Por: Ricardo Machado | 09 Mai 2018
Laura Carvalho tem um jeito expansivo e claro de apresentar suas ideias. Fala de economia, mais especificamente de macroeconomia, com uma desenvoltura penetrante que transforma o “economês” em algo absolutamente palatável. Apesar do sotaque carioca, é paulista. É um misto de bon vivant e teórica rigorosa. Suas ideias em movimento parecem expressar seu próprio estilo de vida, afinal na segunda-feira ela chegou de Londres, onde debateu com Samuel Pessoa no Brazil Forum UK, ministrou três aulas na Universidade de São Paulo - USP e na terça-feira à tarde estava em São Leopoldo para a sua conferência Estratégias para a economia brasileira e a sua trajetória macroeconômica de 2003-2017.
Enquanto ela fazia a introdução dos assuntos de sua palestra, um grupo de alunos, nos corredores do campus São Leopoldo da Unisinos, gritavam “Fora Temer!”. Inicialmente Laura fez uma breve digressão sobre o período 2003-2005, que antecedeu a série histórica que ela analisa profundamente em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico (São Paulo: Editora Todavia, 2018). Antes de aprofundar os temas, Laura fez um alerta: “O momento é de tirar algumas lições a partir de um olhar retrospectivo. Isso não é simples, pois o atual momento do país e dos debates polarizados vai fazendo a gente gastar nossa energia nesse debate mais raso.”
Para Laura, o decisivo no desenvolvimento econômico do país entre 2006 e 2010 foi uma espécie de “milagrinho” econômico, que ao invés de privilegiar o desenvolvimento de setores industriais mais concentradores de renda, que exigiam mão de obra um pouco mais qualificada, apostou-se no investimento na base da pirâmide social. Sem contar, inclusive, que a política macroeconômica dos militares, o chamado Milagre Econômico, pautou-se por um viés de concentração de renda e não de redução das desigualdades.
Laura Carvalho na sala Ignacio Ellacuría, no IHU (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
“Entre 2003 e 2005 o ex-presidente Lula manteve uma política financeira conservadora com Antonio Palocci e Henrique Meirelles, mas houve um crescimento da economia devido ao ciclo de valorização das commodities”, pontua. Em mais um dos exemplos do porquê o Brasil não cabe nos cânones da teoria econômica e sociológica, a guinada política foi dada, por incrível que pareça, por um caseiro, Francenildo Costa. Na verdade, Francenildo, que era empregado de Palocci, foi o pivô da quebra do sigilo bancário na investigação do ex-ministro da Fazenda, que devido as acusações de corrupção e a intensa pressão pública saiu do governo do ex-presidente Lula.
“A mudança econômica vem com o anúncio do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, no segundo governo Lula. Nisso há uma expansão mais acelerada de políticas de acesso a crédito, valorização acelerada do salário mínimo e uma expansão maior nos investimentos de infraestrutura”, explica Laura. “Há redução da destinação do Produto Interno Bruto - PIB para a dívida pública, além da expansão dos programas sociais que já existiam desde 2003”, complementa.
De acordo com a conferencista, o Brasil a partir de 2006 passou a gerar empregos específicos nas áreas de serviço e construção civil. “Esses são setores que quando as pessoas começam a ter uma renda melhor passam a ir a restaurantes, salão de beleza e outros serviços, que têm uma elasticidade de renda maior”, frisa.
Há outro fator importante nesse processo que é o fato desses setores serem intensivos em produção de postos de trabalho. “Investimento nestas áreas geram empregos em abundância, justamente em uma mão de obra que o Brasil tem em grande quantidade: pessoas poucos escolarizadas. São setores que empregam muita gente que estão na base da distribuição de renda”, analisa. “Essa redistribuição não melhora somente porque tem políticas de distribuição de renda, mas também pelos setores que vão crescendo e isso entra em um dinamismo do mercado interno de crescimento e investimento das empresas”, propõe. O ápice de todo esse processo é 2010, quando a economia brasileira atinge seu auge de crescimento em 7,5%.
No país de Macunaíma, a tarefa de redistribuir renda sempre se deu pela quixotesca proposta de taxar o consumo, o que tornou o país altamente regressivo em termos de política tributária. “No Brasil os ricos acham que são classe média e os pobres também acham que são classe média. Os 50% da população que estão achatados entre o 1% mais rico e os miseráveis, seriam considerados pobres na Europa. Então a tarefa de distribuir renda via gasto se torna um pouco quixotesca”, critica a economista.
“Quem reclamava dos preços do restaurante ou do salão? Quem ia, ora. Os processos inflacionários dos serviços têm uma natureza particular e isso gera uma distribuição da renda que foi compensada com a ajuda da valorização do real”, pontua Laura. “Para que a inflação não saísse de controle, o governo deixou a inflação dos serviços crescer e freou os demais setores com uma moeda muito valorizada”, explica. Em paralelo, a estrutura produtiva nacional não acompanhou esse desenvolvimento, que acabou se configurando, atualmente, em um dos desafios da economia brasileira, pois as importações têm seguido uma tendência de alta.
A pesquisadora lembra que o apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp ao impeachment da ex-presidenta Dilma foi uma grande ironia, para não dizer cinismo. “A Fiesp apoiou todas as medidas econômicas implantadas no primeiro governo Dilma. Não somente apoiou como celebrou e propôs tais políticas. As entidades patronais demandaram a desoneração da folha, desvalorização do real, redução das tarifas da energia elétrica. Houve um consenso das entidades patronais e dos sindicatos em torno da política econômica aplicada pela Dilma”, relembra.
Se, por um lado, houve consenso na aplicação das políticas a partir de 2015, por outro, não há consenso sobre as razões do fracasso de tais medidas macroeconômicas. Há desde quem considera que o problema foi a perda da base política até quem atribua à retração da economia mundial. Para Laura, contudo, o principal problema para a queda da economia brasileiro foi um erro macroeconômico de diagnóstico.
“Foi um erro a aposta no investimento privado e em políticas de desoneração a empresas que se baseiam em lucratividade”, destaca. A posição da pesquisadora não se fundamenta em uma visão romantizada sobre economia, mas na profunda materialidade das dinâmicas do capitalismo de mercado. “Empresários só expandem a capacidade produtiva quando há uma expectativa de crescer a renda da população que consome tais bens, gerando com esse aumento uma alta nos lucros. O principal investimento deveria ser na demanda, não havia razão alguma para os empresários expandirem a capacidade produtiva, porque não tinha demanda”, complementa.
Com isso as duas pontas do nó econômico se juntam. “Essas políticas substituem um dos pilares anteriores da economia nacional, que era o incentivo de investimento público. A consequência das políticas de austeridade é a estagnação dos investimentos federais que vinham se expandindo entre 2006 e 2010(ver gráfico abaixo), Fase II. Em 2011 com o ajuste fiscal houve uma queda, apesar da retomada em 2013 e 2014 ao patamar anterior com o fim do boom de commodities, Fase III. Por fim, a partir de 2015, uma queda vertiginosa nos investimentos públicos, Fase IV”, descreve.
Segundo Laura Carvalho, todo o debate em torno do aumento das despesas públicas no governo Dilma não é comprovado em dados econométricos. “O que houve foi uma enorme deterioração nas receitas (ver quadro abaixo). Além disso há a composição de quatro fatores determinantes: 1) a queda no preço das commodities; 2) corte brutal dos investimentos públicos; 3) escalada do desemprego e reversão dos ganhos nos anos 2000; 4) reajuste brusco das tarifas represadas, inflação maior e juros elevados. Qualquer análise que não apresente essas quatro variantes é uma simplificação ou uma ideologização difusa”, provoca.
Todos esses fatores levam ao aumento da desigualdade como consequência da crise financeira. “Esse tipo de crise é o espelho do crescimento econômico experimentado na primeira década dos anos 2000. Há uma reversão de todos os ganhos da base, estagnação da renda per-capita, limites à redistribuição via gastos e manutenção de uma tributação que mantém a concentração da renda”, disseca.
No fundo, todos esses processos de crise são, também, mecanismos de travas às demandas democráticas. “Essa extrema direita que aparece como ‘salvadora da pátria’ normalmente coloca a culpa da tragédia em determinadas minorias, os migrantes, os negros, as minorias de gênero. Isso ocorre quando o Estado é incapaz de mostrar resultados concretos para as pessoas”, avalia Laura. O desafio é continuar a “procissão” em defesa da horizontalidade dos mecanismos democráticos e de distribuição de renda como forma de construirmos novos anti-milagres econômicos ou milagrinhos nos termos de Laura.
Laura Carvalho é graduada e mestra em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutora na mesma área pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA. Atualmente leciona na Universidade de São Paulo - USP.
Ela esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na terça-feira, 8-5-2018, participando do Ciclo de Palestras Trajetória da Política Econômica Brasileira 2003-2017. Crescimento, crise e novas possibilidades.
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O milagrinho da economia brasileira entre 2006 e 2010 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU