12 Novembro 2018
Alguns estão cautelosamente esperando-a com expectativas esperançosas. Outros a estão temendo com pavor e desespero. Trata-se da vindoura reforma e reestruturação da Cúria Romana.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada em La Croix International, 09-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como Massimo Faggioli recentemente apontou, essa poderia ser uma das mais significativas mudanças estruturais que o Papa Francisco faz em um esforço determinado – contestado por alguns membros da hierarquia – para dar origem a uma Igreja mais descentralizada e sinodal.
O papa jesuíta passou todo o seu pontificado trabalhando na reforma da Cúria com a ajuda de um grupo internacional de altos assessores chamado Conselho dos Cardeais (C9).
Quando ele anunciou o estabelecimento desse órgão sem precedentes, apenas quatro semanas depois de ser eleito bispo de Roma, ele disse que seu propósito era “aconselhá-lo no governo da Igreja universal e estudar um plano para revisar a constituição apostólica” que define a finalidade e as estruturas da Cúria.
A maioria dos observadores fez pouco caso do principal mandato do C9 (aconselhar o papa no governo da Igreja mundial) e se concentrou quase exclusivamente em sua segunda tarefa, mais específica – reescrever a constituição apostólica. Eles previam a conclusão do projeto dentro de um ano ou mais.
Em vez disso, a reforma ainda não foi concluída, apesar do fato de Francisco estar no cargo há apenas alguns meses antes de completar seis anos.
Durante esse longo período, aqueles que desejam ansiosamente a reforma expressaram frustração com o papa de 81 anos por não agir mais rapidamente.
Mas, na verdade, Francisco tem implementado grandes mudanças nas estruturas do Vaticano o tempo todo. Ao reduzir e fundir vários escritórios, por exemplo, ele já começou a mudar a aparência da Cúria.
Por causa disso, assim que essa reforma abrangente for finalmente revelada, ela pode não parecer tão dolorosa. Mas, com um papa que não tem medo de fazer mudanças surpreendentes, essa pode não ser uma aposta segura. Todos nós descobriremos em breve.
É quase certo que, antes de Francisco começar o 7º ano de seu pontificado em março, o primeiro “forasteiro” romano a ser eleito papa em mais de 100 anos (o primeiro desde Pio X a não estudar nem trabalhar em Roma) terá emitido um documento que provavelmente reformulará radicalmente a burocracia central da Igreja Católica.
Um esboço “final” e substancial da nova constituição apostólica sobre a Cúria já estava em estudo em meados deste ano. Greg Burke, chefe da Sala de Imprensa da Santa Sé, disse aos repórteres em junho que ele também recebeu um título provisório – Praedicate Evangelium (Preguem o Evangelho).
Nos meses seguintes, os chefes dos vários escritórios vaticanos tiveram a oportunidade de rever o esboço e fazer mais recomendações e comentários. Os conteúdos do texto, no entanto, foram mantidos em sigilo.
Uma coisa que sabemos com certeza é que o Papa Francisco quer descentralizar a autoridade decisória na Igreja. E isso significa que muitos escritórios vaticanos – especialmente as Congregações que tradicionalmente agiam como monitores das dioceses locais, das instituições da Igreja e dos indivíduos católicos em todo o mundo – provavelmente perderão seu poder real.
“Os dicastérios romanos estão a serviço do Papa e dos bispos: devem ajudar tanto as Igrejas particulares como as Conferências Episcopais. São mecanismos de ajuda”, disse o papa em setembro de 2013, em uma importante entrevista ao padre jesuíta italiano, Antonio Spadaro.
“Em alguns casos, quando não são bem entendidos, [esses escritórios] correm o risco, pelo contrário, de se tornarem organismos de censura”, disse Francisco. Ele então proclamou palavras que enviaram ondas de choque por todo o Vaticano: “Os dicastérios romanos são mediadores, nem intermediários nem gestores”.
O papa deu essa entrevista enquanto fazia os retoques finais no seu documento mais importante até agora – a exortação apostólica Evangelii gaudium, seu projeto de reforma e renovação da Igreja.
“Não convém que o papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’”, escreveu.
“Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária”, disse.
Os escritórios da Cúria Romana têm sido o veículo através do qual os papas historicamente mantiveram seu controle centralizado sobre o ensino, o culto e muitas outras esferas da vida e da prática da Igreja em todo o mundo.
Esses escritórios costumam atuar como uma extensão do papa, como se fossem copartícipes de sua autoridade. Seus chefes (quase sempre cardeais) assumiram um degrau especial na escala hierárquica da Igreja entre o restante dos bispos do mundo e o bispo de Roma.
Francisco já começou a corrigir isso tirando a autoridade de ensino e de governo de vários escritórios vaticanos (especialmente a Congregação para a Doutrina da Fé), ao colocar uma moratória virtual sobre a publicação de documentos normativos por parte deles.
Houve apenas uma pequena quantidade deles neste pontificado, em comparação com a onda de instruções, notificações e diretrizes vaticanas com que os escritórios da Cúria Romana inundaram a Igreja, especialmente com João Paulo II e Bento XVI.
Podemos esperar que a nova constituição apostólica fará mudanças tanto jurídicas quanto estruturais na Cúria, para garantir que ela exista apenas para servir ao papa e aos bispos locais e não tenha autoridade para controlá-los ou mediá-los.
Existem cerca de 40 escritórios que compõem a burocracia central da Igreja em Roma. Eles são oficialmente conhecidos como “dicastérios”.
A atual constituição apostólica sobre a Cúria, Pastor bonus, define-os como “Secretaria de Estado, Congregações, Tribunais, Conselhos Pontifícios e Ofícios, isto é, a Câmara Apostólica, a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica e a Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé”.
Ela diz que eles são “juridicamente iguais entre si”, embora, na realidade, haja uma hierarquia bem estabelecida.
A Secretaria de Estado, os Tribunais e as Congregações tradicionalmente se posicionaram acima do restante, devido à sua história muito mais longa e/ou às suas funções mais augustas.
Não foi relatado na lista oficial de audiências papais, mas surgiu através de conversas privadas que o Papa Francisco realizou uma reunião no mês passado com os chefes dos dicastérios vaticanos para discutir a Praedicate Evangelium, o documento que substituirá a Pastor bonus.
Evidentemente, a reunião foi tensa. Alguns dos atuais chefes da Cúria ficaram descontentes com várias mudanças estipuladas no novo esboço. Uma delas foi o limite estrito de cinco anos que a nova constituição deseja impor às principais autoridades da Cúria e aos padres que compõem os dicastérios.
Atualmente, clérigos e religiosos são contratados com um contrato inicial de cinco anos. Mas, na maioria das vezes, o prazo de um serviço se estende até mesmo indefinidamente. Isso criou uma situação em que padres e bispos passam décadas e a maior parte do tempo do seu sacerdócio servindo a um escritório romano.
Por exemplo, Dom Marcelo Sanchez Sorondo, um bispo argentino de 76 anos que chegou em Roma logo após sua ordenação em 1968, está atualmente em seu quarto mandato de cinco anos como chanceler da Pontifícia Academia das Ciências Sociais.
Outro argentino, o cardeal Leonardo Sandri, está em seu 12º ano como prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais. Diplomata formado pela Santa Sé e prestes a completar 75 anos, ele passou a maior parte da sua vida trabalhando no Vaticano.
Muitos outros chefes de Congregações ou de Conselhos Pontifícios no passado facilmente passaram uma dezena ou mais anos no comando de seus escritórios. E não nos esqueçamos de Bento XVI, que passou mais de 23 anos como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé antes de se tornar papa.
Mas é a presença de longo prazo de autoridades de nível médio nesses dicastérios vaticanos que o Papa Francisco considera mais preocupante. Muitos deles são meros burocratas. Moram em apartamentos ou residências sacerdotais sem qualquer conexão com o trabalho pastoral com os leigos.
Alguns são capelães em conventos de freiras ou ajudam nos seminários. Muitos deles vêm trabalhar em Roma poucos anos depois da ordenação, com pouca experiência de serviço em uma paróquia.
Assim que cumprem cinco anos em um escritório da Cúria, todos têm a garantia de receber o título honorário de “monsenhor”.
Um dos meus colegas do North American College é um exemplo clássico.
Ordenado em 1990, ele passou apenas alguns anos em sua diocese antes de ser enviado para trabalhar em uma grande Congregação romana. Ele completou seus cinco anos de serviço e, em 1999, aos 35 anos, foi nomeado Capelão de Honra de Sua Santidade, um monsenhor.
Títulos e cargos importam em Roma, especialmente na Cúria Romana, onde padres e pessoas afins participam da perpetuação do clericalismo.
A regra (embora haja algumas exceções) é que todo chefe de um grande escritório vaticano seja um cardeal ou arcebispo.
Presumivelmente, isso se deve ao fato de que somente aqueles que estão nas Ordens Sagradas possuem a autoridade oficial de ensino na Igreja e somente eles podem ter jurisdição sobre clérigos.
Mas, em uma Cúria Romana reformada que está mais claramente a serviço do papa e dos bispos, nenhuma autoridade desse tipo seria necessária. E seria útil se todos os outros títulos honorários forem banidos, especialmente o de monsenhor.
O Papa Francisco decretou em 2014 que nenhum padre diocesano com menos de 65 anos pode receber esse título honorário, mas a Cúria Romana impediu, e a disposição anterior não foi modificada para os padres que trabalham no Vaticano ou são diplomatas papais.
Talvez a nova constituição mude isso.
Mas enquanto as palavras finais da Praedicate Evangelium (ou seja lá como será chamada) não forem escritas e a tinta estiver seca, o Papa Francisco continuará jogando – mais ou menos – segundo as velhas regras que há muito governam o jogo das manobras eclesiásticas em Roma.
Ele continua conferindo títulos aos seus assessores, armando-os com a influência e o poder para cumprirem as suas ordens.
Em um sinal de que ele está se preparando para mais resistências à reforma planejada da Cúria Romana, o papa acrescentou um novo componente no grupo de conselheiros C9.
Em 27 de outubro, ele nomeou o Mons. Marco Mellino, especialista em Direito Canônico, como secretário adjunto do seu conselho consultivo.
Natural do norte da Itália, aos 52 anos, ele completou recentemente 12 anos de serviço na Secretaria de Estado. E será ordenado bispo no mês que vem pelo homem para quem ele trabalhou – o cardeal Pietro Parolin, que também é um membro-chave do C9.
O Papa Francisco precisará de todo o apoio que puder obter dos clérigos em Roma.
Sua reforma da Cúria provavelmente não será muito popular, especialmente entre os padres e bispos que passaram muitos anos dentro dos seus corredores.
Ainda não está claro quão radicais serão as mudanças. Mas a calmaria relativa, embora desconfortável, que atualmente paira sobre o Vaticano, certamente, é apenas o prelúdio de um documento que provavelmente provocará uma grande tempestade.
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Calmaria antes da tempestade: antecipando o plano radical de um papa reformista para reduzir a Cúria Romana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU