30 Novembro 2017
"As eleições do dia 21 de dezembro não resolverão nada disto tudo, embora elas possam padronizar alguns procedimentos; mas nem dissolverão os ódios, nem colocarão a fraternidade e o diálogo acima de tudo".
O comentário é de José I. González Faus, S.J., publicado por Religión Digital, 25-11-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
As bandeiras só valem alguma coisa quando estão distantes de nós, como uma chamada; quando nos envolvemos nelas e as vestimos, nós as prostituímos, convertendo o que deveria ser um amor desapegado em um amor possessivo
Há amores que matam. Muitos separatistas têm dado bom exemplo disso. Pretendendo amar a Catalunha, em realidade eles amaram a si mesmos ou a sua ideia particular de Catalunha; mas, não a Catalunha de verdade.
Se me é permitido dizer de maneira brutal, mas bem gráfica, temos visto alguns governantes não simplesmente enganando (isso todos os políticos fazem por desgraça), mas prejudicando seu povo. E merecem que o povo, assim como a cantora Amaya da banda Mocedades, cante novamente a música "tu beso sabe a culpabilidad" (teu beijo reconhece a culpa).
As últimas declarações de Artur Mas e da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) são dignas de fazer sentir vergonha alheia. Reconhecer agora que não estavam preparados, que pode haver outras possibilidades de encaixe, que estão examinando se os meios empregados eram os corretos, ou alegar que o povo já sabia que não tinha exército e demais etcéteras, não é, como querem nos fazer crer, "um exercício de auto-crítica saudável", mas uma maneira de buscar desculpas para não chamar as coisas pelo seu nome.
Vale para eles o mesmo argumento que vale para Rajoy em relação à corrupção do Partido Popular (PP): se o sabiam, mentiram e não merecem governar; se não o sabiam, são ignorantes e incompetentes, que tampouco merecem ocupar cargos de responsabilidade.
Como se isso não bastasse, a lista de outros "danos colaterais" é enorme. Reconstruir a convivência entre famílias, grupos e amizades quebradas pela questão da independência, levará muito tempo.
Além disso, temos assistido impassíveis a uma redução salarial de 6%, o drama de crianças imigrantes que dormem nas calçadas do centro e a outros dramas muito mais graves, esquecidos graças à luta emancipatória. Isso também serviu para branquear a imensa sujeira monetária da corrupção do PP, e para dar votos à Rajoy.
Por último, assistimos ao absurdo de que, enquanto as pessoas comuns estavam lutando entre si, os políticos "fingiam" lutar, sabendo que eles precisavam um do outro porque estavam dando votos uns aos outros: apresento Rajoy aos independentistas e estes a Rajoy.
Tarradellas disse uma vez que "na política se pode fazer tudo, menos o ridículo"; e isso é exatamente o que muitos fizeram à sua amada Catalunha, por buscar a si próprios ao amá-la.
Grande parte desta crítica também se aplica ao PP catalão e para o partido Ciudadanos, agora eufórico pelo crescimento anunciado pelas pesquisas. A intolerância radical e dogmática demonstrada em toda esta tragicomédia, recusando-se inclusive a aceitar a solução de um referendo compactuado, é outra forma de amar-se a si mesmos, dizendo amar seu país.
Portanto, uns e outros precisam aprender que essa terra, a qual dizem amar, tem exatamente uma outra metade de sua população, cujas posições estão anos-luz distantes das suas próprias, que são tão catalãs quanto eles e tem pleno direito a pensar como pensam.
Neste contexto, para um independentista, amar a Catalunha de verdade significa amar também ao Ciudadanos; e para uma pessoa do Ciudadanos significa amar também os separatistas. Se em lugar disso nos dedicarmos a colocar etiquetas excludentes (fascistas, racistas, etc.) estaremos simplesmente ferindo a Catalunha.
Obviamente, amar o outro não significa amar nem aprovar tudo o que essa pessoa faz. Mas isso implica em saber que o outro está ali e que ele tem o direito a pensar como pensa, da mesma forma que eu tenho direito a pensar como penso. E, portanto, somente se nos decidirmos a nos olharmos, a nos respeitarmos, a nos encontrarmos e a dialogar, podemos construir uma mãe terra para todos.
Do contrário, a Catalunha seguirá parecendo um jogo entre Barcelona e Real Madrid, em que não são os aficionados em futebol que assistem, mas aqueles torcedores cegos de cada equipe: "ultrasurs" e "boixos nois", e onde também não temos certeza de que o árbitro seja imparcial... O que poderia acontecer é fácil de imaginar.
Acredito que as eleições do dia 21 de dezembro não resolverão nada disto tudo, embora elas possam padronizar alguns procedimentos; mas nem dissolverão os ódios, nem colocarão a fraternidade e o diálogo acima de tudo.
Se algum espanholista leu até aqui, talvez dando-me a razão, pare um momento e se pergunte se seu suposto amor à Espanha não peca nas mesmas impurezas que acabo de denunciar. As bandeiras só valem alguma coisa quando estão distantes de nós, como uma chamada; quando nos envolvemos nelas e as vestimos, nós as prostituímos, convertendo o que deveria ser um amor desapegado em um amor possessivo. Todos nós trazemos dentro da gente um pequeno "Luís XIV", disposto a repetir "l'Etat c'est moi", ou "l'Espagne c'est moi ", e assim sucessivamente.
2. Apesar do exposto anteriormente, quero acrescentar que a coisa é mais normal do que parece. O que temos experimentado não é uma amostra nem de como são os catalães, nem de como são os espanhóis, mas uma amostra do que é a nossa massa humana.
Pelas datas em que sucedeu, tenho vivido isso em correlação com o que foi a Reforma de Lutero. E pareceu-me encontrar os mesmos protagonistas em ambos os casos, ontem e hoje: uma autoridade central que possui a razão da lei, mas cujas condutas a desautorizam; um afã reformador que é carente dos meios e se vê obrigado a utilizar outros meios que desautorizam sua própria reforma; e uma Candidatura de Unidade Popular que (naquele século XVI) foi a de Tomas Müntzer – o grupo que, em teoria, tinha mais razão do que todos os outros, mas que, uma vez que começaram a atuar, fizeram-no de forma tão desastrosa que destruíram toda a razão que tinham.
Até posso imaginar o Partido Democrata Catalão (PDECat) gritando que nem Lutero contra eles: "Que os matem! Pois se vocês possuem algo de bom, será recompensado por Deus"...
Pois bem: hoje em dia é trágico que tenham sido necessários cinco séculos para compreender que somos irmãos na fé, que Cristo que nos une é maior do que tudo o que nos separa e que, mais do que uma questão de verdades e falsidades, o que houve foram parcialidades totalizadas por cada uma das partes. Mas essa é a nossa pobre massa humana.
E, no entanto, tampouco isso é tudo: uma de minhas experiências mais positivas na vida foi trabalhar em um centro onde somos distintos, não pensamos todos da mesma forma e nem sempre as coisas se resolvem do meu gosto... Mas, estamos acostumados a sempre ouvir e, eventualmente, todos conseguem tirar o melhor do outro.
Hoje, na Espanha e na Catalunha, está sendo criado um tipo de relação onde quase todos tiram o pior do outro. Mas isso pode mudar! Porque nós não somos melhores, somos da mesma massa que eles. Talvez não sejam necessários outros cinco séculos para isso.
3. Por isso, não faria mal recordar os governantes alguns ensinamentos do livro bíblico da Sabedoria (que alguns têm chamado de "o primeiro tratado sobre a teologia política):
- o poder, tal qual a riqueza, é propriedade de Deus.
- Aqueles que o detêm são apenas administradores e não proprietários.
- Por isso eles têm de gerir de acordo com a vontade de Deus (aqueles que não acreditam em Deus, coloquem em seu lugar "a Justiça", que é uma das designações bíblicas favoritas para Deus).
- Porque, em última análise, todos eles são passageiros e mortais, enquanto "a justiça é imortal" (1,15).
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Espanha. "Temos visto os governantes catalães prejudicando seu povo", afirma José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU