24 Outubro 2008
Em um Sínodo em que, por consenso dos próprios organizadores, a principal preocupação dos participantes parece ser a de permanecer o máximo possível “alienados e protegidos”, é difícil reconstruir os limites de um “debate” que subentenda as centenas de intervenções dos bispos, cardeais e especialistas.
O artigo é de Alessandro Speciale, da revista Adista, nº 73, 25-10-2008. A tradução é de MoisésSbardelotto.
Muitos delegados, conscientemente ou não, parecem ter seguido o convite do cardeal Carlo Maria Martini (cf. Adista, nº 13/08) de não pensar no Sínodo como um modo para colocar em discussão as fórmulas conciliares fundamentais da Dei Verbum sobre a Bíblia, interpretação, Igreja e teologia, mas a se concentrarem, pelo contrário, sobre aspectos pastorais e sobre o papel das Escrituras na vida cotidiana da Igreja. E, assim, estimulados também pelo próprio título do Sínodo, “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”, muitas intervenções nas duas primeiras semanas abordaram temas díspares como a lectio divina, a “chatice” das homilias, o tom apropriado para se ler as Escrituras durante a missa, as traduções da Bíblia, a preparação dos leitores e o seu ministério, a arte como “pregação para os olhos”, o custo de se colocar “uma Bíblia na mão de qualquer fiel”, sobretudo na região Sul do mundo, o papel ecumênico das Escrituras... Temas de recorte substancialmente pastoral, que enfrentam, de pontos de vista também diferentes, o problema de como reforçar a relação direta entre católicos e o texto sacro, teorizado pelo Concílio Vaticano II, mas ainda longe de uma efetiva aplicação.
A agenda da Cúria
Mas a agenda da Cúria para o Sínodo está longe de ser simplesmente pastoral e deseja alcançar também um ajuste da relação entre a Bíblia, o seu estudo científico, a sua interpretação e o Magistério da Igreja. O “farol” desse ponto de vista é representado – naturalmente – pelo livro de Bento XVI sobre “Jesus de Nazaré”, apresentado aos padres sinodais, não muito implicitamente, como a “pista” ideal para o trabalho. Em seu livro, o pontífice tinha criticado o assim chamado “método histórico-crítico” que aproxima a Escritura aos mesmos instrumentos textuais e científicos desenvolvidos para os textos “profanos”. O risco desse método seria o de reduzir a Bíblia a um “livro antigo”, dentre tantos outros, e é por isso que Ratzinger, ao invés, colocou o acento sobre a “exegese canônica”, uma aproximação que assume a unidade da Bíblia como dada desde o início e tenta fazer, sobre ela, uma interpretação mais teológica do que crítico-literária, à luz, naturalmente, da tradição e do Magistério da Igreja.
Abordagem essa retomada fielmente pelo relator geral do Sínodo, o cardeal canadense Marc Ouellet, que, já na sua Relatio ante disceptationem na abertura dos trabalhos da assembléia, havia proposto aos delegados que se pedisse ao papa uma “encíclica sobre a interpretação da Escritura na Igreja”. É fácil pensar que, para o papa Ratzinger, tal encíclica constituiria a ocasião perfeita para transformar o seu “Jesus” de texto “pessoal” em texto magisterial. Não por acaso, quase não houve intervenções que não se tenham esquecido de citar o best-seller do papa, propondo-o como modelo de uma renovada exegese capaz de manter “vivas” as Escrituras na Igreja.
À luz dessa tensão de fundo, não faltaram, no entanto, entre as intervenções pessoais de alguns padres sinodais (por exemplo, o do Mestre Geral dos dominicanos, Pe. Carlos Alfonso Azpiroz Costa), algumas defesas apaixonadas do método histórico-crítico e do seu significado para a vida da Igreja. Durante a hora do “debate livre” que conclui a cada dia a assembléia do Sínodo, um “bispo-exegeta” (os nomes e os textos das intervenções no debate livre são secretos) colheu aplausos pela sua intervenção, na qual lamentou as críticas muito revoltadas contra os exegetas durante o Sínodo e lembrou que a leitura da Bíblia não pode ser (só) no sentido espiritual, mas deve também fundamentar-se no método histórico-crítico.
Uma intervenção sem precedentes
Malgrado a substancial uniformidade das posições expressadas, o modo em que se desenvolveram os trabalhos do Sínodo nos primeiros dez dias não satisfez totalmente as expectativas vaticanas, evidentemente. Por isso, com um gesto sem precedentes, no dia 14 de outubro, o próprio Ratzinger tomou a palavra durante a Congregação geral (a “plenária” do Sínodo) e sugeriu aos padres que dedicassem uma das suas proposições à relação entre os exegetas e a teologia.
A intervenção do papa chegou em um momento crucial dos trabalhos sinodais, quase no término da longa série de intervenções “livres” dos delegados, na vigília da apresentação, por parte do cardeal Ouellet, da sua Relatio post disceptationem, que reassume os trabalhos e define os temas sobre os quais deverão se concentrar os círculos menores, que elaboram as “proposições” que serão apresentadas ao papa. Já por ocasião do último Sínodo, dedicado, em 2005, à eucaristia, o pontífice tinha tomado a palavra, mas nunca antes Ratzinger havia chegado ao ponto de indicar aos padres sinodais o tema de uma de suas propostas, que deverão ser entregues a ele mesmo para aprovação.
No seu breve discurso – que durou cerca de oito minutos e foi pronunciado de improviso (a intervenção foi publicada pelo L’Osservatore Romano no dia 15-10) –, o papa alertou contra os “riscos de uma exegese exclusivamente histórico-crítica” que, mesmo que “ajude a entender que o texto sacro não é mitologia, mas história verdadeira” e que “ajude a compreender a unidade profunda de toda a Escritura”, pode, no entanto, levar “a pensar a Bíblia como um livro que se refere só ao passado”. “Se a hermenêutica da fé desaparece – disse ainda –, afirma-se em seu lugar a hermenêutica positivista ou secularista, segundo a qual o divino não se manifesta na história. E se reduz tudo ao humano, como na atual corrente da exegese na Alemanha, que nega a ressurreição de Cristo e a instituição da Eucaristia por parte do Filho de Deus”. E aqui o papa criticou a atual dicotomia entre exegese e teologia: a leitura e a interpretação da Bíblia, enfim, deveriam ser mais “integradas” na teologia e na doutrina da Igreja, ao invés de serem um estudo autônomo que segue as regras do método científico.
É fácil imaginar que o Sínodo não deixará de acolher a sugestão do pontífice. E, pontualmente, o coração da sua intervenção foi retomado pelo cardeal Ouellet em uma das 10 perguntas propostas aos círculos menores como pistas para a definição das proposições finais. A pergunta número 7 diz de fato: “O que pode ser feito para ajudar as pessoas a entenderem que a leitura e a interpretação da Bíblia devem levar em consideração o sentido literal do texto, o sentido espiritual do texto e a tradição do Magistério da Igreja?”. Resposta previsível: ler “Jesus de Nazaré”.
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No Sínodo sobre a Bíblia, "Jesus de Ratzinger", modelo de pesquisa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU