07 Setembro 2017
“A Igreja australiana – embora ainda seja uma presença influente e visível na educação e na saúde – corre o risco de se tornar um pária. E os católicos australianos esperam uma série de processos criminais envolvendo padres e bispos; a raiva de muitos católicos leigos em relação à estrutura clerical e institucional é palpável.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado no sítio Commonweal, 05-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Chegando em Sydney, Austrália, em meados deste ano para uma série de conferências promovidas pelo Broken Bay Institute, do Instituto Australiano de Educação Teológica, encontrei uma Igreja enfrentando eventos que provavelmente terão um impacto profundo no seu futuro: a conclusão do trabalho da Comissão Real sobre uma “resposta institucional ao abuso sexual infantil”; o retorno do cardeal George Pell de Roma para enfrentar acusações sobre casos de abuso sexual que supostamente ocorreram há décadas na diocese de Ballarat; e o anúncio de um Conselho Plenário para a Austrália agendado para 2020 – o primeiro desde 1937.
As três questões estão entrelaçadas. O caso Pell assusta a Igreja institucional por causa das repercussões que o julgamento pode ter sobre outras investigações sobre abusos sexuais do clero. Isso complica a resposta criativa do episcopado australiano ao escândalo: a criação do Conselho Verdade, Justiça e Cura [Truth, Justice, and Healing Council], lançado pouco depois do estabelecimento da Comissão Real e liderada por Francis Sullivan, um leigo católico que, por 14 anos, foi diretor-executivo da Catholic Health Australia.
Após a esperada publicação do relatório da Comissão Real no fim deste ano, o Conselho Verdade, Justiça e Cura publicará o seu próprio relatório. Será interessante ver como o episcopado o receberá. Criado pelos bispos, o conselho manteve, mesmo assim, uma atitude independente; por exemplo, recusou o pedido de alguns bispos de fazer um exame cruzado sobre os testemunhos ouvidos pela Comissão Real.
Durante o jantar em Sydney, Sullivan me deu a sua avaliação sobre o impacto das audiências da Comissão Real. “As audiências revelaram os fatores culturais que permitiram que o escândalo fosse tão mal gerido”, ele me disse. “Eles podem ser resumidos como questões de poder, privilégio e participação. Quem controlou a tomada de decisões, que estava envolvido na tomada de decisões, e quem se beneficiou com as decisões tomadas.
A falta de transparência e as atitudes de domínio que sustentam o clericalismo receberam muita publicidade. Isso abriu um debate público sobre o papel das mulheres, o celibato, a formação nos seminários, a supervisão dos clérigos e o uso ético das finanças da Igreja.”
A Igreja, acrescentou, perdeu o controle desse debate público. “A sua voz foi silenciada e ficou comprometida”, disse. “Qualquer aparência de um tom defensivo é atacado pelos críticos, e a maioria das lideranças está falhando em termos de ação.”
A comissão, criada pelo governo federal em 2013, enfrentou a Igreja Católica como nenhum outro inquérito público na história da Austrália. Inquéritos parlamentares ou governamentais anteriores examinaram as posições da Igreja em áreas específicas de política interna ou da prestação de serviços em áreas como educação, saúde ou trabalho social. Estes geralmente se transformam em debates sobre identidade, ethos e liberdade religiosa; eles não examinam de fato a boa-fé da Igreja ou as suas reivindicações para ser uma organização confiável e um “cidadão corporativo” ético.
Além disso, a Comissão Real mostrou desconsideração, que alguns até percebem como desrespeito, em relação à Igreja em geral. Certamente, não foi concedido nenhum tratamento especial, nem houve uma tentativa de pagar uma deferência extra às autoridades da Igreja. De muitas maneiras, a Igreja australiana teve que enfrentar como ela perdeu a sua credibilidade na sociedade em geral e com quão pouca tolerância ou compaixão ela pode contar em um ambiente tão altamente carregado.
A comissão não emitirá normativas, mas apresentará um relatório ao governo sobre a probabilidade dos fatos, com recomendações para as instituições e para a nação em sentido amplo. Se a Igreja Católica não seguir as recomendações (entre as possíveis: que a Igreja inclua mulheres nas suas estruturas de governo ou modifique a formação para os seminaristas), há um temor de que o governo possa, por exemplo, exigir o registro de ministros religiosos autorizados para exercer funções em contato com o público (especialmente crianças).
Houve uma prévia disso no dia 14 de agosto, quando a comissão emitiu recomendações que incluíam a obrigação de que os padres denunciem o que for revelado no confessionário. A Igreja respondeu vigorosamente, fechando a porta para toda possível mediação e criando a impressão de uma hierarquia clerical insensível ao escândalo. No entanto, arcebispos mais importantes não poderiam concordar em público com a extensão do sigilo da confissão e se recusaram a formalmente dar continuidade a isso pedindo a opinião de Roma.
Em uma sessão anterior da comissão, canonistas especialistas concordaram que o sigilo da confissão se aplicava apenas à confissão de um pecado, e não a outras informações que concerniam ao penitente, mas que não fossem um pecado da pessoa. Assim, o caminho está aberto para abordar a questão substancial em que a Comissão Real está interessada, mesmo que os bispos tenham se recusado a fazer tal interpretação.
A questão poderia ter repercussões para outras Igrejas afetadas pelo escândalo e abre questões intrincadas sobre a necessidade de equilibrar a proteção de potenciais vítimas com a liberdade religiosa em termos de organização interna. Bob Carr, ex-ministro das Relações Exteriores da Austrália, indicou na conferência do Broken Bay Institute que a questão-chave é o alcance do governo na sua tentativa de definir as regras da organização interna de uma comunidade religiosa. O problema é muito mais antigo do que o debate nos Estados Unidos sobre a liberdade religiosa desencadeada pela reforma da saúde do governo Obama.
No topo dos desafios trazidos pela biopolítica desde os anos 1970 (do aborto à eutanásia), a crise dos abusos sexuais apresenta um desafio semelhante à era do Iluminismo para a Igreja, no qual ela e o Estado competem para definir as suas esferas de influência. É um retorno àquilo que os historiadores da Igreja conhecem como “jurisdicionalismo” do século XVIII na Europa central católica.
Se ela rejeitar as recomendações da comissão, a Igreja australiana – embora ainda seja uma presença influente e visível na educação e na saúde – corre o risco de se tornar um pária. E, seja qual for a sua resposta, os católicos australianos esperam uma série de processos criminais envolvendo padres e bispos; a raiva de muitos católicos leigos em relação à estrutura clerical e institucional é palpável.
No entanto, deve-se dizer que o papel decrescente da Igreja na Austrália tem sido um longo processo. As taxas de participação caíram alarmantemente na última década. Dados do censo de 2016 refletem a situação do cristianismo ocidental em geral: “Entre os grupos que atraem porcentagens de dois dígitos da população, houve um aumento contínuo daqueles que se declaram ‘sem religião’ a ponto de se tornar o grupo mais numeroso (30,1%). Os católicos estão com 22,6%, enquanto os anglicanos – que foram empurrados para fora do primeiro lugar em 1986 – passaram de um pico de 41% em 1921 para o terceiro lugar com 13,3%”.
Depois, há o aspecto eclesial. Pell é o “guerreiro cultural” australiano mais poderoso e é alguém próximo dos círculos teológicos e políticos conservadores e tradicionalistas no Vaticano e nos Estados Unidos. O começo do fim da era Pell (ele tem 76 anos de idade e provavelmente não retornará ao seu cargo vaticano) deixa uma Igreja dividida, mas de uma forma menos profunda do que nos Estados Unidos. Uma polarização que é mais eclesial e teológica do que política, e que se deve à secularização da Austrália, mais típica da Europa.
Os leigos católicos que tentam pressionar a Igreja institucional a responder à crise dos abusos sexuais expressam uma agenda típica do catolicismo anglo-saxão liberal: o celibato sacerdotal e a abertura do sacerdócio às mulheres. A preparação do Conselho Plenário de 2020 se desenvolverá enquanto membros proeminentes do clero estão no tribunal e enquanto avança uma agenda política para legalizar a eutanásia e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. As pesquisas sugerem que a maioria dos católicos, junto com outros cristãos, votarão a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo na próxima pesquisa postal.
A preparação e a celebração do Conselho Plenário em 2020 apresentam uma oportunidade para mudar uma narrativa dominada pelos abusos sexuais. Até mesmo os católicos conservadores esperam mudanças estruturais radicais. Há sinais de colaboração entre o episcopado, os leigos, as ordens religiosas e os institutos de formação teológica na preparação do conselho.
Esse episcopado é composto por três tipos de bispos: os da era Pell; os da era anterior, mas com um novo papel na Igreja do Papa Francisco; e os nomeados por Francisco, que encarnam claramente a Igreja de Francisco. Entre este último grupo, encontra-se Vincent Long Van Nguyen, OFM Conv., bispo de Parramatta, que chegou à Austrália como refugiado do Vietnã em 1981 e que, neste ano, forneceu à Comissão Real um testemunho chocante do abuso sexual que ele mesmo sofreu.
A força orientadora à frente do conselho é o arcebispo de Brisbane, Mark Coleridge, que poderia ser eleito presidente da Conferência Episcopal no ano que vem. De acordo com o direito canônico, a definição de “conselho plenário” é restritiva em termos de votação e em termos de quais aspectos da lei podem ser efetivamente abordados exclusivamente na Austrália.
Depois de uma intensa crítica da cultura da Igreja em torno da participação e da boa governança, o conselho precisará designar processos de consulta e sínodos que ampliem a participação e incluam as mulheres na tomada de decisões. Pode ser difícil administrar a política interna da Igreja quando os bispos conservadores estão com raiva do tratamento dado à Igreja pela Comissão Real e pela mídia australiana. Lideranças da Igreja, clérigos e leigos não têm nenhuma opção real a não ser tentar demonstrar que o conselho não será um evento como os demais.
No entanto, a questão central para a Igreja australiana é a missão. As divisões habituais entre clérigos e leigos, e entre leigos com mais de 50 anos e jovens secularizados impactarão as decisões sobre o sistema de financiamento híbrido público-privado para escolas e hospitais católicos.
O financiamento público para as escolas católicas (agora sob revisão do governo conservador) fornece acesso a serviços a uma grande parte da população, uma população muito mais ampla e mais social e etnicamente inclusiva do que nos Estados Unidos. Cerca de 20% dos estudantes australianos estão matriculados nas 1.700 escolas católicas do país; outras escolas privadas representam 14% dos estudantes.
Mas, ao mesmo tempo, isso levanta questões sobre o caráter católico dessas instituições – não em termos de estudantes (muitos dos quais não são católicos), mas em termos de professores e administradores. Há questões semelhantes sobre a saúde, na qual a Igreja Católica australiana desempenha um papel central, especialmente para os pobres e marginalizados: ela é o maior provedor de cuidados de saúde não governamental, atendendo a um em cada dez australianos. Será um desafio saber como os prestadores de cuidados de saúde católicos vão oferecer benefícios a uma sociedade cada vez mais multicultural e multirreligiosa, até mesmo enquanto administram a transição das ordens religiosas que fundaram os hospitais aos leigos.
Também levantará questões sobre a formação – para o clero, para as escolas católicas e para os hospitais católicos. A teologia australiana vive em contato com o mundo anglo-saxão, mas as mudanças demográficas estão “relocalizando” o país na geografia da Australásia, com a emergência de novas vozes. O fechamento do John Paul II Institute for Marriage and Family por falta de adesão, anunciado pelo arcebispo de Melbourne em outubro de 2016, é ilustrativo.
Mas segmentos significativos de jovens clérigos e jovens leigos católicos fazem parte do movimento neotradicionalista. Com um futuro a ser assim construído, os três anos anteriores ao conselho de 2020 serão decisivos, mesmo que os próximos 12 meses possam mudar significativamente o cenário.
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O fim da era Pell, a pedofilia e o futuro Conselho Plenário da Igreja australiana. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU