20 Março 2018
“O verdadeiro motor de 68 reside em sua rejeição à causa última do capitalismo, em um ‘não’ a sua lógica de dominação, conforme a fórmula: Soyons realistes, demandons l’impossible! [Sejamos realistas, peçamos o impossível]”, escrevem os filósofos Slavoj Zizek e Miquel Seguró.
“Trazendo isso ao nosso contexto, no qual se sustenta que a história chegou a seu fim e que todos, ricos e pobres, somos vítimas do sistema, a verdadeira utopia é acreditar que o sistema global existente pode reproduzir a si mesmo indefinidamente, que é impenetrável. E a única maneira de ser verdadeiramente ‘realistas’ é apoiar o que, dentro das coordenadas desse sistema, não pode senão parecer impossível: sua real e efetiva transformação”, sintetizam.
Segundo eles, "a fidelidade a maio de 1968, ou ao que resta dele, se expressa irremediavelmente na pergunta: como nos preparar para esta mudança, para assentar as bases de um novo giro copernicano?"
O artigo é publicado por Ctxt, 14-03-2018. A tradução é do Cepat.
No 50º aniversário dos eventos de maio de 1968, em Paris e em outros lugares, se impõe refletir sobre um fenômeno: embora um imenso abismo separe o movimento dos anos 1960 dos protestos de hoje, há quem diz que somos testemunhas de uma reapropriação semelhante do mal-estar e a oposição ao sistema capitalista. É assim? Sobrevive algo dessa mobilização?
Um dos graffiti mais populares nas paredes de Paris de 68 foi: les structures ne descendent pas dans la rue, ou seja, não era possível explicar as grandes manifestações estudantis e de trabalhadores de 68 nos termos do estruturalismo. Razão pela qual alguns historiadores postulam 1968 como uma data que separa os movimentos do estruturalismo e do pós-estruturalismo. Pós-estruturalismo que, segundo se conta por sua história, é muito mais dinâmico e propenso a intervenções políticas ativas. A resposta de Jacques Lacan era que justamente isto foi o que aconteceu em 1968: as estruturas desceram às ruas; os eventos visíveis foram, em última instância, o resultado de uma mudança estrutural na textura social e simbólica básica da Europa moderna (ou caberia dizer em plena transição à pós-modernidade).
As consequências de 68 demonstram que, com efeito, tem razão. No entanto, o que palpavelmente aconteceu depois desse ano foi o surgimento de uma nova figura do “espírito do capitalismo”: o capitalismo mudou, abandonou a estrutura centralizada fordista do processo de produção e desenvolveu uma forma de organização em “rede”, que se fortalecia através da iniciativa e autonomia dos empregados. E isso acontecia no local de trabalho. A mudança não era conjuntural, nem acidental. Remetia, e ainda o faz, a uma nova ontologia do trabalho, cujo alcance não está fixado.
No lugar de uma cadeia de comando centralizada hierarquicamente, o trabalho era institucionalizado por meio de uma multiplicidade de redes integradas por uma multidão de participantes que começou a organizar o trabalho em forma de equipes ou projetos, e que com a busca da satisfação e interação do cliente garantia também o envolvimento ativo dos trabalhadores na “visão de conjunto”, liderada pela previsão de seus líderes. Este novo “espírito do capitalismo”, igualmente circular, se aproveitou triunfalmente da retórica igualitarista e anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como uma exitosa transição libertária contra as organizações sociais opressoras do capitalismo corporativo. E, cabe dizer, também do socialismo “realmente existente”.
O liberalismo econômico seria apresentado, desde então, como correlato ao liberalismo social, que incluía o desenlace da moral, uma das conquistas da Europa revolucionária. Contudo, as duas fases deste novo “capitalismo cultural” é claramente discernível, e se deixa ver, por exemplo, em campos como a publicidade. Se nos anos 1980 e 1990 predominou a referência direta à autenticidade pessoal ou a qualidade da experiência, já dentro do novo milênio se percebe um maior apelo a motivos sócioideológicos transversais (ecologia, solidariedade social...): a experiência pessoal remetia ao fazer parte de um movimento coletivo coral, de cuidar da natureza e o bem-estar dos próximos, sobretudo dos mais necessitados, de fazer algo pelo outro. Com isso, o sujeito-mônoda-burguês, que no panorama epistemológico e ético continuava passando por horas baixas, recobrava algo de autoestima. Pode ser que não fosse o centro reitor do mundo, como aspirava a Modernidade, mas o destino do globo terráqueo continuava em suas mãos.
Pensemos em uma forma subjetiva de “capitalismo ético”, uma que todos possamos interiorizar. Uma leitura do próprio consumo que funcione com a seguinte premissa: quanto mais consumo de produtos, maior quantidade de dinheiro destinado a projetos de ajuda. Quid pro quo. Usar o próprio poder aquisitivo, o meu, para beneficiar o bem comum, dos outros; é disso que se trataria. Claro, de seis bilhões de pessoas do planeta, quatro bilhões vivem em condições deploráveis e indesejáveis, sendo assim, nada melhor que oferecermos, como humanidade, um melhor caminho para um amanhã mais próspero. Operando assim, o pecado de consumir e a eventual má consciência derivada de meu ato de consumo ficariam redimidos e, portanto, despachados, com a boa consciência de que realmente é necessário consumir para que outra pessoa possa aspirar uma vida melhor. Um consumismo capitular, em definitivo. Desta maneira, a participação em atividades consumistas seria interpretada como parte da luta contra os males finalmente causados, justamente, por tal consumismo capitalista.
Mais circularidade. De maneira similar, outros aspectos de 68 acabaram se integrando com êxito na ideologia capitalista hegemônica, convivendo atualmente não só com as políticas liberais, mas também com as da direita. Por exemplo, a liberdade de escolha, que se interioriza como mitigadora dos males do trabalho precário. É fácil que exijamos de nós próprios reprimir as ansiedades de não estar seguros acerca de como sobreviveremos nos próximos anos, ao mesmo tempo em que enaltecemos o fato de que se ganha a liberdade de “se reinventar”, mais uma vez, evitando ficar preso no mesmo trabalho monótono. Ou seja, se alguém escolhe sua vida a todo instante, isso acarreta precariedade econômica. Trata-se de um dano colateral. Desse modo, o essencial é mudar de perspectiva e deixar de avaliar tal precariedade como algo ruim em si. É o preço a pagar. Mais uma vez, o sujeito-burguês, mas agora como amortizador da realidade, não seu transformador.
O protesto de 1968 centrou sua luta contra aquelas que eram percebidas como os três pilares do capitalismo: fábrica, escola, família. Como resultado, cada domínio se submeteu a uma transformação pós-industrial: o trabalho na fábrica foi cada vez mais terceirizado ou, no mundo desenvolvido, se “reorganizou” através do trabalho em equipe interativa não hierárquica pós-fordista.
A educação permanente, flexível e privatizada, substituiu cada vez mais a educação pública universal.
Por último, múltiplas formas de modelos erótico-emocionais flexíveis foram substituindo, cada vez mais, a ideia de família tradicional. No entanto, com o passar dos anos, constatou-se que a esquerda acabou perdendo em sua própria vitória: o adversário visível foi derrotado, mas neste trânsito houve tempo para sua nova recomposição, para uma nova e potencial forma de dominação capitalista mais sutil, imperceptível e, por isso, cada vez mais eficaz, direta e imune.
No "capitalismo pós-moderno”, o mercado está invadindo novas esferas que até agora eram consideradas domínio privilegiado do Estado, na educação, saúde e segurança. Assim, quando o “trabalho imaterial” (educação, gerenciamento dos afetos, etc.) é celebrado como o labor que incide diretamente em relações humanizadoras, não se deve esquecer o que isto significa dentro de uma economia mercantil: que os novos domínios, até agora excluídos do mercado, se tornaram mercadoria. Quando temos problemas, já não recorremos a um amigo ou amiga, mas, ao contrário, pagamos um/a psiquiatra ou um/a coach para que se encarregue da situação. Cada profissão precisa ter o seu espaço, é claro, mas por trás desta lógica de “naturalização” da dimensão emocional (de todo necessária!) e altruísmo profissionalizado, sobrevive outra dinâmica. É também o ciclo do mercado que se impõe onde tudo se paga.
É claro que não se deve esquecer as importantes conquistas de 68. Para mencionar só uma: abriu caminho para uma mudança radical na forma de enfrentar desafios sociais de primeira grandeza, como a igualdade de gênero, a visibilidade do movimento LGBT ou no flagelo da xenofobia. Desde então, não tem mais volta. Lamentavelmente, resta muita justiça a ser conquistada, por isso o que aconteceu em 68 não foi um evento único, nem unilateral. Ao redor de seu espírito houve a combinação de diferentes tendências de progresso e por isso mesmo continua servindo, ainda hoje, para esporear muitas posições conservadoras, que o veem como um evento antiquado e extemporâneo.
Assim, existe o “seu” maio de 1968 e o “nosso” maio de 1968. Contudo, sejamos sinceros: embora em “nossa” memória coletiva progressista se diga que ainda pulsa o espírito das manifestações de maio, em Paris, o vetor de fundo desses protestos está em vias de ser esquecido. O verdadeiro motor de 68 reside em sua rejeição à causa última do capitalismo, em um “não” a sua lógica de dominação, conforme a fórmula: Soyons realistes, demandons l’impossible! [Sejamos realistas, peçamos o impossível].
Trazendo isso ao nosso contexto, no qual se sustenta que a história chegou a seu fim e que todos, ricos e pobres, somos vítimas do sistema, a verdadeira utopia é acreditar que o sistema global existente pode reproduzir a si mesmo indefinidamente, que é impenetrável. E a única maneira de ser verdadeiramente “realistas” é apoiar o que, dentro das coordenadas desse sistema, não pode senão parecer impossível: sua real e efetiva transformação. Por isso, a fidelidade a maio de 1968, ou ao que resta dele, se expressa irremediavelmente na pergunta: como nos preparar para esta mudança, para assentar as bases de um novo giro copernicano? São admitidas propostas.
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Seu maio de 68 e o nosso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU