23 Junho 2017
Livros sobre Churchill ainda são uma febre. Obras escritas por ele também exercem grande fascínio. Suas memórias moldaram a historiografia sobre a 2ª Guerra Mundial, mas constituem relato muito parcial. Só em anos recentes uma nova geração de pesquisadores do mundo anglo-saxão superou suas interpretações.
A reportagem é de Ricardo Bonalume Neto, publicada por Folha de S. Paulo, 18-06-2017.
O britânico Sir Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965) foi o maior estadista do século 20, e não surpreende que se tenham publicado tantos livros a seu respeito nem que sua visão sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) tenha sido consumida de maneira acrítica por tanto tempo.
Ainda hoje ele é tema de livros novos ou reeditados, que incluem relatos sobre sua relação com aliados ou acerca de sua importância para o Oriente Médio, investigações sobre sua equipe de governo ou sobre seu estilo de vida –e, naturalmente, até a literatura de autoajuda explorou um filão associado ao estadista britânico.
Biografias clássicas continuam sendo relançadas, como a série em três volumes "The Last Lion" (Little, Brown and Company; o último leão), por William Manchester, mas isso não impede que surjam obras menos ortodoxas.
Em "Churchill's Cookbook" (Chicago University Press; o livro de receitas de Churchill) estão reunidas 250 receitas que a chef Georgina Landemare preparava para o estadista durante a Segunda Guerra. Ela combinava experiência na cozinha francesa com a culinária inglesa, ideal para um notório "bon vivant".
Churchill era fã sobretudo de champanhe, notadamente da marca Pol Roger. Depois da guerra, a vinícola criou uma edição especial com seu nome, a Cuvée Sir Winston Churchill (uma garrafa custa cerca de R$ 1.350 no Brasil).
Landemare cozinha até num bunker de Londres, de onde Churchill tomou boa parte das decisões na Segunda Guerra. O abrigo subterrâneo hoje está aberto à visitação pública e foi tema de livro do historiador Richard T. Holmes, "Churchill's Bunker: The Cabinet War Rooms and the Culture of Secrecy in Wartime London" (Yale University Press; o bunker de Churchill: as salas de guerra do ministério e a cultura do segredo em Londres durante a guerra).
De acordo com o relato, Churchill microgerenciava o conflito, decidindo sobre quase tudo, da produção de ovos ou manteiga ao desenvolvimento de modelos de tanques e navios.
Sua chegada ao cargo de primeiro-ministro ocorreu durante a grave crise de 1940, quando os alemães nazistas invadiam a França. O Reino Unido não se rendeu –e não há exagero em afirmar que a civilização ocidental seria outra se Churchill não tivesse mantido os britânicos na guerra até que a URSS e os EUA entrassem no conflito.
Ele ficou no posto até 1945, depois da vitória sobre a Alemanha, mas antes do êxito sobre o Japão. Os eleitores acharam que ele tinha sido bom para gerir a guerra, mas não a paz.
A derrota nas urnas teve um resultado inesperado: Churchill começou a escrever seu livro de memórias. E ele escrevia bem. Trabalhara boa parte do tempo como jornalista, fora correspondente de guerra e já tinha escrito vários livros de história e ensaios. Ganhou o Nobel de Literatura em 1953.
Talvez pelo estilo e sem dúvida pelo acesso a inúmeros documentos que ficariam secretos por muito tempo, suas memórias da Segunda Guerra moldaram a historiografia sobre o conflito. Só em anos recentes uma nova geração de pesquisadores do mundo anglo-saxão se libertou do fascínio pelas interpretações do ex-primeiro-ministro.
No Brasil, tão logo eram escritas foram editadas pela Companhia Editora Nacional; houve edições mais recentes pela Nova Fronteira. Existem versões integrais e abreviadas. São seis volumes, publicados de 1948 a 1953, cada um com cerca de 800 páginas.
Os livros sempre foram considerados extremamente parciais. Afinal, Churchill foi protagonista dos eventos descritos. O nome da série já indica a pretensão de ser mais que uma memória pessoal: "A Segunda Guerra Mundial".
Eu leio sobre a Segunda Guerra há mais de 40 anos. Só tive coragem de enfrentar as memórias de Churchill recentemente. Houve um bom incentivo: uma livraria vendia os volumes em inglês por menos de um terço do preço. Foram algumas semanas de prazer para atravessar perto de 5.000 páginas.
Não resta dúvida de que, sozinha, a Grã-Bretanha não teria como vencer a guerra. Churchill estava desesperado por ajuda. Em junho de 1941, os alemães atacaram a União Soviética, a princípio arrasando tudo pela frente. O primeiro-ministro britânico não sabia se tinha obtido um aliado poderoso ou um peso morto. Em 7 de dezembro de 1941, os japoneses atacaram a base americana de Pearl Harbor, no Havaí. Churchill suspirou aliviado: "Ganhamos a guerra".
Seriam necessários quatro anos para o poder econômico e humano dos EUA e da União Soviética ser traduzido em poder militar.
Churchill queria criar uma relação especial com seu colega do outro lado do Atlântico, o presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945). Eles se encontraram pessoalmente nove vezes durante a guerra. A primeira foi em agosto de 1941, a bordo de navios de guerra dos dois países ao largo do Canadá.
Churchill fez 14 viagens internacionais, contra quatro de Roosevelt e duas do ditador soviético Josef Stálin (1878-1953). Ele acreditava na importância do contato pessoal, que aplainaria as arestas.
Era um homem moderno, promotor de inovações tecnológicas, mas mantinha um pé no século 19. Formado na academia de Sandhurst, atuou em campanhas militares e foi correspondente de guerra na Índia, em Cuba, na África do Sul e no Sudão –onde, em 1898, participou como jovem tenente na última grande carga de cavalaria do Exército britânico.
Assim como hoje e desde sempre, não se devem misturar as carreiras de militar e de correspondente de guerra. Ele foi muito criticado por isso, mas se deu bem, produzindo ótimos livros sobre as campanhas.
Ainda em 1934, Churchill escreveu: "Embora tenhamos presenciado apenas metade de seu período normal na Presidência, com toda a certeza o presidente Roosevelt se alinhará entre os mais proeminentes homens que ocuparam aquele honroso cargo".
Nas memórias, a relação entre os dois parece idílica. O britânico passou um Natal na Casa Branca. Participaram de inúmeras reuniões, jantaram juntos, passearam.
Mas a realidade, a "realpolitik", era outra. Países e seus líderes têm interesses distintos. Os EUA queriam um pós-guerra sem um império britânico; tendo sido colônia de sua majestade, os americanos queriam um mundo sem colônias. Isso valia também para outros países europeus desmoralizados pelas vitórias alemãs e japonesas que não conseguiram manter seus domínios, como França e Holanda.
Como vencer a Alemanha? Os EUA defendiam uma estratégia direta, atacando pelo caminho mais curto, com toda a força.
O Reino Unido defendia estratégias indiretas –preferência que resulta de sua história de grande potência naval, mas sem Exército numeroso, e de sua fraqueza militar diante dos alemães. Churchill sugeria "atacar o ventre mole do Eixo", isto é, no Mediterrâneo, em especial a Itália.
Os americanos teriam protagonismo na invasão, o que aumentava seu peso decisório. Alguns defendiam a operação já em 1943, o que seria loucura, pois não havia tropas suficientes. O premiê britânico protelava ao máximo. Sabia que eventual derrota no Dia D varreria a democracia da Europa.
Churchill, contudo, era o líder menos poderoso dos três principais aliados. Sua capacidade de barganha nas famosas conferências dos "três grandes" era restrita.
Um clássico clichê diz que o Reino Unido contribuiu com tempo, a União Soviética, com sangue (quase a metade dos mais de 50 milhões de mortos em toda a guerra), e os EUA, com dinheiro e material bélico, além de suprimentos. Churchill esteve em Washington e Moscou, mas nem Roosevelt nem Stálin foram a Londres. Estima-se que, para cada britânico morto na guerra, tenham morrido 60 soviéticos.
Em suas memórias, o estadista britânico tenta defender suas ações, nem sempre com sucesso. A intervenção na Grécia levou à derrota na África do Norte, de onde foram retiradas as tropas para essa operação quixotesca.
Ele insistia na quimera de trazer a Turquia para o lado aliado, o que não aconteceu –eventual sucesso nessa empreitada provavelmente teria sido ruim, pois seria preciso suprir os turcos com armas modernas que não estavam disponíveis.
Para Churchill, a resistência a Adolf Hitler (1889-1945) representou "the finest hour", o melhor momento da história do império britânico e sua comunidade de nações.
O jornalista e historiador Max Hastings usou o adjetivo para descrever a liderança de Churchill durante o conflito: "Finest Years "" Churchill as Warlord 1940-45". Sem dúvida o velho "senhor da guerra" teve então seu melhor momento.
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Livros sobre o estadista
"Churchill and the Islamic World: Orientalism, Empire and Diplomacy in the Middle East" (I.B.Tauris; Churchill e o mundo islâmico: orientalismo, império e diplomacia no Oriente Médio), de Warren Dockter
> Tema atual que mostra um lado polêmico de Churchill
"Churchill and Company: Allies and Rivals in War and Peace" (I.B.Tauris; Churchill e companhia: aliados e rivais na guerra e na paz), de David Dilks
> A "fogueira das vaidades" dos grandes personagens da época
"Churchill Vai à Guerra" (Lafonte), de Brian Lavery
> Mostra o valor que o estadista dava a encontros pessoais
"Mr. Churchill's Profession: The Statesman as Author and the Book That Defined the 'Special Relationship'" (Bloomsbury Press; a carreira do sr. Churchill: o homem de Estado como autor e o livro que definiu a 'relação privilegiada'), de Peter Clarke
> Não custa lembrar: o político ganhou o Nobel de Literatura
"Churchill Style: The Art of Being Winston Churchill" (Abrams; o estilo Churchill: a arte de ser Winston Churchill), de Barry Singer
> Champagne, charutos, gravatas-borboletas e pintura
"Churchill's Generals" (Weidenfeld & Nicolson; os generais de Churchill), editado por John Keegan
> Sobre os generais britânicos da guerra, a maioria incompetente
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Nova geração questiona visão parcial de Churchill sobre Segunda Guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU