10 Mai 2018
Há meio século, um vírus de desobediência contagiou o planeta. Todas as hierarquias foram postas em xeque. Mas 1968 está sendo? Onde foi parar sua explosão inventiva?
O artigo é de Jean Tible, militante e professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo. É autor de Marx Selvagem (Annablume, 2013; 2. edição, 2016) e co-organizador de Junho: Potência das Ruas e das Redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) e Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil (FES, 2015); publicado por Outras Palavras, 08-05-2018.
A barricada fecha a rua, mas abre caminhos. Uma das frases símbolos dos muros de Paris em maio de 1968. 68, uma revolução mundial. Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, dentre outros pedaços. Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo.
O que parecia sólido se desmanchou no ar, o que parecia estável vazou (ainda que somente por alguns dias, semanas, meses – mas os efeitos ainda nos atingem). Colonialismo, patriarcado, supremacia branca, capitalismo e socialismo autoritário bambearam. Ou pereceram ou se reorganizaram – e continuam sendo questionados por inúmeras ações. Apesar da diversidade de situações e países, um elemento comum: o anticonformismo – seja encarando uma ditadura militar, poderes coloniais, sociedades capitalista ou socialista. Tratou-se de uma irrupção em defesa do direito de discordar, da multiplicação de vozes, da polifonia.
Abrir as portas dos asilos, das prisões e das escolas foi outro lema-pixo forte. Ninguém mais quis cumprir seu papel social habitual, embarcando num êxodo de libertação e busca de novas vias: operários (ocupando fábricas e locais de trabalho), estudantes (tomando universidades), artistas e criadores (dando outros significados para seus espaços e práticas), camponeses (se levantando), negros (se sublevando), mulheres, gays, lésbicas e muitas outras (afirmando novos corpos). Fuga do trabalho e busca da vida. Isso tudo já vinha ocorrendo, mas em 68 se acelerou e se reforçou, encontrou e produziu novos caminhos, pessoas, coletividades. Inspirações.
Todas as autoridades foram questionadas e hierarquias postas em xeque: patrões, professores, pais, chefes, tiranos, colonizadores, padres, pastores, rabinos, irmãs, representantes culturais e midiáticos… Uma viralidade do dissenso, um deslocamento das dominações e opressões e uma afirmação das singularidades. Desejos de autonomia, de novas vidas: o levante de uma nova geração político-existencial. Político e existencial: quem separou um dia essas esferas? A revolução é uma eztetyka (Glauber Rocha, 1967). Política e vida, política e arte – a busca pelo fim da representação em ambas. Impossível separar. Política e jogo, política e humor, política e festa, política e prazer, política e psicoativos. Política é criação – o resto é burocracia. Só interessa o que é inventor: “o trabalho criador propõe uma nova sociedade” (Helio Oiticica).
1968 é também (e sobretudo!) uma insubordinação anticolonial nos países da periferia (Argélia, Vietnã, Angola, Cuba…) e nos do centro (Panteras Negras e muitas outras nos EUA e outras partes). O Vietnã (e sua heroica resistência de camponeses pobres contra o maior Império) constituíram um poderoso catalisador das imaginações subversivas. Criar, um, dois, mil Vietnãs, declamava Che Guevara. Reforçando os nexos política-cultura, Zé Celso desloca essa frase ao dizer que o “objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial, de consumo fácil”. O oposto da morte é o desejo – práticas de descolonização dos corpos. No Brasil, 1968 são as lindas e corajosas greves de Osasco e Contagem, as irrupções estudantis e, também, uma busca coletiva para se libertar definitivamente do complexo colonial – conectando-se com a busca de Oswald de Andrade pela exportação de poesia (e não mais sua importação enlatada). Consideramos 1922 como início de uma revolução cultural no Brasil, nos disse Glauber Rocha em 1969.
1968 marca o início do nosso mundo contemporâneo. Uma revolução sempre acompanha-se das reações, da contrarrevolução, daí a reação-repressão por todos os lados nos anos seguintes. A economia se reorganizou e buscou capturar a inventividade expressada, os poderes viram um excesso de democracia (onde ela existia minimamente) e de demandas sociais e existenciais. A partir daí, as desigualdades entraram numa perigosa espiral de aumento generalizado, tendo o Chile de Pinochet como laboratório desse novo modelo (neoliberalismo). No Brasil, o contragolpe veio bem rápido: o golpe civil-militar de 1964 reforçou ainda mais seu autoritarismo com o AI-5 de 13 de dezembro de 1968, e, na sequência, milhares de pessoas punidas, cassadas, presas, torturadas e centenas de filmes, peças, livros, programas de rádio, letras de música, revistas censurados.
1968 está sendo? Continua sua explosão inventiva? Vive, creio, numa nova sensibilidade, numa transesquerda (Zé Celso), num protagonismo negro, feminista, dos trabalhadores e criadores, em sua rebelião sempre renovada. Os tempos são outros mas guardam semelhanças, no Brasil contemporâneo e alhures, e nos pedem: criemos com alegria e cuidemo-nos – só nos resta resistir e criar, reexistir.
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O ano em que o velho mundo balançou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU