01 Julho 2015
Astro entre os economistas da atualidade, Thomas Piketty exige uma ampla conferência sobre o endividamento. Segundo ele, justamente a Alemanha é que não teria direito de negar ajuda à Grécia.
Desde o sucesso de sua publicação "O Capital no século XXI" o francês Thomas Piketty é atualmente um dos mais influentes economistas do mundo. Suas teses sobre a distribuição de renda e riqueza desencadearam no ano passado uma discussão em nível mundial.
Nesta entrevista concedida a Georg Blume, e publicada pelo jornal Die Zeit, junho de 2015, no. 26, ele se mete resolutamente na discussão européia sobre as dívidas. A tradução é de Walter O. Schlupp.
Eis a entrevista.
Será que nós alemães podemos ficar contentes com o fato de que atualmente o governo francês está apoiando os dogmas da política de poupança de Berlim?
De forma alguma. Isto não é motivo de alegria nem para a França, nem para a Alemanha, muito menos para a Europa. Antes tenho receio de que os conservadores, principalmente na Alemanha, estejam prestes a destruir a Europa e a idéia européia, e isto por causa da sua assustadora falta de memória histórica.
Nós alemães não já fizemos todo o processo de digestão da história?
Porém não no tocante à restituição das dívidas alemãs! Essa memória deveria ser importante justamente para a Alemanha de hoje. Observe a história das dívidas públicas: a Grã-Bretanha, Alemanha e França, todas já estiveram na situação da Grécia de hoje, tendo tido dívidas inclusive mais elevadas. Portanto, a primeira lição que podemos aprender com a história das dívidas dos países é que não estamos nos deparando com problemas novos. Sempre houve muitas possibilidades de pagar as dívidas, nunca apenas uma, como Berlim e Paris estão tentando convencer a Grécia.
Mas precisam pagar as dívidas, ou não?
Meu livro conta a história de rendas e patrimônios, inclusive públicos. O que me chamou a atenção enquanto escrevia foi o seguinte: a Alemanha é realmente o exemplo típico de país que nunca restituiu suas dívidas públicas. Nem depois da Primeira Guerra Mundial, nem depois da Segunda.
Outros é que tiveram que pagar, por exemplo depois da guerra teuto-francesa de 1870, quando exigiu elevado pagamento da França, tendo-o inclusive recebido. Em compensação, o estado francês em seguida ficou arquejando por décadas com as dívidas. Na verdade, a história do endividamento público está cheia de ironias. Raramente ela obedece às nossas noções de ordem e justiça.
Mas não se pode deduzir daí que hoje não se pode proceder de uma forma melhor, ou não?
Hoje ouço os alemães dizerem que praticam um tratamento altamente moral das dívidas e que acreditam piamente que dívidas têm que ser pagas; então penso: que grande piada! A Alemanha é, por excelência, aquele país que nunca pagou suas dívidas. Nesse ponto ela não pode ficar dando lições a outros países.
O senhor pretende apelar para a história visando apresentar como vencedores aqueles países que não pagam suas dívidas?
A Alemanha é exatamente um país desses. Mas vamos com calma: a história ensina que existem duas possibilidades de um país altamente endividado liquidar seus pagamentos em atraso. Uma delas foi exercitada pelo império britânico no século XIX após as dispendiosas guerras napoleônicas: trata-se do método lento, que hoje vem sendo recomendado à Grécia. O Reino Unido foi gradativamente economizando aquilo que devia, mediante rigorosa administração das contas públicas. Isso funcionou, porém demorou muitíssimo. Por mais de 100 anos os britânicos aplicaram 2 a 3% da sua produção econômica para amortizar as dívidas; isto era mais do que gastavam para escolas e educação. A rigor, não havia necessidade de se proceder dessa maneira, e hoje também não. Ocorre que o segundo método é muito mais rápido. A Alemanha o experimentou no século XX. Trata-se basicamente de três componentes: inflação, um imposto especial sobre patrimônio privado e cortes da dívida.
Isto foi feito porque se deram conta de que as elevadas cobranças da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial estavam sendo vistas como uma das razões que conduziram à Segunda Guerra Mundial. A intenção era perdoar à Alemanha seus pecados desta vez!
Isso é bobagem! Nada a ver com escrúpulos morais; tratava-se de uma decisão racional de política econômica. Tiveram o acerto de reconhecer, na época, que, depois de crises a acarretarem dívidas enormes, chega o ponto, mais cedo ou mais tarde, em que é preciso tratar do futuro. Das novas gerações não se pode exigir que fiquem pagando décadas a fio pelos erros dos seus pais. Não há dúvida de que os gregos cometeram erros graves. Até 2009 os governos de Atenas maquiaram seus balanços. A jovem geração de gregos hoje não tem responsabilidade maior pelos erros dos seus pais do que a jovem geração de alemães nos anos 1950 e 1960. É preciso olhar para a frente. A Europa foi fundada em cima do esquecimento das dívidas e do investimento no futuro. E não em cima da idéia de eterna penitência. É preciso lembrar isso.
O final da Segunda Guerra Mundial foi uma ruptura cultural. A Europa parecia um campo de batalhas. A situação hoje é diferente.
Rejeitar a comparação histórica com o pós-guerra seria errado. Tomemos a crise financeira de 2008/2009: não era uma crise qualquer! Foi a maior crise financeira desde 1929. É necessário fazer essas comparações históricas. A mesma coisa vale para o produto interno grego: entre 2009 e 2015 ele diminuiu 25%. É comparável às recessões na Alemanha e França entre 1929 e 1935.
Muitos alemães acreditam que os gregos até hoje não reconheceram seus erros e simplesmente querem continuar com os gastos estatais a mil.
Se nos anos 1950 nós tivéssemos dito a vocês alemães que vocês ainda não reconheceram o suficiente os seus erros, vocês até hoje continuariam pagando suas dívidas. Felizmente fomos mais inteligentes do que isso.
O ministro alemão das finanças, por sua vez, parece acreditar que uma saída da Grécia da zona do euro até conseguiria acelerar a consolidação da Europa.
Se adotarmos a prática de expulsar um país, então a séria crise de confiança em que hoje se encontra a zona do euro somente tenderá a aumentar. Os mercados financeiros imediatamente voltariam suas atenções para o país seguinte.
O senhor acha que nós alemães não estamos sendo generosos o suficiente?
O quê? Generosos? Até agora a Alemanha está ganhando dinheiro com a Grécia ao lhe emprestar dinheiro a juros relativamente altos.
O que o senhor propõe para solucionar a crise?
Precisamos de uma conferência sobre todas as dívidas européias, como depois da Segunda Guerra Mundial. Uma reestruturação das dívidas é inevitável não só na Grécia, mas em muitos países europeus. Com essas negociações totalmente opacas com Atenas acabamos de perder seis meses. O Grupo do Euro ainda não abandonou a idéia de que no futuro a Grécia produzirá um superávit de 4% para assim pagar suas dívidas nos próximos 30 a 40 anos. Dizem que em 2015 o superávit será de 1%; em 2016, 2%; em 2017, 3,5 % . É uma loucura total! Isso nunca vai funcionar. Desse jeito estamos protelando a necessária discussão sobre as dívidas para o dia do São Nunca.
E o que viria depois do grande corte de dívidas?
Precisaríamos de uma nova instituição democrática européia que decida sobre o nível de endividamento permissível, a fim de evitar um novo surto de dívidas. Poderia ser uma câmara parlamentar européia recrutada dos parlamentos nacionais. Decisões orçamentárias não podem ser tiradas da competência dos parlamentos. É um grande erro solapar a democracia na Europa do jeito que a Alemanha está fazendo hoje em dia, ao insistir nas regulações automáticas impostas principalmente por Berlim no tocante ao endividamento dos estados.
Seu presidente François Hollande acaba de fracassar com sua crítica sobre o pacto fiscal.
Isto não melhora as coisas. Se nos anos anteriores as decisões tivessem sido tomadas de forma democrática na Europa, em todo o continente haveria hoje uma política de poupança rigorosa.
Nesse ponto é justamente na França que nenhum partido está a favor. A soberania nacional é considerada sacrossanta.
Em comparação com a França, com seu grande número de adeptos da soberania, na Alemanha efetivamente há mais pessoas que se ocupam com a idéia de uma nova fundação democrática da Europa. Além disso nosso presidente continua prisioneiro do fracassado referendo de 2005 sobre a constituição européia. François Hollande não entende que muita coisa mudou com a crise financeira. Precisamos superar egoísmos nacionais.
Quais egoísmos nacionais o senhor vê operando na Alemanha?
A Alemanha hoje me parece muito marcada pela reunificação. Por muito tempo lá se temia cair em atraso econômico por causa dela. Entretanto a unificação deu muito certo, graças a um modelo social que funciona e graças a estruturas industriais intactas. Agora o país está orgulhoso desse sucesso e passou a dar lições a outros países. Isso é uma atitude pueril. É claro que eu entendo o quanto a bem-sucedida reunificação foi importante, por exemplo, para a chanceler Angela Merkel pessoalmente. Só que agora a Alemanha precisa mudar de parâmetros. Caso contrário sua posição na questão das dívidas passa a ser um grande perigo para a Europa.
O que o sr aconselharia à chanceler?
Os que hoje querem expulsar a Grécia da zona do euro vão acabar na lixeira da história. Se é que a chanceler queira garantir seu lugar na história, tal como Kohl conseguiu com a reunificação, ela terá que se empenhar por um acordo bem-sucedido na questão da Grécia, o que inclui uma conferência sobre as dívidas, na qual então recomeçaremos do zero. Só que com uma nova disciplina orçamentária, muito mais rigorosa do que antes.
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"A Alemanha nunca pagou sua dívida", constata Thomas Piketty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU