderem a vergonha do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. No caso brasileiro, 30 anos é suficiente para o esquecimento?
Acho que há duas coisas aqui. A primeira é que a geração imediatamente seguinte ao que foi a ditadura teve, inclusive entre os militares, esse silenciamento imposto pela vergonha de quando há uma transição. Seja uma autocensura, de que esse assunto a pessoa não vai contestar, seja uma vergonha para as pessoas de bem. Se nós formos olhar qual é a geração dos generais que está voltando ao poder, que é a geração do (presidente eleito Jair) Bolsonaro, é uma geração que, na época da ditadura, estava entrando na academia militar. É uma geração de jovens homens que estava entrando na expectativa de participar de um governo militar. E eles tiveram de viver 30 anos o ressentimento de não fazer parte dos privilégios do poder militar. Não é à toa que são generais aposentados. Se for para a geração hoje de 40, 50 anos, isso está muito bem resolvido, de que os militares não tinham de estar na política. Se olhar a entrevista do (general e comandante do Exército) Villas-Boas, que diz que não há politização nos quartéis, ele não está dizendo uma mentira. Há uma politização desses ressentidos da história que, como Bolsonaro, entraram na academia numa expectativa de que comporiam o poder político e viram a redemocratização. Esse é o lado pelo qual eu tentaria compreender quem são esses militares, agora ávidos pela tomada do poder, o poder democrático.
E quanto aos civis?
A minha explicação é que seria não só um esquecimento do que foi a ditadura. Eu listaria três explicações. A primeira é que temos uma banalização da cultura política; nós fazemos graça, dizemos que todos os políticos são tontos, achamos que tanto faz porque são todos iguais, então, escolho esse aqui que ao menos não é do PT, mesmo que seja um personagem burlesco. O segundo é que, dentro daquilo que falávamos, de valores que nunca desapareceram da sociedade brasileira, a expectativa da masculinidade “macha”, do patriarcado, na figura do homem-forte como líder. E o Bolsonaro representa isso. Então, ele não é simplesmente um militar, para os militares, ele é burlesco, um personagem bufão. Mas ele incorpora o macho. Um indício disso é a entrevista da atriz Regina Duarte, em que ela diz: “Ele é como meu avô, meu pai”. Ele é o macho a quem é autorizado dizer qualquer coisa. Ele é o macho da “Casa Grande”.
Muitas mulheres se posicionaram contra o presidente eleito, mas, no fim da campanha, o número de eleitoras de Bolsonaro aumentou. Como explicar que mulheres também estejam ávidas pela figura de um “macho”?
Ele representa a teocracia evangélica. Não é o militarismo que volta ao poder; é o populismo teocrático que retorna vestido de farda. A gente não sabe muito bem se são os militares de volta no sentido dos quartéis — segundo o Villas-Boas, não é. Com as transformações sociais, está sendo demandada das mulheres uma fatura gigante da história. Principalmente as mulheres trabalhadoras, que não fazem parte de uma elite que vai chamar o trabalho de escolha, de carreira. São mulheres chefes de família, que pegam um transporte público que é um horror, que não têm creche para os filhos. Estão ávidas por reencontrar uma narrativa idílica de que, no passado, a vida foi mais fácil para elas. O tempo histórico fantasia o passado; as pessoas dizem “Nós tivemos uma perda de valores”, “A família não é mais a mesma”. De que família estamos falando no passado? A de quando as mulheres eram violentadas, os homens tinham múltiplas famílias? Mas como nós temos não só a carência de uma compreensão histórica clara sobre isso, mas narrativas que, com o envelhecimento, circulam de forma idílica, você cria uma fantasia para essas mulheres de quem sabe essa concepção de família e de masculino vai deixar minha vida melhor, dado o Estado frágil? Porque a vida é dura para essas mulheres.
E as jovens bem-nascidas, que nunca passaram dificuldade, as que estão sendo representadas pela boneca Barbie nos memes?
Todo fenômeno amplo tem múltiplas explicações. Quando a gente faz um recorte no grupo de mulheres trabalhadoras, eu diria que um caminho é esse que acabei de dizer. Mas quando a gente vai para a “Barbie”, a gente tem outra possibilidade de explicação. Quem são elas? É sempre bom a gente pensar por alegoria. Você lembra quando começa uma popularização das viagens de avião e as Barbies dizendo que “viajar de avião agora virou Itapemirim”? Aqui, a gente está falando de uma classe social que tem ressentimento da entrada dos pobres na sociedade de consumo. As bem-nascidas, aquelas que viajam ao exterior, elas têm o ressentimento da entrada da classe trabalhadora na sociedade de consumo. Aquelas que elas chamam de “sua” manicure, “sua” empregada doméstica vão ter bens de consumo que elas imaginariam ser exclusivos dela. E que a “sua” empregada doméstica, para ter a “sua” babá para cuidar da “sua” filha vai custar muito dinheiro.
Principalmente durante a campanha eleitoral, houve o temor de que a onda de conservadorismo levasse a um aumento da violência. Esse medo é infundado?
Para minha vida privada e pessoal, não era um medo infundado. Eu não diria o medo, porque eles nunca vão me calar. Mas a ameaça nunca foi infundada. Ela foi concreta, permanente e insistente. Recentemente, eu ia participar de um evento mundial sediado no Rio de Janeiro e decidi, em conjunto com o Programa de Proteção a Defensores de Direitor Humanos Ameaçados, não participar. Poderia ser muito arriscado. Mas, assumir que isso vai se transformar em um fenômeno populacional, não podemos dizer que sim nem que não. Eu espero que não, porque não quero a desgraça para depois dizer “eu avisei”. A democracia ainda não foi posta à prova sob as ameaças que ele fez verbalmente, de que não vai ter movimento social, de quem não está feliz que saia do país. Nossas bandeiras de alerta vão sendo levantadas à medida que suas palavras forem avançando para algo concreto. Se não forem, nós vamos continuar fazendo resistência pacífica, o que é parte da democracia.
A composição do novo Congresso Nacional está mais conservadora. Como a senhora acredita que será o papel do Judiciário para a manutenção dos direitos civis?
O Judiciário vinha tendo cada vez mais uma participação devida no balanço dos Três Poderes na última década para garantir direitos individuais, civis, fundamentais. A teocratização da política brasileira não está começando com Bolsonaro; a evangelização da política brasileira começou há pelo menos uma década. O que nós temos agora é um populismo teocrático com um aceno militar. O que vai haver é uma demanda mais intensa dos tribunais superiores sobre seu papel na garantia da estabilidade democrática. Nos últimos anos, com a operação Lava-Jato, o Supremo (Tribunal Federal) vem se convertendo em uma corte criminal. E o grande papel dele agora é se converter na corte constitucional. É assumir o seu lugar, se manter em investigações de revisão criminal que venham a acontecer, mas ele tem de assumir sua voz de revisão constitucional. Além disso, vamos ter fronts de luta muito fortes. Um deles serão as universidades e escolas. Professores de universidades e escolas não são um front fácil de se colonizar com notícia de WhatsApp.
Mesmo se o Escola sem Partido for aprovado?
Mesmo com o Escola sem Partido tentando ser aprovado, até porque vai ser questionada a constitucionalidade no Supremo. O Congresso Nacional pode fazer o que quiser no campo de ameaça de direitos fundamentais, como Estatuto do Nascituro, revisar o casamento gay, Escola sem Partido. Tudo vai continuar no Supremo para revisão de constitucionalidade. Um outro espaço que vamos ter de acompanhar para descobrir: quem é esse personagem, o (Sérgio) Moro no Ministério da Justiça? Uma coisa é ele investigando a Lava-Jato. Outra é ele atuando em direitos fundamentais. Nem nós nem Bolsonaro sabemos quem é ele. Não acho que vai ser um personagem fácil como se imagina que ele foi em política criminal. Ele pode pensar diferente de uma criminalização de movimentos sociais, por exemplo. Uma coisa é o Judiciário no campo da política criminal, nisso nós sabemos exatamente quem foi o Moro. Outra coisa é quem é esse novo ministro da Justiça no campo dos direitos fundamentais, e isso nem os bolsonaristas sabem. Moro é quase um ministro impossível de ser demitido. Lembra daquele ditado de que você não pode botar na política quem não pode demitir? Aí, o Bolsonaro terá uma grande dificuldade de demitir uma figura como o Moro, sem causar uma comoção naqueles que votaram anti-PT, acreditando na “Liga da Justiça”. Ele pode ser alguém perturbador para a política bolsonarista no campo dos direitos fundamentais.
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'Há uma politização de ressentidos', diz Débora Diniz, antropóloga brasileira exilada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU