Por: Patricia Fachin | Edição: Vitor Necchi | 19 Janeiro 2018
Pesquisas realizadas desde os anos 1980 demonstram que vem crescendo de maneira expressiva e contínua a presença de alimentos ultraprocessados na alimentação dos brasileiros. Eles já representam mais de 20% das calorias ingeridas. “Ou seja, estamos trocando nossas refeições tradicionais, nosso arroz e feijão, pelas refeições prontas”, critica a doutora em Nutrição e Saúde Pública Maria Laura Louzada.
Apelos não faltam para sustentar a escolha por esse tipo de alimento, afinal, eles são convenientes, práticos, portáteis e hiperpalatáveis. “Além disso, estudos de diversos países já mostraram que o consumo de alimentos ultraprocessados está associado com maior consumo de açúcar e gorduras, e menos fibras e diversas vitaminas e minerais, além de aumentarem o risco da ocorrência de obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis”, afirma Louzada. “Impossível não destacarmos os prejuízos ambientais desses alimentos.”
Para estabelecer novos parâmetros, investigadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP propuseram que os itens de consumo alimentar fossem classificados conforme a extensão e o propósito do processamento empregado antes de sua aquisição e consumo pelos indivíduos. Louzada destaca que “cada vez é mais difícil para a indústria negar os efeitos devastadores que os alimentos ultraprocessados causam na sociedade”, pois são prejudiciais e inferiores à comida fresca feita a partir de alimentos in natura ou minimamente processados.
A indústria reage tentando deslegitimar as pesquisas que mostram os malefícios de alimentos ultraprocessados, “seja patrocinando eventos científicos na área de Nutrição (onde fazem simpósios e levam seus próprios pesquisadores), seja cooptando os pesquisadores dos centros de pesquisa mundo afora”. Na avaliação de Louzada, isso é muito preocupante. “Não existe integridade científica onde existe conflito de interesse”, acusa. “Uma indústria de alimentos ultraprocessados jamais colocará os interesses de saúde pública na frente dos seus interesses no lucro.”
Maria Laura Louzada, em 2014, no IHU | Foto: Acervo IHU
Maria Laura Louzada é doutora em Nutrição e Saúde Pública pela Universidade de São Paulo – USP, mestra em Ciências da Saúde e graduada em Nutrição (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre – UFCSPA. Leciona no curso de Nutrição da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É pesquisadora associada do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que são alimentos ultraprocessados e por que eles não podem ser considerados saudáveis?
Maria Laura Louzada – Alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas tipicamente com cinco ou mais ingredientes que incluem, com frequência, substâncias usadas na fabricação de alimentos processados, como açúcar, óleos, gorduras e sal, mas também substâncias de uso exclusivamente industrial (como lecitina de soja, gordura hidrogenada, açúcar modificado, que não usamos na nossa cozinha) e também aditivos cuja função é simular atributos sensoriais de alimentos in natura ou de preparações culinárias desses alimentos ou, ainda, ocultar atributos sensoriais indesejáveis no produto final. Alimentos inteiros representam proporção reduzida ou sequer estão presentes na lista de ingredientes de produtos ultraprocessados. Exemplos incluem refrigerantes e sucos em pó/caixinha, bolachas recheadas, salgadinhos, barras de cereal, pratos congelados prontos ou semiprontos.
Inúmeras características relacionadas à composição, à forma de apresentação e aos modos de consumo dos alimentos ultraprocessados são problemáticas. Alimentos ultraprocessados são convenientes, práticos e portáteis. Geralmente, eles são desenvolvidos para que possam ser consumidos em qualquer lugar – diante da televisão, no ambiente de trabalho ou nos meios de transporte – e dispensam o uso de pratos e talheres. Na maioria das vezes, são vendidos como lanches, bebidas ou pratos prontos ou semiprontos para consumo e podem facilmente substituir refeições feitas na hora, baseadas em alimentos in natura ou minimamente processados. Além disso, as técnicas de processamento, as altas quantidades de açúcares, de sal e de gorduras e o uso de aditivos, como realçadores de sabor e agentes texturizantes, fazem deles hiperpalatáveis. Dessa forma, podem danificar os processos cerebrais que sinalizam a saciedade e controlam o apetite e provocar o consumo excessivo e “desapercebido” de calorias.
Além disso, estudos de diversos países já mostraram que o consumo de alimentos ultraprocessados está associado com maior consumo de açúcar e gorduras, e menos fibras e diversas vitaminas e minerais, além de aumentarem o risco da ocorrência de obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis. Impossível não destacarmos os prejuízos ambientais desses alimentos.
IHU On-Line – Em janeiro, a revista científica Public Health Nutrition, editada pela Sociedade Britânica de Nutrição, publicou um número especial dedicado à classificação de processamento industrial de alimentos criada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – Nupens, da Universidade de São Paulo – USP. Em que consiste essa classificação e como ela tem repercutido em outros países?
Maria Laura Louzada – A avaliação do impacto do consumo alimentar na saúde depende de sistemas de classificação utilizados para caracterizar os alimentos. Classificações convencionais agrupam os alimentos de acordo com seu perfil de nutrientes. Por exemplo, pertencem à mesma categoria carnes frescas e produtos processados à base de carne e adicionados de sal porque ambos são fontes de proteínas. Da mesma forma, por serem fonte de carboidratos, ficam no mesmo grupo grãos de arroz ou de trigo, farinhas de cereais, pães, “cereais matinais”, “barras de cereais” e outros produtos adicionados de açúcar, gorduras e aditivos.
Essas classificações foram de fundamental importância em um período em que a maior parte das doenças relacionadas à alimentação era causada por deficiências de energia e nutrientes, mas, em um cenário epidemiológico dominado por doenças crônicas, estão se tornando obsoletas. A divisão dos alimentos apenas em “não processados” e “processados” não tem grande utilidade, uma vez que a imensa maioria dos alimentos é processada de alguma forma. Além disso, muitos tipos de processamento são inofensivos, benéficos ou mesmo essenciais e desempenham um papel central na evolução humana. Para uma correta avaliação dos efeitos do processamento de alimentos na saúde, é necessário que se identifiquem a extensão e os objetivos de cada tipo de processamento.
Uma equipe de investigadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP propôs que todos os itens de consumo alimentar fossem classificados segundo a extensão e o propósito do processamento empregado antes de sua aquisição e consumo pelos indivíduos. O processamento de alimentos, tal como entendido por esta classificação, denominada NOVA, envolve processos físicos, biológicos e químicos que ocorrem após a colheita do alimento ou, de modo mais geral, após a separação do alimento da natureza e antes que ele seja submetido à preparação culinária ou antes do seu consumo, quando se tratar de alimentos prontos para consumo. Portanto, os procedimentos empregados na preparação culinária de alimentos, que ocorrem nas cozinhas das casas ou em restaurantes comerciais ou institucionais, incluídos descarte de partes não comestíveis, fracionamento, cozimento, tempero e combinação do alimento com outros alimentos, não são levados em conta pela classificação NOVA.
A fundamentação teórica e a caracterização dos grupos de alimentos definidos nessa classificação foram descritas pela primeira vez em 2010. Desde então, a classificação vem sendo detalhada e aprimorada.
Os quatro grupos da classificação são:
Grupo 1 - Alimentos in natura ou minimamente processados
Alimentos in natura são aqueles obtidos diretamente de plantas ou adquiridos para consumo sem que tenham sofrido qualquer alteração após deixarem a natureza. A aquisição de alimentos in natura é limitada a algumas variedades, como frutas, legumes, verduras, raízes, tubérculos e ovos.
Alimentos minimamente processados são alimentos in natura submetidos a processos como remoção de partes não comestíveis ou não desejadas dos alimentos, secagem, desidratação, trituração ou moagem, fracionamento, torra, cocção apenas com água, pasteurização, refrigeração ou congelamento, acondicionamento em embalagens, empacotamento a vácuo e fermentação não alcoólica.
A maior parte dos processos praticados no processamento mínimo objetiva aumentar a duração dos alimentos in natura. Outros propósitos incluem facilitar ou diversificar a preparação culinária dos alimentos (remoção de partes não comestíveis, moagem) ou modificar o seu sabor (torra de grãos de café e fermentação do leite).
Grupo 2 – Ingredientes culinários processados
Este grupo inclui substâncias extraídas diretamente de alimentos do Grupo 1 ou da natureza e usualmente consumidas como itens de preparações culinárias. Os processos envolvidos com a extração dessas substâncias incluem prensagem, trituração, moagem, pulverização e refino.
O propósito do processamento é a fabricação de produtos utilizados para temperar e cozinhar alimentos e para confeccionar preparações culinárias. São exemplos de substâncias do Grupo 2: sal, açúcar, óleos e gorduras.
Grupo 3 – Alimentos processados
Este grupo inclui produtos fabricados com a adição de sal, açúcar, óleos, gorduras, vinagre a um alimento do Grupo 1, sendo em sua maioria produtos com dois ou três ingredientes. Os processos envolvidos com a fabricação desses produtos envolvem métodos de cocção e, no caso de queijos e de pães, a fermentação.
O propósito do processamento subjacente à sua fabricação é aumentar a duração dos alimentos ou modificar seu sabor, portanto semelhante ao propósito do processamento empregado na fabricação de alimentos do Grupo 1. Exemplos são: conservas, carnes salgadas, queijos e pães.
Grupo 4 - Alimentos ultraprocessados
Este grupo inclui produtos fabricados com vários ingredientes envolvendo, além de substâncias do Grupo 2 (como sal, açúcar, óleos e gorduras), substâncias também extraídas diretamente de alimentos do Grupo 1, mas não habitualmente utilizadas em preparações culinárias (como caseína, soro de leite, isolado proteico de soja e de outros alimentos e hidrolisado de proteínas), substâncias sintetizadas a partir de constituintes de alimentos (como óleos hidrogenados ou interestereficados, amidos modificados e outras substâncias não naturalmente presentes nos alimentos) e aditivos usados tanto com função preservante ou conservante quanto para modificar cor, odor, sabor ou textura do produto final.
Alimentos do Grupo 1 representam proporção dos produtos do Grupo 4. Embora a fabricação de produtos ultraprocessados envolva comumente vários tipos de substâncias e de aditivos, a característica básica que os distingue é a presença de pelo menos uma substância não presente em produtos processados. Ou seja, a característica básica dos ultraprocessados é conter entre seus ingredientes substâncias extraídas de alimentos do Grupo 1, mas usadas apenas com fim industrial, ou substâncias sintetizadas a partir de constituintes de alimentos ou ainda aditivos usados para modificar as características organolépticas dos produtos. Várias técnicas industriais são usadas na fabricação de produtos ultraprocessados, incluindo extrusão e moldagem.
São exemplos de produtos do Grupo 4: biscoitos, sorvetes, balas, “cereais matinais”, barras de cereal, macarrão instantâneo, molhos, salgadinhos de pacote, refrescos e refrigerantes, bebidas lácteas, bebidas energéticas, produtos congelados e prontos para aquecimento, salsichas, pães de forma, pães para hambúrguer ou hot dog.
Essa classificação é a base da principal recomendação abordada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda que se prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e as preparações culinárias feitas com esses alimentos a alimentos ultraprocessados. O Guia Alimentar Brasileiro foi extremamente elogiado em vários países do mundo. A revista eletrônica Vox chegou a dizer que era “o melhor guia do mundo”.
Algumas repercussões que podemos ver, por exemplo, é o Guia Alimentar para a População Uruguaia, publicado recentemente com o uso da classificação de alimento. A mesma também orientou o modelo de perfil nutricional proposto pela Organização Panamericana de Saúde para a região das Américas, e a Food and Agriculture Organization – FAO publicou um relatório recomendando o uso da classificação para avaliar dietas.
IHU On-Line – Qual é o perfil geral da alimentação dos brasileiros? Consomem muitos alimentos ultraprocessados ou há uma adesão crescente por produtos in natura e processados?
Maria Laura Louzada – Mais de 20% das calorias ingeridas pelos brasileiros já vem de ultraprocessados! E o mais preocupante: pesquisas realizadas desde a década de 80 mostram que a presença deles vem crescendo de forma expressiva e contínua. Ou seja, estamos trocando nossas refeições tradicionais, nosso arroz e feijão, pelas refeições prontas.
IHU On-Line – Como o conceito de alimento ultraprocessados tem confrontado a indústria alimentícia?
Maria Laura Louzada – Cada vez é mais difícil para a indústria negar os efeitos devastadores que os alimentos ultraprocessados causam na sociedade. Até pouco tempo, a indústria conseguia de forma relativamente simples fazer uma “alquimia” na composição de nutrientes dos seus alimentos (colocar mais fibras, adicionar vitaminas, trocar a gordura etc.) e apresentar isso como uma solução. Com o conceito de alimento ultraprocessado, isso não é mais possível. Um ultraprocessado, mesmo que reformulado, continua sendo prejudicial e infinitamente inferior à comida fresca feita a partir de alimentos in natura ou minimamente processados.
IHU On-Line – A indústria alimentícia tem respondido às pesquisas que concluem que os alimentos ultraprocessados não são saudáveis? Quais são as estratégias da indústria para vender e apresentar os ultraprocessados como saudáveis?
Maria Laura Louzada – A indústria tenta de todas as formas deslegitimar as pesquisas que mostram isso, seja patrocinando eventos científicos na área de Nutrição (onde fazem simpósios e levam seus próprios pesquisadores), seja cooptando os pesquisadores dos centros de pesquisa mundo afora. Isso é muito preocupante. Não existe integridade científica onde existe conflito de interesse. Uma indústria de alimentos ultraprocessados jamais colocará os interesses de saúde pública na frente dos seus interesses no lucro. Estudos recentes já mostraram que os estudos patrocinados por empresas tendem sempre a dar o resultado que as favorecem.
E claro, tudo isso super reforçado por inúmeras estratégias de marketing, muitas vezes direcionadas para crianças e adolescentes.
IHU On-Line – Quais são as principais informações enganosas ou equivocadas que podemos encontrar nas embalagens de ultraprocessados?
Maria Laura Louzada – Embalagens de alimentos ultraprocessados tendem a ser atraentes, coloridas, muitas vezes com personagens de desenhos voltados para crianças. Além disso, apresentam “alegações de saúde” que não se comprovam de forma alguma. Alegações como light, diet, rico em fibras, etc. fazem sentido em relação a uma comparação desses alimentos com a sua versão tradicional. Mas seu valor nutricional continua muito inferior a alimentos in natura ou minimamente processados. Só para ter um exemplo, 1 barrinha de cereal, usualmente publicizada como “rica em fibras”, tem apenas 0,58g de fibras enquanto que uma concha de feijão tem 5,29g!
IHU On-Line – Cada vez mais tem se estudado a relação entre ultraprocessados e doenças crônicas. Como estão essas pesquisas? Elas já confirmam essa relação? Quais são as principais doenças crônicas que têm como causa o consumo de ultraprocessados?
Maria Laura Louzada – Estudos realizados no Brasil indicam associações significativas do consumo de alimentos ultraprocessados com a síndrome metabólica em adolescentes, dislipidemias em crianças e obesidade todas as idades. Estudo realizado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) demonstrou que o aumento nas vendas de alimentos ultraprocessados entre os anos de 2000 e 2009 em países da América Latina foi diretamente associado ao aumento na média do índice de massa corporal (IMC) da população adulta no mesmo período. Na Europa, a disponibilidade domiciliar de alimentos ultraprocessados foi associada com maior prevalência de obesidade em 19 países. Na Espanha, adultos de meia-idade foram acompanhados por 9 anos e aqueles que consumiram mais alimentos ultraprocessados apresentaram maior chance de desenvolver obesidade e hipertensão. Muito em breve, ser publicado um estudo francês que também demonstrou a associação do consumo desses alimentos com a ocorrência de câncer.
IHU On-Line – A Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS, escritório da Organização Mundial da Saúde – OMS nas Américas, sugere que os rótulos de alimentos ultraprocessados informem de modo direto e visível se os alimentos contêm excesso de sódio, açúcar, gordura trans, gordura saturada etc na parte frontal das embalagens com um selo em formato de octógono, com fundo preto e letras brancas. Como essa proposta tem sido discutida no Brasil?
Maria Laura Louzada – Atualmente, a Anvisa está revisando a legislação da rotulagem de alimentos no Brasil e há uma disputa entre propostas. A indústria de alimentos defende a proposta do semáforo de alimentos, que já foi testada e que se mostrou inefetiva para orientar a população. O Idec, por outro lado, traz a proposta dos alertas na parte frontal dos alimentos e de uma lista de ingredientes clara e visível. Essa proposta já está em andamento no Chile e com importantes impactos positivos. O Idec lidera a campanha “Rotulagem Adequada já” e o apoio popular é fundamental para que isso avance no Congresso. Ver: https://idec.org.br/rotulagem
IHU On-Line – Qual tem sido o impacto do Guia Alimentar para a População Brasileira na dieta do brasileiro?
Maria Laura Louzada – É muito difícil mensurarmos exatamente o impacto do Guia nas condições de saúde e nutrição da população. O que sabemos é que há várias iniciativas muito interessantes para colocar o Guia em prática, seja na mídia (blog da Rita Lobo, por exemplo), no SUS ou em escolas. Além disso, o Guia impulsiona a discussão sobre mudanças em políticas públicas. O Ministério da Saúde, por exemplo, aprovou uma portaria, amplamente referenciada pelo guia, que proíbe a venda de ultraprocessados em suas dependências.
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Indústria de alimentos ultraprocessados jamais colocará interesses de saúde pública na frente do seu lucro. Entrevista especial com Maria Laura Louzada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU