04 Junho 2018
O documento Oeconomicae et pecuniariae quaestionis propõe transformar, e não apenas reformar, blocos inteiros do sistema financeiro que foi se formando ao longo dos últimos 40 anos para levar as finanças novamente à sua vocação original: a de servir ao bem comum da civitas que – como Cícero nos lembra – é a “cidade das almas”, ao contrário da urbs, que é a “cidade das pedras”. Essa é a estratégia que vale, ao mesmo tempo, para evitar o risco tanto de utópica palingênese, quanto do misoneísmo, que é a atitude típica daqueles que detestam a novidade e se opõem ao novo.
A opinião é do economista italiano Stefano Zamagni, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e membro da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Autor de inúmeros livros, publicou em português “Economia civil: eficiência, equidade e felicidade” (Ed. Cidade Nova, 2010), em coautoria com Luigino Bruni, o artigo foi publicado em Settimana News, 29-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Oeconomicae et pecuniariae quaestionis é um documento – tornado de domínio público no dia 17 de maio de 2018 – original e intrigante.
Original pelo corte expositivo e, sobretudo, porque é a primeira vez que a Congregação para a Doutrina da Fé – cuja competência abrange também as questões de natureza moral – intervém sobre uma matéria de doutrina social da Igreja.
O trabalho conjunto entre a Congregação e o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral já é, por si só, algo que não pode passar despercebido e que deixará a sua marca.
Oeconomicae et pecuniariae quaestionis é também uma contribuição intrigante ao modo e à densidade com que aborda uma temática que, como a das novas finanças, está hoje no centro das preocupações da Igreja e da sociedade em geral (o Papa Francisco aprovou o documento que, portanto, entra no magistério ordinário).
Como diz o subtítulo (“Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”, grifo nosso), não nos encontramos diante de uma espécie de exortação apostólica ou de um texto de corte pastoral. Em vez disso, lê-se nele uma análise cientificamente fundamentada das causas remotas das desordens e dos problemas que a arquitetura do atual sistema financeiro vai determinando. Não é, portanto, uma mera descrição, embora pontual e precisa, dos efeitos gerados por uma nova finança que se tornou, ao longo das últimas décadas, autorreferencial, isto é, finalizada a si mesma, em vez de servir ao bem comum.
Lê-se no n. 5: “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos (sic!), e valorizando o serviço à economia real. Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados (...) não consta porém uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo”.
Para evitar equívocos, é bom especificar que o documento não fala, de modo algum, contra as finanças, das quais reconhece a relevância e também a necessidade. E não poderia ser diferente, se considerarmos que as finanças modernas nascem dentro do leito do pensamento econômico franciscano – o primeiro banco em sentido próprio foi fundado em Perugia, em 1462, como Monte di Pietà.
Em vez disso, ele toma posição em relação a uma realidade eficazmente descrita pelo seguinte dado: em 1980, o conjunto dos ativos financeiros em nível mundial era quase igual ao Produto Interno Bruto (PIB) também mundial. Em 2015, a primeira variável tornou-se 12 vezes superior em relação à segunda. Falar de elefantíase da atividade especulativa é quase um eufemismo.
O ponto central do argumento desenvolvido no documento é a afirmação do princípio segundo o qual a ética e as finanças não podem continuar vivendo em esferas separadas. Isso implica a rejeição da tese do NOMA (Non Overlapping Magisteria), formulada pela primeira vez em economia em 1829 por Richard Whateley, catedrático da Universidade de Oxford e bispo da Igreja Anglicana.
De acordo com essa tese, a esfera da economia deve ser mantida separada tanto da esfera da ética quanto da da política, se quisermos que a economia ambicione a ver reconhecido o seu status de disciplina científica. E assim foi, pelo menos até tempos recentes, quando se começou a falar, com Amartya Sen e outros, de economia e ética.
Não há necessidade de ser um especialista na matéria para compreender como, a partir de tal premissa de valor, pôde-se chegar às novas finanças, cujo lema é: “Aquilo que é possível fazer para obter um resultado útil deve ser feito”.
Observe-se que as novas finanças não têm tanto a ver com os tradicionais contratos financeiros (ações, obrigações, hipotecas etc.), mas sim com fluxos de caixa (alimentados por lucros, pagamentos de juros etc.) que são combinados entre si para criar cada tipo de produto financeiro – em particular, os famigerados derivados.
Os parágrafos 7-12 de Oeconomicae et pecuniariae quaestionis se detém com grande incisividade a descrever como, a partir da aceitação do princípio do Noma, derivou-se o acolhimento do pressuposto antropológico (de ascendência hobbesiana) do homo homini lupus, posto como fundamento da figura do homo oeconomicus. Se eu penso que o outro é um potencial lobo famélico para mim, poderei confiar nele e poderei me abster de enganá-lo em minha vantagem em alguma transação financeira se isso puder ocorrer sob o abrigo da lei?
Bem diferente é o pressuposto antropológico a partir do qual o paradigma da economia civil – fundado por Antonio Genovesi em 1753 em Nápoles – que, rejeitando explicitamente o NOMA, reconhece que “homo homini nature amicus” (o homem é, por natureza, amigo do outro homem).
A segunda novidade de destaque do documento é a relevância atribuída ao princípio da responsabilidade adiafórica (indiferenciada), que quase nunca é mencionado. O parágrafo 14 diz: “Para além do fato que muitos de seus operadores sejam individualmente animados por boas e retas intenções, não é possível ignorar que hoje a indústria financeira, por causa da sua difusão e da sua inevitável capacidade de condicionar e, em certo sentido, de dominar a economia real, é um lugar onde os egoísmos e as imposições violentas têm um potencial excepcional de causar danos à coletividade”.
Esse é um exemplo notável de estrutura de pecado, como João Paulo II a chamou pela primeira vez na doutrina social da Igreja na sua Sollicitudo rei socialis (1987).
Não é apenas o operador da bolsa, ou o banqueiro, ou o homem de negócios o responsável pelas consequências das ações que põe em prática – o que é óbvio e é conhecido pelo menos desde os tempos de Aristóteles. As instituições econômicas – isto é, as regras do jogo econômico –, se construídas sobre premissas de valor contrárias a uma ética amiga do homem, também podem gerar danos enormes, independentemente das intenções daqueles que nelas operam.
Para compreender melhor a razão disso, convém fixar a atenção em três características específicas das novas finanças.
A primeira é a impessoalidade dos contextos de mercado, que obscurece o fato de que, em algum lugar, sempre há alguém do outro lado do negócio. Hoje dispomos de tanta evidência empírica que mostra que, quanto mais o decisor do impacto da sua atividade está distante em relação a outros, menos forte é o seu senso de responsabilidade social.
A segunda característica é a complexidade das novas finanças, que levanta problemas de agentividade indireta: o principal (isto é, aquele que toma a decisão) se reconhece como moralmente descomprometido em relação às ações implementadas pelo seu “engenheiro financeiro”, isto é, pelo especialista ao qual confia a tarefa de desenhar um certo produto financeiro. Por sua vez, este último fica com o coração em paz, porque está convencido de executar uma ordem. Assim, acontece que cada um desempenha o seu papel; cada um separa a própria ação do contexto geral, recusando-se a querer aceitar que, mesmo que apenas administrativamente, fazia parte da engrenagem.
Por fim, as novas finanças tendem a atrair as pessoas menos preparadas do ponto de vista ético; isto é, pessoas que não têm escrúpulos morais e, acima de tudo, muito gananciosas (observo que tal característica foi recentemente levantada por Richard Posner, famoso economista e jurista da célebre escola de Chicago!).
Assim, conseguimos compreender por que o problema não reside unicamente na presença de poucas ou muitas maçãs podres; mas é na própria cesta das maçãs que se deve intervir.
Um exemplo para esclarecer o ponto. Se as regras do jogo financeiro permitem que alguns bancos possam assumir dimensões tais a ponto de, depois, poderem ser capazes de “chantagear” o sistema de acordo com aquilo que é bem indicado pela expressão “too big to fail” (grande demais para falir), não podemos nos admirar nem rasgar as vestes se isso, no fim, acontece. Com isso, os vários reguladores – isto é, as autoridades de controle – deverão se limitar a fazer ouvir a sua voz e a usar o seu chicote sobre os operadores financeiros de pequeno e médio porte – como aconteceu na recente crise, precisamente.
Os grandes bancos de negócios – aqueles que causaram a crise – não só acabaram recebendo fundos públicos, mas hoje continuam se comportando como nos anos anteriores à eclosão da crise (salvo pequenas correções ou algumas multas).
Pretendo falar sobre um último ponto – por evidentes óbvias de espaço. O documento em questão toma uma posição definitiva e explícita contra a tese da dupla moralidade – infelizmente difundida também entre algumas organizações de tipo financeiro que declaram se inspirar na doutrina social da Igreja.
Para entender do que se trata, convém partir do ensaio de Albert Carr, Is business bluffing ethical? [Blefar nos negócios é ético?], publicado na prestigiada Harvard Business Review de 1968. Esse é o ensaio que, mais do que qualquer outro, guiou até hoje a reflexão ética no mundo dos negócios.
Nele, lê-se que o homem de negócios de sucesso deve ser guiado por “um conjunto diferente de padrões éticos”, pois “a ética dos negócios é a ética do jogo [de azar], diferente da ética religiosa”.
Assimilando o business ao jogo de pôquer, o renomado economista estadunidense conclui que “os únicos vínculos de cada movimento no business são a legalidade e o lucro. Se algo não é ilegal em sentido estrito (sic!) e é lucrativo, então é eticamente obrigatório que o homem de negócios o realize”.
Não haveria necessidade de comentar, se não fosse pelo fato de que ainda hoje a maioria daqueles que operam nas finanças se comportam de acordo com essa linha de pensamento – embora não tenham a coragem de reconhecer. E, de fato, quase nunca o ensaio de Carr é citado.
O seu sentido último é dar asas à inversão da famosa regra de ouro: “Faça aos outros o que você não gostaria que os outros fizessem a você” (por outro lado, não é verdade, talvez, que, no pôquer, o jogador deve trapacear seu adversário, fazendo-o acreditar que tem em mãos a carta que não tem? Assim, conseguimos entender por que, na linguagem corrente, se continua falando de “jogar na Bolsa”).
É claro, houve estudiosos que tentaram defender o princípio da dupla moralidade argumentando que a lei vigente reflete os cânones morais predominantes na sociedade, e, portanto, o respeito à lei já subsumiria o respeito pela norma moral. Eu não tenho aqui o espaço para demonstrar a falta de fundamento racional de tais argumentações. Basta-me recordar que Auctoritas non veritas facit legem – princípio básico de todo o positivismo jurídico de Kelsen em diante.
Os parágrafos de 22 a 34 de Oeconomicae et pecuniariae quaestionis se detém no faciendum: o que fazer para tentar inverter a situação?
São diversas as propostas levantadas – todas realizáveis, se se quisesse. Do apoio a institutos que praticam as finanças não especulativas, como os bancos de crédito cooperativo, o microcrédito, o investimento socialmente responsável, às muitas formas de finanças éticas – já hoje os fundos éticos intermedeiam cerca de 20% dos investimentos financeiros em nível mundial. Do fechamento das finanças offshore – verdadeira forma de canibalismo econômico daqueles que, com os credit default swaps, especulam sobre a falência alheia – à regulamentação do shadow-banking (bancos-sombra que operam fora de qualquer quadro normativo oficial).
O objetivo a se buscar é assegurar uma efetiva biodiversidade bancária e financeira (gostaria de lembrar aqui tanto o recente Standard Ethics Rating com o qual são avaliados e classificados bancos e outros intermediários financeiros em relação ao indicador ESG – Environment, Social, Governance – quanto o nascimento da ERIN – European Responsible Investment Network – que já em 2016 administrou mais de 23 trilhões de dólares).
De especial interesse é também a proposta de colocar ao lado dos conselhos de administração dos grandes bancos comitês de ética constituídos por pessoas moralmente íntegras, além de competentes – como já acontece nas grandes policlínicas.
A esse respeito, gostaria de falar sobre a decisão tomada em abril de 2015 pela Dutch Banking Association (a associação de todos os bancos holandeses) de exigir dos bancários (cerca de 87.000 pessoas) o juramento do banqueiro, elaborado na mesma linha do juramento hipocrático para os médicos. O juramento consiste em oito compromissos específicos. Indico apenas alguns: “Prometo e juro nunca abusar dos meus conhecimentos”; “Prometo e juro desempenhar as minhas funções de modo ético e cuidadoso, esforçando-me para conciliar os interesses de todas as partes envolvidas: clientes, acionistas, empregados, sociedade”.
Portanto, há um esforço em favor de todas as classes de stakeholder e não apenas da dos acionistas. Seria bom se, a exemplo da Holanda – um país certamente não inexperiente nem atrasado em âmbito financeiro –, a Itália também quisesse refazer seus traços.
Das três principais estratégias com as quais se pode tentar sair de uma crise de tipo entrópico – como a atual –, isto é, a revolucionária, a reformista, a transformacional, o documento Oeconomicae et pecuniariae quaestionis desposa – alinhado com o magistério do Papa Francisco – a terceira.
Trata-se de transformar – não basta reformar – blocos inteiros do sistema financeiro que foi se formando ao longo dos últimos 40 anos para levar as finanças novamente à sua vocação original: a de servir ao bem comum da civitas que – como Cícero nos lembra – é a “cidade das almas”, ao contrário da urbs, que é a “cidade das pedras”.
Essa é a estratégia que vale, ao mesmo tempo, para evitar o risco tanto de utópica palingênese, quanto do misoneísmo, que é a atitude típica daqueles que detestam a novidade e se opõem ao novo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Transformar as finanças: o desafio lançado pela Igreja. Artigo de Stefano Zamagni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU