Por: João Vitor Santos e Ricardo Machado | 01 Junho 2018
Se ao longo da segunda-feira, 28-5-2018, a imobilidade dos transportes no território brasileiro começava, lentamente, a se movimentar após oito dias de greve dos caminhoneiros, em termos de avanço político ainda estamos estagnados. Essa parece ser a conclusão geral, que ocorre por diferentes caminhos, dos conferencistas que participaram do dia de imersão do 3º Ciclo de Estudos – A esquerda e a reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros no IHU.
Uma das falas que causou mais, digamos assim, desconforto no público foi de Pablo Ortellado, professor e pesquisador na Universidade de São Paulo – USP, justamente quem fechou o dia de debates. Com uma postura muito pouco ortodoxa em relação a partidos políticos e aos modelos mais clássicos de análise, o pesquisador sustenta a tese de que foi o silêncio de um ano e meio da esquerda entre Junho de 2013 e dezembro de 2014 que transformou o que era uma luta progressista em um carnaval conservador e reacionário.
Para introduzir o tema, Ortellado fez menção à greve dos caminhoneiros dividindo-a em dois temas: a greve dos caminhoneiros propriamente dita e como a sociedade está repercutindo a greve. “Os caminhoneiros querem redução do diesel, do pedágio e uma tabela mínima de frete. É uma luta corporativa. Mas quando isso vai para repercussão da sociedade, transforma-se em uma luta pela redução do combustível e contra a corrupção. Há um raciocínio falso, mas coerente”, analisa o professor.
Ele lembra que um dos discursos mais recorrentes nos debates sobre o preço do combustível é que ele está em alta devido à corrupção. Mas na verdade não tem nada a ver uma coisa com a outra, porque a política de preços da Petrobras está suscetível a duas variações: o preço do barril no mercado internacional e da taxa cambial, que é alterada conforme a valorização do dólar. Para superar o impasse, Ortellado lembra que a “intervenção militar é uma das propostas que aparecem, embora não a única, como resposta à crise. Isso tem a ver tanto com a incapacidade da esquerda como da direita de dar respostas ao momento atual”, pondera.
A polarização brasileira é muito datada. É um antagonismo de tal maneira acentuado que tudo que uma parte propõe o adversário imediatamente crítica. “O nosso caso está muito ligados aos protestos de Junho de 2013, que basicamente tinha dois tipos de reivindicação: mais serviços públicos (transporte, educação e saúde) e crítica à representação política e à corrupção. A parte que criticava o Estado por não ser mais horizontal nas decisões ficou mais de fora do processo. E a direita levou um ano e meio, desde Junho de 2013, para capturar o movimento em relação a anticorrupção. Aí a história de 2014, é a história da organização da direita como bastião contra a 'corrupção'”, pondera.
O paradoxo que se estabelece, porém, é de que as pessoas, tanto as que poderíamos identificar como direita quanto as de esquerda, têm opiniões muito parecidas em temas concretos, como, por exemplo, o fato de uma mulher ser contrária ao assédio às mulheres, mas o feminismo, no entanto, "constitui-se" como uma pauta de esquerda, mesmo que pessoas de esquerda e direita concordem no caso concreto. “Isso produz efeitos políticos decisivos porque as pessoas, mesmo concordando nos temas concretos, quando divergem no espectro político passam a não pensar mais racionalmente em quem vão votar e agem 'automaticamente' votando naquele que faz parte do próprio perfil ideológico”, descreve Ortellado.
Pablo Ortellado | Foto: Ricardo Machado | IHU
As inferências de Ortellado partem da análise de gráficos de interação no Facebook, em que desde 2014 ele estuda e percebe que a organização política difusa das pautas, tanto à direita quanto à esquerda, passaram a se dividir radicalmente transformando-se em polarizações. “O que há de comum é que as pessoas que agora habitam a esquerda e a direita, como extremos, não conseguem se expressar. A nossa capacidade de articulação como sociedade civil está rompida à medida que chamamos um de coxinha e outro de petralha e não conseguimos implementar nosso acordo (mesmo concordando em pautas concretas) porque fomos fragmentados pelo campo político”, destaca. “O que essa reflexão coloca em questão é a necessidade de uma identidade de esquerda, pois a chantagem é justamente essa. Nossa vinculação ao rótulo produz a divisão ideológica que impede que os consensos políticos produzam avanços. Há quatro anos atrás não era assim e isso está nos enfraquecendo politicamente, produzindo uma encruzilhada em escala global, da qual não fazemos a menor ideia de como sair, porque é um processo relativamente recente”, complementa.
O professor da Universidad de Buenos Aires Pablo Miguez tratou de tentar entender as relações entre o capitalismo cognitivo e o neodesenvolvimentismo em sua conferência O contexto latino-americano e a reinvenção da política e da esquerda. Na avaliação do professor, o neodesenvolvimentismo foi mais importante para o rentismo que para a indústria, de modo que a partir dos anos 1970 há uma reconfiguração do capitalismo que o torna muito difícil de pensar e projetar o papel da indústria.
“O neodesenvolvimentismo não registrou as mudanças que iriam ocorrer e não percebeu que as promessas não era cumpríveis, então ele só se torna possível com a valorização das commodities”, analisa. “Além disso, as políticas de câmbio favoráveis à exportação se combinam com a desindustrialização. Com isso, o neodesenvolvimentismo vai se transformar em um neoextrativismo que não respeita nem o direito dos camponeses e, ainda por cima, destrói a natureza”, frisa.
Pablo Miguez | Foto: Ricardo Machado | IHU
Fazendo uma análise retrospectiva, Miguez analisa que “o primeiro governo Lula teve um política monetária ortodoxa, tal qual os liberais, com o Meirelles na fazenda, por exemplo, mas também teve o Bolsa Família para 50 milhões de pessoas. “Em 2014 ocorreu a saída da Dilma em um contexto de enorme déficit fiscal. Aí com a entrada do Temer em 2016, retoma-se o projeto da direita. Em 2018 o próprio Temer decreta intervenção militar e em seguida tem a morte da Marielle”, retoma.
“Não podemos nos apegar às ideias polarizadas dividindo o mundo entre o neodesenvolvimentismo e o neoliberalismo. Precisamos criar uma imaginação política maior, mas isso não é nada fácil, os partidos estão desacreditados e as instituições da mesma forma”, pondera. “Estamos diante de um capitalismo rentista, que é próprio do capitalismo cognitivo. Quando tratamos de introduzir a discussão sobre a dinâmica do capitalismo cognitivo o que vemos é que e os movimentos desenvolvimentistas se deixam crescer no interior do Estado. Isso ocorre porque o Estado é capitalista e não um Estado que promove a emancipação”, critica.
Como alternativa, o pesquisador traz à baila a noção de bem comum, ou bem viver, nos termos dos povos ancestrais da América Latina. “O conhecimento é um bem comum e como é comum, é de todos. Não se trata de bens privados, muito menos públicos. Os bens comuns devem ser regidos pela não propriedade, nem da iniciativa privada nem do Estado. Os saberes ancestrais e tradicionais podem substituir o pensamento do capitalismo cognitivo que sobrepõe as contradições do capitalismo industrial”, sugere.
As duas primeiras conferências do dia tiveram como eixo central de debate a constância das crises de Estado. O mundo de hoje não é mais o mesmo e a velha política não dá mais conta de compreender a realidade. Essas frases já são praticamente unanimidade, pois é quase senso comum que o estado de crises em que estamos imersos é fruto de um sistema político moribundo. Mas como pensar algo novo em meio a tantas tensões? Para os uruguaios Eduardo Gudynas, professor do Centro Latino Americano de Ecología Social – CLAES, e Raúl Zibechi, analista político, a resposta não é dada. Os dois, que ministraram as duas conferências de abertura do 3º Ciclo de Estudos, afirmando que a mudança passa por um olhar local porque os grandes clássicos da ciência política não aderem mais nessa realidade latino-americana.
Eduardo Gudynas (Foto: Jonathan Camargo | IHU)
Para ensaiar esses movimentos, Gudynas e Zibechi trilham caminhos diferentes, mas muito similares e que têm em comum uma espécie de superação da perspectiva colonialista, ou de um colonialismo contemporâneo. O primeiro, fala de uma ideia da modernidade viscosa que incide sobre a realidade da política da América Latina e transmuta a ideia de esquerda em progressismo. “Zygmunt Bauman tem o conceito mais famoso de modernidade líquida, que é aquilo que se opõe ao sólido das instituições de tempos passados. Isso me é interessante para pensar a realidade do continente e os governos progressistas que não podem ser apenas lidos como de esquerda e, tão pouco, podem ser considerados como a sólida direita. Por isso adoto essa ideia de viscosidade”, explica.
Gudynas mostra diversos pontos que eram tratados pela esquerda e que, no progressismo, passam por transformações
(Foto: Susana Rocca | IHU)
Zibechi se propõe a pensar de na ideia de extrativismo, para ele uma apropriação indevida, quase como um roubo ou uma expropriação. “Extrativismo não é só uma questão econômica, é muito mais e impacta na realidade de toda uma população. Há uma cultura do extrativismo, por isso podemos pensar nas consequências política e sociais. O capitalismo não é só econômico, assim como o extrativismo não é só econômico. Por isso, prefiro tratar como sociedade capitalista e cultura extrativista”, detalha.
Assim, Gudynas sugere que se faça uma interpretação do pensamento de Bauman e não se force encaixes que não dão conta e reduzem tudo a líquido ou a sólido. Pelos movimentos que levaram partidos de esquerda para o governo de países latinos, como movimentos líquidos da esquerda, mas que vão se associando à perspectiva mais liberal. Com o subterfúgio de viabilizar o progresso desses estados, passa à ideia não mais de esquerda, mas de governos progressistas. É, na sua perspectiva, o que gera uma série de incertezas que envolvem reconfiguração territoriais, violência e uma espécie de “política gelatinosa”. “São os vários movimentos de muitos partidos com pouca base de fato e que se deslocam de maneira disforme”, analisa.
Para Gudynas, pensar em reinvenção da política passa necessariamente em compreender essas diferenças entre a esquerda, no conceito célebre, e o progressismo. Esse segundo, para ele, é que gesta o novo desenvolvimentismo que, a partir de Bresser-Pereira, compreende como uma perspectiva que deixa o estado mais forte e com isso o coloca direto em negociação com o mercado. Como exemplo, recorda a associação do governo argentino do Cristina Kirchner com a multinacional de combustíveis fósseis Exxon; de Pepe Mujica, no Uruguai, com o milionário David Rockefeller; Evo Morales, da Bolívia, e o flerte com mercado de capitais e até o brasileiro Lula se insurgindo como a voz do progressismo latino-americano no Fórum Econômico de Davos. “É preciso ter clareza que essa transformação da esquerda em progressismo trouxe consequências importantes”, alerta Gudynas.
Raúl Zibechi, para fazer frente às perspectivas extrativistas, gosta da ideia dos zapatistas que falam que estamos vivendo uma espécie de 4ª guerra mundial. “Eles fazem essa análise desde os povos originários, pois para eles o extrativismo é sim uma guerra”, explica. “Antes, o povo trabalhador era recurso para a extração de mais valia, mas, agora é algo a superar porque é visto como algo que atrapalha a lógica do extrativismo. Por isso, vejo o extrativismo como uma ocupação vertical e violenta. Podemos compreender a partir do caso de Belo Monte, ou do avanço do plantio da soja ou mesmo a especulação imobiliária do espaço urbano”, completa.
Zibechi (ao fundo) sugere que se olhar para as culturas locais, as cosmovisões de onde pode vir a autonomia dos sujeitos
(Foto: Susana Rocca | IHU)
Uma das consequências é uma relação assimétrica entre as empresas, os estados e os povos. “Os povos estão no chão, os estados submetidos e as empresas no comando”, esclarece. É esse novo extrativismo que, para Zibechi, tem sido comandado pelos governos progressistas e que tem causado grandes confusões com os movimentos sociais. “Lembro de Mujica dizendo que era preciso se fazer um monumento à soja, pois era dela que vinha a riqueza. Só não falava da destruição e expropriação dos territórios que ela ia deixando”, avalia. “Por isso avalio que os governos progressistas tem sido amigo dos extrativistas”.
E como conceber saídas diante desse quadro? Tanto Gudynas quanto Zibechi reiteram que sonhar a reinvenção política na América Latina passa essencialmente pela perspectiva local. “Precisamos de autonomia e não mais de questões teóricas. Essa autonomia é a chave para um caminho que é de longo prazo, que é construído a cada dia. É passar as teorias pelo filtro e ver de fato o que serve e o que não serve para nossa realidade”, indica Zibechi. Para buscar essa autonomia, sugere que olhemos mais para as ideias, as danças, as culturas locais, valorizando a chamada cosmovisão de povos originários. “Isso é pensamento crítico. Não é só o que está nos livros, os povos têm esse pensamento crítico. A crise que vivemos hoje é uma crise civilizacional, como o Dilúvio. Precisamos construir arcas como a de Noé para navegar por esse mundo e sobreviver a dilúvios”, resume.
Gudynas, além cessar com o eurocentrismo e importação de teorias, sugere também autocrítica. Quando partidos de esquerda assumem a maioria dos estados latino-americanos, convertem-se ao progressismo. Sem enxergar esse limite, vão ruindo e abrindo espaço para uma reversão conservadora como estamos vivendo atualmente. “A esquerda no poder atinge uma certa petulância tecnocrática que não aceita a crítica de outros movimentos por se julgar a sabedora de lidar com questões de estado. Afinal, o progressismo quer a unanimidade e não as discussões tão típicas da esquerda”, avalia. Assim, o professor diz não concordar com a ideia do fim de esquerda. “Porque isso revela que ainda se está confundindo a esquerda com o progressismo”, explica. Contudo, para ele, ainda há saída à esquerda, mas isso depende daquela que olhar aos movimentos da base e que consiga permitir que elas emerjam suas potências.
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Entre a falsidade da polarização política e a imobilização identitária. A encruzilhada da reinvenção política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU