01 Setembro 2017
A Quarta Revolução Industrial é a mais desconcertante revolução produtiva da história da humanidade e desorganizará radicalmente a sociedade que conhecemos, particularmente o mundo do trabalho. Os estudos de Marx do papel desempenhado pela maquinaria na Revolução Industrial alerta para a importância de se estudar e conhecer a natureza dessa revolução em curso escreve Cesar Sanson, professor na área da sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Um estudo recente divulgado pela Universidade de Oxford anunciou que 47% dos empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos na esteira da Quarta Revolução Industrial. Outro relatório divulgado pela Foundation for Young Australians (FYA) destaca que mais da metade dos estudantes estão atrás de profissões que se tornarão obsoletas pelos avanços tecnológicos e automação. A pesquisa mostra que 60% dos jovens entram no mercado de trabalho em profissões que serão radicalmente afetados pela automação, e que pode ocorrer dentro dos próximos 10 a 15 anos.
É fato incontestável. Os robôs eliminam postos de trabalho num ritmo acelerado. Cada vez mais, os trabalhadores da manufatura serão substituídos pelas impressoras 3D, os bancários pelos algoritmos e uma enormidade de serviços pela Inteligência Artificial. Fábricas, bancos, supermercados, fazendas e serviços públicos automatizados já são realidade. A robotização e a informatização são irreversíveis.
As mudanças não serão apenas na base técnica, toda a estrutura ocupacional será alterada. A tendência é de altos salários na ponta dos cargos cognitivos e de baixos salários nas ocupações manuais. A flexibilidade será a regra nas relações de trabalho. Empregadores utilizarão a ‘nuvem humana’ – trabalhadores que podem ser localizados em qualquer lugar para resolução de problemas e projetos.
As inflexões não param por aí. O movimento operário tal qual o conhecemos será varrido do mapa. O que virá pela frente não se sabe. Talvez os sindicatos desapareçam e surja outra coisa no seu lugar.
A Quarta Revolução Industrial ou ainda a Revolução 4.0 é a mais desconcertante revolução produtiva da história da humanidade. As revoluções anteriores também foram radicais, mas o seu tempo de maturação foi mais prolongado. Essa, entretanto, se faz num ritmo alucinante. O que sustenta essa Revolução na opinião de Klaus Schawb - uma referência nos estudos da Revolução 4.0 – é sua velocidade, profundidade e impacto sistêmico e a sua capacidade de fazer interagir diferentes áreas: física, digital e biológica.
Estamos diante de um grande desafio: estudar, compreender e interpretar o significado e o impacto da Quarta Revolução Industrial para o conjunto dos trabalhadores e da sociedade.
Marx já ensinava que o capital adquirindo novas forças produtivas altera o modo de produção e as relações sociais. O autor de O Capital foi um dedicado estudioso das máquinas-ferramentas do seu tempo. O objetivo principal de Marx ao estudar a tecnologia tinha como horizonte compreender a mudança de base material do capitalismo. O seu interesse no estudo das máquinas era decifrar a lógica das forças produtivas na dinâmica da luta de classes.
Na sua obra A Miséria da Filosofia expressava essa linha de raciocínio ao demonstrar as relações sociais atreladas às forças produtivas: “Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, a maneira geral de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho dar-vos-á a sociedade com o suserano; a máquina a vapor, a sociedade com o capitalista industrial” [1]
Marx revela que a evolução dos meios técnicos – a maquinaria – impacta o modo produtivo, revoluciona a forma de produzir, radicaliza a divisão do trabalho oriunda da manufatura e reorganiza o conjunto da sociedade capitalista. Para além da consequência objetiva (produção de mercadorias), incorre uma alteração subjetiva (produção de relações sociais). É celebre a citação sua e de Engels no Manifesto Comunista: O capital “não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, e com isso, todas as relações sociais. (...) Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas (...) Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar (...) Os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens” [2].
Partindo da compreensão de que a evolução das forças produtivas enseja sempre mais a exploração dos trabalhadores, Marx chega à conclusão nos seus estudos sobre a maquinaria que a mesma se “destina a baratear a mercadoria e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista” [3]. Em sua interpretação, a maquinaria da grande indústria está associada à produção da mais-valia, particularmente da mais-valia relativa. Marx faz uma distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa, a primeira é produzida pelo prolongamento físico da jornada de trabalho e a segunda se faz pelo barateamento da força de trabalho, abreviando-se a parte da jornada destinada à produção. Isso se faz, sobretudo através do desenvolvimento da maquinaria.
Ainda mais. Marx revela que a maquinaria sofistica a divisão social do trabalho tributária do período artesanal e da manufatura. E essa não é uma mudança qualquer. A maquinaria assume um significado revolucionário nas forças produtivas e o núcleo central dessa transformação reside no fato de que, por meio da intervenção da técnica e da ciência no processo de trabalho tem-se a completa expropriação do saber do trabalhador no processo produtivo.
A maquinaria na opinião de Marx significa uma ruptura da base material e do controle do trabalhador sobre o processo de trabalho. O trabalho que se realiza tem a sua autonomia reduzida – considerando-se que já está prescrito. Na manufatura, “a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de trabalhadores parciais; no sistema de máquinas, a grande indústria tem um organismo de produção inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como condição de produção material”, destaca Marx [4]. Na expressão de Marx, tem-se a subordinação do trabalhador à maquinaria que “confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual”.
Em que pese a possível e aparente demonização de Marx às máquinas-ferramentas, é um equívoco considerar sua crítica descontextualizada do seu método – o materialismo dialético. A partir desse método, percebe-se que o desenvolvimento dos meios técnicos é condição necessária para o surgimento do conceito de classe social. É o desenvolvimento das forças produtivas e o amadurecimento do capitalismo que possibilitam a irrupção de um novo ator social no cenário da sociedade industrial, como a propósito se lê nos Grundrisse: “Se a sociedade, tal como é, não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção e circulação necessárias a uma sociedade sem classes, todas as tentativas de criá-la seriam quixotescas” [5].
A breve digressão, valendo-se de Marx sobre o papel desempenhado pela maquinaria no nascedouro da Revolução Industrial tem como objetivo destacar o lugar transformador da Quarta Revolução Industrial. Estamos num processo similar ao que Marx acompanhou. Assim como a Revolução Industrial deixou para trás o mundo rural, a Revolução 4.0 em curso desorganizará radicalmente a sociedade que conhecemos, particularmente no mundo do trabalho. Caminhamos celeremente para o esgotamento da sociedade industrial/salarial. O que hoje é hegemônico será visto amanhã apenas como vestígios.
Estudar, conhecer e interpretar o que é essa Revolução permitirá uma intervenção ‘política’ mais adequada e correta. É isso que Marx nos ensina, é isso que ele fez. Dissecou as entranhas e os mecanismos do nascedouro da Revolução Industrial para indicar aos subordinados chaves de leitura que indicassem a resistência e a luta por dignidade.
Notas:
1 - MARX, Karl. A Miséria da filosofia (1985). São Paulo, Coleção Bases: Global Editora, p. 106.
2 - MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1988). Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, p. 43.
3- MARX, Karl. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p. 07.
4 - ________. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p. 17.
5 - ROSDOLSKI, Roman (2001). Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 353.
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Revolução 4.0 e a lição de Marx - Instituto Humanitas Unisinos - IHU