06 Outubro 2017
«A vinha do Senhor é a casa de Israel.» Apesar de tudo o que Deus fez por ela, a vinha produziu somente uvas selvagens. Pois, mesmo assim, reitera Deus as suas expectativas mais queridas: que, enfim, ela produza os frutos do direito e da justiça!
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 27º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
1ª leitura: “A vinha do senhor dos exércitos é a casa de Israel” (Isaías 5,1-7)
Salmo: Sl. 79(80) - R/ A vinha do Senhor é a casa de Israel.
2ª leitura: Praticai o que aprendestes e recebestes de mim e a paz estará convosco (Filipenses 4,6-9)
Evangelho: “Arrendará a vinha a outros vinhateiros” (Mateus 21,33-43)
No evangelho, de novo estão presentes os sumos sacerdotes e os anciãos do povo, personagens muito considerados e dotados de autoridade. Mas não nos enganemos: é a todos nós, mulheres e homens, que Jesus está se dirigindo. Pois, todos de fato temos algum domínio, maior ou menor, de autoridade e de responsabilidade. Somos senhores dos nossos atos e de nossas decisões. A primeira coisa que Jesus nos diz é que este universo que temos de administrar não nos pertence. Traduzindo: o mundo em que habitamos pertence a Ele, que é a sua fonte, a sua origem sem qualquer antecedente. Este mundo, que é fruto da fecundidade divina, é também imagem desta fecundidade. Tal como a vinha, que é símbolo disto, este mundo foi feito para dar frutos, para gerar vida, alegria e felicidade. Em vista disso é que foi confiado aos homens, foi posto em suas mãos. Deus despojou-se da sua obra em favor do homem, para assim culminar a sua imagem. A parábola diz que o proprietário da vinha ausentou-se. Mas estará Deus ausente deste mundo? Digamos que é pelos homens e nos homens que, nele, Deus está presente e ativo: quando buscamos fazer ser nosso o amor que, se podemos dizer assim, é a Sua substância mesmo. Depende de nós, portanto, a presença ou a ausência de Deus no mundo. Presença que, na parábola, é representada particularmente pelos empregados que foram buscar o produto da vinha. No fundo, temos os profetas todos que povoaram a Primeira Aliança e que foram rejeitados pelos "vinhateiros", que se queriam os proprietários da vinha. Agora, temos aí o Filho que os profetas anunciaram. Pois até mesmo Ele, presença perfeita do Deus invisível, será eliminado.
A parábola dos vinhateiros homicidas é, portanto, uma espécie de profecia pascal. Jesus anuncia o que vai lhe acontecer. E a sua crucifixão será a concretização, a revelação do que foi acontecendo desde o princípio: a vontade dos homens de tomarem posse do mundo e dos outros, em seu próprio benefício. O culto da riqueza e do poder. O desejo de dominar. Em resumo, em vez de se fazerem imagem de um Deus que se revela amor, dom de Si mesmo, extraviaram-se, buscando assemelhar-se a um deus de poder, a um deus que não existe. Não nos esqueçamos disto ao falar do "Deus todo poderoso": a onipotência de Deus exprime-se na extrema fraqueza; a da Paixão. Esta palavra evoca passividade: ao aceitar a morte que nós lhe oferecemos, o Cristo assumiu-a, superou-a, eclipsou-a. Foi este o último fruto da vinha, que nos foi dado pela árvore da Cruz. O "Reino" é a realeza sobre a morte. Entramos neste "Reino" seguindo-o no mesmo caminho que ele percorreu. No final, a parábola passa da imagem da vinha à da "pedra angular". Na Bíblia, a pedra tem um duplo significado: é o obstáculo que faz o pedestre distraído cair; e, também, é sobre o que se pode construir uma casa indestrutível (ver Mateus 7,24-27). O que é "maravilhoso aos nossos olhos" é que esta pedra única, que é o próprio Cristo, ocupe estes dois lugares: esposando a morte que lhe impusemos, é que ele pôs no mundo a vida que não terá mais fim. A última palavra: o Reino será tirado dos que pretendem deter o poder de dominar, e vai ser entregue a um povo novo. Se Jesus conta esta parábola aos sumos sacerdotes e aos anciãos, é para que mudem de comportamento. Outros textos dirão que todos, finalmente, seremos "herdeiros do Reino".
Esta parábola recapitula toda a história de Israel. Temos aí o povo escolhido para fazer vir ao mundo o Reino de Deus, conforme falamos no comentário precedente. Escolhido entre todos os povos, porque todos pertencem a Deus, mas escolhido em nome de todos. Não esqueçamos que a atuação de Israel na cena da humanidade, à vista de todos, é a nossa aventura comum. Por isso, exatamente, muitos se veem equiparados a ele: e não gostamos de que a nossa verdade seja revelada à luz do dia. Através de Israel, portanto, a parábola dos vinhateiros diz respeito a todos os homens. Tudo tem início com o proprietário de um terreno que plantou uma vinha. Inspirando-se em Isaías (primeira leitura), Jesus insiste na solicitude deste homem: “pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas e construiu uma torre de guarda”: ou seja, uma vinha bem defendida das agressões de que nos fala o Salmo. No entanto, o perigo não virá do exterior, mas do interior. São os vinhateiros, os responsáveis pela vinha, que irão trazer as catástrofes. Paulo vai nos explicar que nada que venha do exterior pode verdadeiramente nos fazer mal, nem a morte nem a vida, nem os principados nem as potestades (ver Romanos 8,35-39). Em Marcos 7,15-23, Jesus diz que “nada há no exterior do homem que, penetrando nele, possa torná-lo impuro, mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro”: o que sai do seu coração. Assim, não vamos onerar os outros com o peso dos nossos males e de nossas decadências: os responsáveis estão dentro da vinha mesmo.
Mas, justamente, temos aí visitantes que vêm do exterior; vêm da parte do “proprietário”. Não vêm para causar danos nem pilhar, mas para fazer valer a relação natural que há entre o proprietário, a vinha e os vinhateiros. É a longa história do litígio entre Deus e o povo que Ele escolheu. Vamos reler o início da Carta aos Hebreus: «Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho.» É exatamente o esquema da Parábola que, falando de empregados, fala-nos de fato dos juízes, dos guias, dos reis e, antes de tudo, dos profetas que tentaram trazer o povo de volta aos caminhos de Deus. É de se notar a progressão, que revela a insistência amorosa de Deus: primeiro alguns empregados, três, parece. Em seguida, mais empregados e mais numerosos. Por fim, o próprio Filho. É preciso reler Mateus 23,29-39. Também aí Jesus recapitula a história passada, com um vigor extraordinário: «sois filhos daqueles que mataram os profetas. Completai, pois, a medida de vossos pais!» Fala evidentemente da crucifixão, que completará a medida. Os vinhateiros se comportam como se fossem os proprietários da vinha, que, de fato, lhes foi apenas confiada. Não aceitam nenhuma palavra que lhes venha do Senhor. Há aí uma reedição do que lemos em Gênesis 3: a recusa do que diz Deus; a vontade de se apoderar da sua divindade.
A história, no entanto, não para aí. Em Mateus 23,34, os verbos estão no presente, mas um presente que equivale a um futuro: «Por isso vos envio profetas, sábios e escribas: a uns matareis e crucificareis, a outros açoitareis em vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade.» E Jesus continua dizendo que estas mortes recapitularão todo o sangue vertido desde o começo do mundo. Por que tanta violência? Qual é a realidade tão secretamente recusada, a ponto de se matar os que a anunciam? O que não queremos ouvir é a mensagem da reciprocidade, que completaria o círculo do amor. Ai dos mensageiros da paz! Ai dos que trabalham pela justiça! Os vinhateiros receberam a vinha e deveriam devolver os frutos. Dom recebido e retribuído; o retorno do dom à sua fonte, diástole e sístole, aspiração e respiração; o ritmo mesmo da vida. A vida é o próprio Deus. E quem recusa a vida produz a morte. Tudo isso é muito transparente: assim como os vinhateiros, também nós somos tentados a comportamo-nos como proprietários do mundo, o que nos leva a dominar os outros, a explorá-los, seja pela força ou por sutis submissões econômicas. Tudo isso, que tomará a forma da cruz de Cristo, pode parecer-nos muito tenebroso. O evangelho, no entanto, termina com uma boa notícia: todos os que a vida e o mundo crucificam haverão de, com Cristo, tornarem-se a pedra angular de todo o edifício. Promessa de ressurreição.
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Entre a esperança e a decepção: Deus e sua vinha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU