26 Janeiro 2018
“O Destino de uma Nação” homenageia, com razão, um líder da luta contra o nazismo. Mas esconde governante racista, que usou armas químicas contra indianos, iraquianos e revolucionários russos.
O artigo é de John Wight, publicado por RT e reproduzido por Outras Palavras, 23-01-2018. A tradução é de Mauro Lopes.
John Wight é jornalista internacional, escreveu ou escreve para The Independent, Morning Star, Huffington Post, Counterpunch, London Progressive Journal, e Foreign Policy Journal. Ele é também colunista na RT e na Rádio BBC.
“A verdade raramente é pura e nunca simples”. Assim escreveu Oscar Wilde –e a frase descreve perfeitamente a vida e o legado do líder mais famoso e reverenciado da Grã-Bretanha, Winston Churchill, um gigante político que tinha orgulho de seu racismo e do imperialismo.
Na sequência do lançamento de mais um filme hollywoodiano sobre Churchill, Darkest Hour (O Destino de uma Nação no Brasil), que está atraindo críticas favoráveis e caracteriza Gary Oldman como Churchill e Kristin Scott Thomas como sua estoica esposa Clementine, uma série de artigos sobre o homem e seu legado foi produzida, confirmando que seu lugar na história continua sendo objeto de disputa e conjecturas ao longo de meio século depois de sua morte em 1965.
O filme centra-se nas semanas da vida de Churchill nas quais talvez ele tenha sido mais famoso, quando, como primeiro-ministro, liderou a Grã-Bretanha durante o período mais sombrio de sua história, depois do desastre militar de Dunquerque em maio de 1940.
Antes de sua ascensão a primeiro ministro britânico, Churchill passara anos como um parlamentar sem maior expressão; como uma Cassandra solitária, alertando sobre a ameaça representada por Hitler. Já em 1932, depois de retornar à Grã-Bretanha de uma viagem à Alemanha, ele se dirigiu assim à Câmara dos Comuns: “Todos esses bandos de jovens teutônicos, marchando pelas ruas e estradas da Alemanha, com a luz do desejo em seus olhos para sofrer por sua pátria não estão procurando status. Eles estão procurando armas”.
No final de maio de 1940, com os panzers de Hitler nos portos do Canal do norte da França, talvez tenha sido um pequeno conforto para Churchill saber que ele tinha razão, enquanto a maior parte do establishment político britânico, que nutrira profundas simpatias pelos nazistas ao longo da década de 1930, mostrou-se errada.
O filme descreve a luta seminal que ocorreu entre Churchill e aqueles que, dentro de seu gabinete e liderados pelo ministro das Relação Exteriores, Lord Halifax (interpretado por Stephen Dillane), acreditavam não haver possibilidade de derrotar militarmente os alemães após Duquerque e que eram inflexíveis em defender um acordo com o ditador nazista, com o objetivo de salvar o império britânico.
Churchill, como a história revela, viu as coisas de maneira diferente. Isto é poderosamente representado no filme quando, exasperado pela repetidas pressões de Halifax de que chegara o momento de negociar, bateu na mesa: “Quando a lição será aprendida? Você não pode argumentar racionalmente com um tigre quando sua cabeça está na boca do animal! ”
Se 1940 foi a melhor hora de Churchill, houve também inúmeras horas de ignomínia e mentiras em sua vida, que sua legião de admiradores fez todo o possível para esconder em favor do mito.
Winston Spencer Churchill, nascido em 1874, era um descendente de uma classe privilegiada em uma sociedade britânica que sofria com o peso morto da aristocracia no final do século XIX. Desde muito jovem, foi cativado pela guerra e pela vida militar, desenvolvendo um apego nietzscheano ao conflito como campo de testes das chamadas virtudes masculinas de coragem, honra e disciplina. Ele experimentou a guerra de perto, quando, como um jovem oficial do exército, participou de combates na Índia, no Sudão e na Frente Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial.
Isso o distingue dos líderes de guerra britânicos contemporâneos, como Tony Blair e David Cameron, que enviaram forças militares britânicas ao combate com o objetivo de estabelecer seu próprio legado “churchiliano”, resultando em desastres.
O lado lastimável do legado de Churchill é, como se disse no parágrafo inicial, o racismo e o imperialismo que sustentaram sua visão de mundo. Sua crença na hierarquia racial foi esboçada no testemunho que ele deu à Comissão Peel em 1937, criada para investigar a revolta árabe de 1936 contra o influxo de colonos judeus europeus para a Palestina, com a conivência dos britânicos.
Quando perguntado sobre os direitos dos palestinos, Churchill recusou-se a aceitar que tivessem algum: “Não admito, por exemplo, que tenha havido um grande erro em relação aos índios vermelhos da América ou ao povo negro da Austrália. Não admito que tenha havido qualquer erro pelo fato de uma raça mais forte, uma raça de grau superior, uma raça global mais sábia, para colocar nestes termos, ingressar no território e ocupar seu lugar”.
Anos antes, como secretário de Guerra da Grã-Bretanha, Churchill havia defendido o uso de armas químicas para derrotar revoltar na Índia e no Iraque, escrevendo assim em um memorando: “Eu sou fortemente a favor do uso de gás venenoso contra tribos incivilizadas”. Ele também foi responsável pelo uso de armas químicas na Rússia em 1919 com o objetivo, em conjunto com várias outras potências imperialistas, de esmagar a Revolução Russa.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o desdém de Churchill pelos povos europeus não brancos foi posto a nu com a descoberta de sua culpa pela morte de três milhões de homens, mulheres e crianças na fome de Bengala de 1943.
Apesar da fome que havia varrido essa agitada província da Índia, Churchill ordenou o desvio de alimentos desesperadamente necessários para a Europa. O fato de que as 70 mil toneladas de alimentos arrancadas pelos britânicos da Índia nos primeiros sete meses de 1943 teriam mantido 400 mil pessoas vivas por um ano é assustador. “Odeio os indianos”, teria dito o primeiro-ministro mais venerado da Grã-Bretanha a um de seus subordinados. “Eles são um povo bestial com uma religião bestial”.
A veneração a Winston Churchill por liderar um país de joelhos após o desastre militar de Dunquerque em 1940 deve ser balanceada com o exame de seu racismo nojento e imperialismo fanático. E apesar de o desafio de Churchill a Hitler e sua máquina de guerra nazista terem sido importantes, deve-se ressaltar que a prioridade militar e estratégica de Hitler nunca foi a guerra contra a Grã-Bretanha.
Pelo contrário, o ditador fascista era um admirador do império britânico, que ele procurava imitar na Europa Oriental, com a colonização e o saque de grandes territórios da Rússia. Como William L. Shirer escreve em seu trabalho histórico, Ascensão e queda do Terceiro Reich, depois da queda da França, convencido de que a Grã-Bretanha buscaria negociar a paz, Hitler expressou “sua admiração pelo império britânico e sublinhava a necessidade de sua existência. Tudo o que ele queria de Londres, ele disse, era ter a mão livre no continente “.
A resposta à questão sobre quem Winston Churchill era nunca poderá ser respondida em um filme feito com o objetivo de reforçar a reverência que lhe presta o Ocidente. Nascido com o sangue da aristocracia inglesa que atravessava suas veias, ele era um homem para quem o mundo estava dividido entre povos europeus brancos, racial e culturalmente superiores, e povos não-brancos fadados a ocupar o papel dos hilotas [os desprezados e oprimidos servos do Estado em Esparta, na Antiguidade – NR].
Ivan Maisky, embaixador soviético em Londres entre 1932 e 1943, entendeu com precisão as contradições que definem Churchill, quando em seus volumosos diários ele anotou: “Com toda a sua seriedade, Churchill é um homem bastante divertido”.
Churchill, o grande líder do tempo de guerra ou Churchill, o racista e o imperialista? A resposta simples é que ele era ambos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Churchill e seu sombrio lado B - Instituto Humanitas Unisinos - IHU