30 Julho 2018
“Aquilo de que a Igreja precisa não é uma banal tolerância zero (era só o que nos faltava), mas sim uma pureza interior que sempre escute as vítimas e uma desconfiança perante toda ideologia do poder eclesiástico.”
A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.
O artigo foi publicado por La Repubblica, 29-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A renúncia do ex-arcebispo de Washington, Theodor McCarrick, à púrpura cardinalícia é um gesto sem precedentes por motivos e por percurso. Entre os séculos XVI e XX, apenas cerca de 20 cardeais renunciaram à púrpura, descendentes de famílias que haviam calculado mal a necessidade de ter filhos legítimos ou de regular outros negócios.
Apenas um cardeal, Carlo Odescalchi, renunciou ao cargo de vigário de Roma em 1837 para se tornar jesuíta (no fim, aceitaram-no). Apenas um, Louis Billot, ouviu em 1927: “Redde birettam coccineam” (“Devolva-me o barrete púrpura”) de Pio XI, que lhe repreendia pelo apoio ao movimento reacionário da Action Française: e saiu como padre do escritório papal onde havia entrado como cardeal e bispo.
No século XXI, nunca houve renúncias ao cardinalato. Não porque faltassem razões para isso. Em 2005, o cardeal Law, de Boston, que, depois de ter encoberto os abusos de seus padres tinha sido feito arcipreste de Santa Maria Maior, deu de ombros aos protestos do pré-conclave, participou da eleição de Bento XVI e manteve seu título.
Em 2013, o cardeal Keith P. O’Brien, acusado tanto de abuso quanto de omissão, decidiu participar do conclave: Francisco o privou de todas as prerrogativas cardinalícias, mas lhe foi deixada a púrpura.
McCarrick, que já não podia entrar no conclave por causa da idade, é o primeiro que perde a púrpura por um processo de pedofilia no qual se demonstrou que o monitoramento diocesano pode funcionar. As acusações de um menininho que denunciou os assédios sofridos por ele há meio século foram examinadas e validadas por uma comissão diocesana de Nova York no dia 20 de junho.
Quando o cardeal se declarou inocente, os bispos das dioceses onde ele havia sido ordinário denunciaram os casos, encerrados com indenizações econômicas, em que o purpurado tinha usado seu poder de bispo para dominar padres e seminaristas. E, após a retirada da láurea honoris causa da Fordham University em 5 de julho, a revelação de que o então núncio nos Estados Unidos, Dom Montaldo, na época, tinha tentado parar, pelo menos, a sua carreira e um grande trabalho do jornal New York Times, chegou essa sanção.
Ela demonstra que aquilo de que a Igreja precisa não é uma banal tolerância zero (era só o que nos faltava), mas sim uma pureza interior que sempre escute as vítimas e uma desconfiança perante toda ideologia do poder eclesiástico. Mas também ilumina dois problemas mais gerais.
O primeiro é o do “ministério”. A pedofilia não é principalmente um crime celibatário e/ou dos padres homossexuais (se as crianças abusadas também tivessem o seu #MeToo, ao contrário, se veria como o estupro do indefeso é latitudinário). Mas todos os bispos sabem que precisamente a homofobia católica e a ideologia da sublimação favoreceram a criação de clãs sórdidos, reconhecíveis muitas vezes pelo seu fervoroso moralismo. É daí que pode sair a difamação subversiva (Francisco pode ter errado em relação a Dom Barros, mas, mais cedo ou mais tarde, um Dom “Corvo” fará com que se linche um inocente para fins políticos). Para atacar essas pústulas seria preciso uma audácia sinodal da qual os bispos fogem, falando entre si de jovens e degustando papinhas espirituais: a dureza de Francisco é um exemplo.
O segundo problema é tão grande quanto os Estados Unidos. A luta bergogliana contra a fusão entre evangélicos e catolicismo reacionário continua: na revista La Civiltà Cattolica, um novo artigo “inspirado” de Antonio Spadaro e Marcel Figueroa atacou a heresia do prosperity gospel [teologia da prosperidade], que é o ingrediente secreto da teologia de Bannon e de todas as suas ramificações, também italianas.
A reação não será nem leve nem lenta: e o papa não pode enfrentá-la deixando para trás vulnerabilidades que outros menos audazes do que ele consideravam suportáveis.
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A Igreja precisa ser mais corajosa. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU