Por: Cesar Sanson | 17 Setembro 2012
Mais de 100 mil cidadãos de todo o país tomaram as ruas de Madri para exigir que o chefe do Executivo nacional convoque uma consulta popular sobre as medidas anticrise tomadas no primeiro ano de sua administração. “Questionamos a legitimidade do governo para levar a cabo medidas que não formaram parte de seu programa eleitoral”, avisa o manifesto assinado por 900 entidades do país.
A reportagem é de Naira Hofmeister e Guilherme Kolling e publicada pela Agência Carta Maior, 16-09-2012.
Centenas de organizações da sociedade civil espanhola colocaram em xeque o governo de Mariano Rajoy (PP) na manhã deste sábado, 15 de setembro. Mais de 100 mil pessoas de todo o país se reuniram em Madri para pedir um referendo sobre a política de cortes nos gastos públicos implementada pelo chefe do Executivo para combater a crise econômica.
“Não descartamos que o governo convoque uma consulta popular, entretanto, se não o fizer, nós vamos garantir que a população seja ouvida”, avisou o secretário-geral do sindicato Comissões Obreiras (CCOO), Ignacio Toxo, antecipando que a iniciativa pode vir das próprias entidades. Outra medida estudada é uma greve geral de 48 horas.
A acusação das ruas é que durante a campanha eleitoral - antecipada em razão do descontentamento com o anterior presidente, José Luis Rodríguez Zapatero (PSOE), que já tinha tomado medidas impopulares para combater os problemas econômicos - Rajoy sustentou inúmeras vezes que não subiria impostos nem diminuiria recursos de setores como saúde e educação pública, o que acabou fazendo.
“Nenhuma das medidas que desde janeiro se vem aplicando foi submetida à consideração da cidadania nas passadas eleições de 20 de novembro. Trata-se de uma autêntica fraude democrática”, acusava o manifesto da Cúpula Social, organização formada por 900 entidades que convocaram a marcha.
O próprio Rajoy admite que descumpriu as promessas eleitorais, mas afirma que não há alternativa diante do cenário que se apresenta: o governo endividado depende de dinheiro da União Europeia e por isso tem que cumprir com as exigências feitas pela troika (Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional - FMI - e Banco Central Europeu).
“Esse ato é um marco para que a sociedade espanhola reverta essa política inútil e suicida que não resolve o problema do déficit. Basta já dessa submissão servil à União Europeia e de fazer ouvidos surdos à população”, exigiu o secretário-geral do sindicato União Geral dos Trabalhadores (UGT), Cándido Mendez, durante seu discurso.
O que nos cânticos das ruas foi traduzido como: “Es saqueo, es intervención; lo manda la Merkel, lo manda Washington”, entoado pelos integrantes da Unificação Comunista da Espanha, um dos coletivos mais animados entre os tantos que tomaram o centro de Madri. Políticos e banqueiros voltaram a ser os alvos preferidos na passeata, em que não faltaram ataques aos dois partidos que se alternam no poder nas últimas décadas, PSOE e PP.
O protesto foi organizado em 10 alas de manifestantes: seis marés temáticas (sindical, educação, saúde, serviços sociais, servidores públicos e mulheres) e quatro marchas regionais para as quais todas as comunidades espanholas enviaram delegações. Cada uma partiu de um ponto no eixo central de Madri, entre o Paseo del Prado – onde estão os museus e monumentos mais famosos da capital – e o Paseo de la Castellana, coração financeiro e empresarial do país. Todas confluíram para a Plaza Colón, onde ocorreu o ato final: o trajeto total percorrido foi de 5 quilômetros, cerca de 30 quarteirões. A organização fala em centenas de milhares de pessoas; o governo de Madri calculou que o público foi de 65 mil.
A polícia se concentrou em dois pontos chave da região: o Congresso dos Deputados e a Bolsa de Valores, que ficaram inacessíveis por conta das grades de contenção, furgões e homens armados. A proibição de passar próximo a estes locais virou atração e os manifestantes com frequência paravam para tirar fotos com o aparato de segurança ao fundo. Maior ainda foi a disputa por ser retratado ao lado do caixão do presidente do governo, confeccionado pelos bombeiros que participaram da manifestação.
População já está mais pobre
As reivindicações nas ruas de Madri são amplas e bem poderiam ser chamadas de genéricas, já que não apontam alternativas claras à política do atual governo. “Pedimos a redistribuição da riqueza, o desenvolvimento da democracia e o retorno da soberania nacional”, exemplifica a comunista Mercedes Gallego Cano.
As histórias pessoais, entretanto, indicam que a população já sente na pele os efeitos das medidas de ajuste. A funcionária pública Begoña Giménez, por exemplo, teve que vender o carro e abrir mão das férias anuais para pagar todas as contas com o seu salário, reduzido em 20% contando benefícios. “Pior foi a minha filha, que teve que imigrar para a Inglaterra para conseguir trabalho”, lamenta. Na repartição onde trabalha José Martínez, o problema se estende ao número de empregados. “Já demitiram quatro. Estamos todos com medo”, revela este servidor do setor de esportes.
Funcionária da prefeitura de Madri assim como o seu marido, Ana Garcia relata que o casal perdeu um quinto dos seus rendimentos nos últimos meses. Os gastos familiares foram revisados – as primeiras mudanças foram a redução pela metade das viagens de férias e a dispensa da diarista que auxiliava na faxina da casa. Enquanto a família de classe média apertou o cinto, a trabalhadora de baixa renda perdeu seu emprego.
Muitos que estão nessa condição temem não conseguir se recolocar no mercado laboral pela idade. É o caso de Francisco Carneros e José Nogales Sevilla, que já passaram dos 55 anos e deixaram seus postos de trabalho em uma multinacional automotiva que fechou duas fábricas em Barcelona. “Somos resíduos das políticas dos sucessivos governos, tanto de direita como de esquerda, do PP ou do PSOE”, comparam.
Uma alternativa simples mas que teria grande impacto na geração e manutenção de empregos, dizem, seria que as próprias administrações públicas incentivassem a indústria nacional, coisa que não acontece com frequência. Em busca de preços menores, prefeitos, presidentes de comunidades e até o governo federal compram produtos de outros países em detrimento dos feitos em seu próprio território. “Éramos a única fábrica de ônibus na Espanha”, completam.
Fecham escolas e centros de saúde
Para aqueles cuja saúde depende do Estado a situação se torna dramática. Desde 1º de julho a aposentada Nicanora Perez Hernández tem que pagar por sete dos nove medicamentos que toma, pois o governo baniu a gratuidade da maioria dos fármacos. “Em resumo, o que fizeram foi reduzir a minha aposentadoria”, condena.
Em Alicante, Beatriz Tudela vê a rede de atendimento aos portadores de necessidades especiais se reduzir a cada mês, deixando desatendido ao seu filho, que é autista. “Já fecharam muitos centros de saúde e, além disso, acabaram-se as subvenções para aparelhos. Faz alguns meses que já temos que pagar por qualquer equipamento ortopédico e, agora, a subida do IVA (Imposto de Valor Agregado) vai impactar muito”, reclama.
Não só aqueles que utilizam a rede de saúde estão preocupados. Também os trabalhadores do setor condenam as estratégias governamentais utilizadas para economizar. “Agora eles enviam as provas de laboratório e exames para as clínicas privadas, embora tenhamos equipamentos e recursos humanos para realizá-los. Mas sai muito mais caro”, denunciam duas funcionárias públicas, Ana e Marta, que preferem manter o sobrenome em sigilo.
A queixa do professor de Educação para Jovens e Adultos, José Antonio Sainz, também extrapola o problema da redução salarial. É sobre as condições de trabalho e a qualidade do serviço público prestado. Se antes as turmas sob sua responsabilidade dificilmente passavam de 30 alunos, agora podem ter até 45. “Há que se considerar que este é um público que em geral não gosta de estudar mas precisa ter um diploma. Eles demandam uma atenção e cuidado muito maior e com uma sala com tantas pessoas fica difícil atender”, pondera.
Ele reclama do fechamento de unidades de ensino para analfabetos com mais de 18 anos em vários municípios pequenos. “As pessoas precisam entender que cortar o número de funcionários significa cortar serviço público, que é gratuito e necessário”, observa, respondendo às críticas de grande parte dos cidadãos de que há um excesso de servidores públicos e de benefícios para estas carreiras.
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Espanhóis denunciam fraude democrática no governo de Rajoy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU