10 Julho 2018
O maior problema para a geopolítica da Igreja Católica e dos cristãos hoje não é Donald Trump nem Vladimir Putin. É o choque entre visões alternativas do cristianismo e do catolicismo neste mundo globalizado e disruptivo.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Estados Unidos. O artigo foi publicado em Crux, 09-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Bari e Helsinque – duas cidades diferentes hospedando dois eventos internacionais diferentes. Ambas são importantes para entender a complexidade da geopolítica da Igreja hoje.
Primeiro, a cidade sulina italiana de Bari. Foi lá, no último sábado, 7 de julho, que o Papa Francisco convocou um encontro ecumênico sem precedentes com líderes das Igrejas e comunidades cristãs do Oriente Médio.
A escolha do local se deveu ao papel de Bari como uma importante ponte ecumênica para os cristãos do Oriente e do Ocidente.
Lar das relíquias de São Nicolau, ela se tornou um dos locais de peregrinação mais importantes para os membros da Igreja Ortodoxa Russa. A família imperial Romanov construiu uma igreja lá no início de 1913. Ela é propriedade do Patriarcado de Moscou desde 2012.
Durante o encontro de oração ecumênico do fim de semana passado em Bari, o papa denunciou a indiferença e o cinismo do mundo em relação à situação dos cristãos no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, ele também alertou contra a tentação de alguns – incluindo cristãos – de usar a religião para impulsionar ideologias nacionalistas e étnicas.
Em Bari, Francisco novamente apelou em favor de uma solução negociada entre israelenses e palestinos.
E repetiu o antigo posicionamento da Santa Sé de que Jerusalém continua sendo uma “cidade para todos os povos, cidade única e sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos de todo o mundo”, uma cidade “cujo status quo exige ser respeitado, segundo o que foi deliberado pela comunidade internacional e repetidamente pedido pelas comunidades cristãs da Terra Santa”.
Helsinque é outra cidade que desempenhou um papel importante na história das relações entre Oriente e Ocidente no século passado. Foi lá na capital finlandesa que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente russo, Vladimir Putin, deverão se reunir no dia 16 de julho para conversas individuais.
Helsinque desempenhou um papel único na relação da Igreja com a geopolítica da Rússia e dos Estados Unidos no século XX.
Em 1º de agosto de 1975, os líderes dos 35 Estados participantes originais se reuniram em Helsinque e assinaram a “Ata Final” da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE).
O papel das Igrejas cristãs – e da Igreja Católica em particular – foi fundamental para garantir que a liberdade religiosa fosse incluída na proteção dos direitos humanos. Essa foi uma contribuição fundamental para uma paz estável na Europa, que também significou a paz entre os Estados Unidos e a Rússia.
A participação do Vaticano e de outras Igrejas no processo da CSCE foi um ponto alto no engajamento político dos líderes cristãos após a Segunda Guerra Mundial na construção de uma Europa pacífica. Fez parte da Ostpolitik da Santa Sé, que João XXIII inaugurou, e que o Concílio Vaticano II endossou depois.
Foi uma estratégia clarividente e um esforço diplomático para preservar certas condições que protegeriam a existência dos católicos para além da cortina de ferro na Europa comunista. Também foi um evento ecumênico que envolveu Igrejas não católicas na Europa.
As agências de inteligência ocidentais inicialmente viram a Ostpolitik como ingênua e temiam que os comunistas a usassem como um cavalo de Troia.
Mas a Santa Sé conseguiu, durante os anos 1970, estabelecer princípios orientadores claros para a proteção dos direitos humanos.
Eles foram sancionados em Helsinque e levados a cabo pelas Igrejas e movimentos democráticos ativos nos países do Pacto de Varsóvia até à queda do Muro de Berlim em 1989.
Foi uma época em que as Igrejas estavam fortemente comprometidas com uma visão de mundo internacionalista, liderada pela convicção de que elas não teriam futuro sem um alcance ecumênico e global.
Isso significava tomar uma distância clara do nacionalismo das Igrejas europeias (católica, protestante e ortodoxa) na primeira metade do século que levou à Segunda Guerra Mundial.
Trump e Putin se encontrarão em Helsinque em uma situação completamente diferente de 1975.
Deixando de lado o fato de que esses dois líderes dificilmente são conhecidos como defensores dos direitos humanos, o encontro é importante no contexto da relação de cada um deles com as Igrejas.
Há certos cristãos que aplaudem Trump e Putin por darem ajuda política aos cristãos que estão sendo perseguidos na realidade (especialmente no Oriente Médio) ou na imaginação (como nos Estados Unidos).
Isso não é de admirar, dada a inutilidade intelectual e política da oposição liberal a Trump e Putin em relação ao papel da religião na praça pública.
Isso faz parte do novo mundo da religião globalizada, em que a questão da liberdade religiosa faz parte da crise da ordem internacional.
A violência religiosa apresenta aos cristãos um desafio que era totalmente inesperado pela Igreja Católica nos anos 1960 e 1970.
Mas a liberdade religiosa também está muitas vezes desconectada da questão dos direitos humanos. É liberdade religiosa apenas para aqueles que têm o poder para defendê-la, muitas vezes às custas de outros grupos religiosos.
De sua parte, Trump e Putin veem as Igrejas como uma cunha ideológica e política a ser usada contra seus inimigos domésticos e globais, desempenhando assim o papel de Constantino aos olhos de seus apoiadores cristãos.
Onde os evangélicos brancos (e alguns católicos brancos) dão sua bênção ao programa isolacionista do “America First” de Trump, lá está a Igreja Ortodoxa Russa e seu Russky mir (“mundo russo”) que providenciam o componente espiritual e intelectual ausente na visão neoimperialista de Putin do soft power russo.
Tudo isso tem implicações ecumênicas.
Por exemplo, os esforços do Vaticano para manter relações calorosas simultaneamente com os líderes ortodoxos da Rússia e de Constantinopla são complicados pelos fortes laços do Patriarcado de Moscou com Putin.
Existem também consequências inter-religiosas. Basta olhar apenas para os tensos intercâmbios recentes entre a Polônia e Israel sobre uma nova lei polonesa que torna crime o fato de acusar a nação polonesa de crimes cometidos pela Alemanha nazista.
Na situação atual, o Papa Francisco está defendendo claramente o papel da Igreja no mundo, como previsto pelo Vaticano II e pela Ostpolitik.
É uma Igreja que deve rejeitar as tentações de usar e de ser usada pelo poder político tanto global quanto localmente. É uma Igreja cuja força está na cruz de Jesus Cristo, e não na espada.
Mas Francisco está lidando com uma desordem mundial que é muito diferente do mundo com o qual outros papas do pós-Vaticano II tiveram que lidar. A mistura dos efeitos geopolíticos da “vingança de Deus” e da disrupção da globalização não produziu novas alianças globais focadas na promoção da dignidade humana.
Ao contrário, desovou novos nacionalismos com características religiosas na Rússia, nos Estados Unidos, na Índia e em vários lugares da Europa (como Polônia, Hungria, Itália e Bavária).
A relação da Igreja com as potências mundiais é historicamente complexa, dada a estreita cooperação entre Roma e os imperadores europeus no segundo milênio. Mas não há dúvida de que a Igreja Católica está teologicamente em desacordo com o nacionalismo desde o século XIX.
O Papa Francisco está em continuidade com essa tradição internacionalista, que tem sido marcada nas últimas cinco décadas por uma linhagem de diplomatas da Santa Sé que liga o seu secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, ao de Paulo VI e de João Paulo II, cardeal Agostino Casaroli.
Essa linhagem também ligou o cardeal Jean-Louis Tauran, recentemente falecido, a um dos arquitetos da Ostpolitik, cardeal Achille Silvestrini.
Isso nos diz que a Igreja Católica com Francisco está espetacularmente em desacordo com o Zeitgeist político, e não apenas com questões concernentes à justiça socioeconômica e ao ambiente.
O papa levanta sua voz hoje não contra aqueles que negam a Cristo como os comunistas faziam, mas ainda mais contra os políticos que estão tentando usar o cristianismo para seus próprios projetos etno-nacionalistas.
Os dez dias que separam o encontro de Bari da cúpula de Helsinque deixam clara a distância entre Francisco e a dupla Putin e Trump.
O primeiro é o líder mais importante do cristianismo mundial, enquanto os outros dois são líderes mundiais que estão tentando usar o cristianismo para consolidar o poder.
Mas Francisco não enfrenta problemas apenas por parte dos políticos. Ele também deve enfrentar problemas que surgem dos instintos políticos de muitos membros de sua própria Igreja.
Não é apenas a política dos católicos comuns que, preocupados com a globalização, votaram em populistas como Matteo Salvini na Itália ou em Markus Söder na Baviera. Há também alguns católicos intelectuais proeminentes no Ocidente que criticaram Francisco fortemente.
Eles articulam uma teologia que poderia ser chamada de “American Catholicism first” [o catolicismo estadunidense em primeiro lugar]. Seu desprezo pelo catolicismo europeu é também o desprezo pela história da Ostpolitik vaticana.
E a visão deles sobre o papel da Igreja Católica na busca de caminhos de diálogo com outros cristãos, não cristãos e a secularidade no mundo de hoje está completamente em desacordo com a visão do papa.
Francisco continua colocando a Igreja ao lado da paz mundial e da dignidade humana.
Isso é visto com ceticismo (para dizer o mínimo) por parte daqueles que acreditam que o catolicismo é a melhor maneira de definir uma identidade político-cultural no Ocidente corrupto e imoral e, portanto, também a melhor maneira disponível de definir os próprios inimigos.
O maior problema para a geopolítica da Igreja Católica e dos cristãos hoje não é Donald Trump nem Vladimir Putin. É o choque entre visões alternativas do cristianismo e do catolicismo neste mundo globalizado e disruptivo.
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Trump, Putin e o cristianismo: um encontro de oração em Bari e uma cúpula em Helsinque. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU