05 Agosto 2017
“O papado de Bento XV foi um brilhante exemplo de defesa humanitária, tanto acima quanto abaixo do nível confuso e necessário da alta diplomacia. No nosso tempo, quando os políticos clamam pela frase de efeito (ou tuíte), a verdadeira liderança inspira através da humildade e da dedicação pessoais para servir às necessidades existenciais mais profundas dos outros.”
A opinião é do historiador inglês Patrick J. Houlihan, pesquisador da Faculdade de História da Universidade de Oxford e autor de Catholicism and the Great War: Religion e Everyday Life in Germany and Austria-Hungary, 1914-1922. É membro do projeto “Globalizando e localizando a Grande Guerra”, de Oxford, financiado pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades do Reino Unido.
O artigo é publicado na revista America, 03-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há um século, durante a matança da Primeira Guerra Mundial, veio um proeminente apelo pela paz mundial. O Papa Bento XV datou a sua “Nota de Paz” em 1º de agosto de 1917, e esse se tornou o mais famoso episódio de um papa injustamente esquecido hoje. [A íntegra da nota está disponível aqui, no italiano original.]
O documento, publicado em francês e em italiano para refletir as línguas da diplomacia da Igreja do início do século XX, foi distribuído aos governos dos poderes em conflito. O esforço de Bento XV foi uma das tentativas mais concretas para acabar com os combates, mas foi depois ofuscado pelos “Quatorze Pontos” do presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos. Wilson usou ideias da “Nota de Paz” do papa, de agosto de 1917, embora o presidente não estivesse afim por reconhecê-las.
Especialmente pelo fato de a guerra ter continuado, alguns poderiam considerar a “Nota de Paz” papal de 1917 como um fracasso, destacando a suposta fraqueza da religião em uma era de realpolitik brutal. No entanto, a “Nota de Paz” foi um esforço idealista, embora prático, de tornar o mundo melhor e teve sucessos atrasados. Foi um símbolo-chave do papado de Bento XV: cercado pela guerra, ele se esforçou pela paz para a comunidade global. Ofuscado em sua vida, no entanto, ele forneceu lições para os povos e para os políticos do mundo, da época e de agora.
O papado de Bento XV durou de 1914 até a sua morte em 1922, ocorrendo durante os novos horrores da guerra moderna. A Igreja se esforçou para se adaptar ao mundo dos gases venenosos, dos bombardeios aéreos e da guerra submarina irrestrita. No entanto, o Papa Bento XV continua sendo o “papa desconhecido”, nas palavras do seu biógrafo de língua inglesa, o historiador John Pollard, de Cambridge.
Por que o Papa Bento XV é relativamente desconhecido? Além da sua marginalização pelos líderes políticos da sua época, parte da resposta é que o seu mundo existia antes da invenção do rádio e da televisão que podiam alcançar audiências globais. Além disso, a conduta reservada e despretensiosa de Bento XV parecia não corresponder às personalidades desmedidas dos papas modernos, incluindo Pio XI e Pio XII, moldados pelas suas lutas contra o comunismo e o fascismo, e os dois novos papas canonizados, João XXIII e João Paulo II, que adaptaram a Igreja às novas realidades da política globalizada.
Giacomo della Chiesa foi eleito Papa Bento XV em setembro de 1914, quando a Primeira Guerra Mundial estava apenas começando e a Europa católica era uma das muitas zonas de fratura. Países extremamente católicos, como a França, a Bélgica e a Itália, lutaram contra seus correligionários na Áustria-Hungria e na Alemanha (os católicos eram uma minoria-chave no Império Alemão, aproximadamente 36% da população em 1914). Sintonizado com as realidades da situação política, Bento XV denunciaria a guerra como um “inútil massacre” e como o “suicídio da Europa civilizada”.
Nos estágios iniciais da Grande Guerra, Bento XV convocou os poderes beligerantes para acabar com o conflito, principalmente na sua primeira encíclica Ad beatissimi, publicada em 1º de novembro de 1914, mas os estadistas desconsideraram os seus apelos. Uma das principais razões era que cada lado acreditava que Bento XV era um agente que favorecia o inimigo. Desconsiderada por ambos os lados em guerra e desterritorializada pela primeira vez desde a antiguidade, a Santa Sé teve uma posição diplomática ambígua, que ironicamente permitiu que Bento XV manobrasse a Igreja rumo a preocupações mais humanitárias, para além da política dos Estados-nação.
Um papa mais reacionário, como os seus antecessores – Pio IX e São Pio X – poderiam ter se voltado para dentro e para trás, alimentando a mágoa de ser um contínuo “prisioneiro do Vaticano”, em referência ao confisco dos Estados Papais durante a unificação da Itália no século XIX. Tal papa poderia ter fulminado os supostos pecados da modernidade, argumentado que os poderes mereciam seu destino horrível e se recusando a intervir.
Em vez disso, Bento XV tentou acabar com o sofrimento, movendo-se para fora e olhando para a frente. O seu compromisso com a crise humanitária da época era um modelo de liderança progressiva.
Muitos pediram o fim da Grande Guerra, mas a “Nota de Paz” de Bento XV foi notável pela sua tentativa de envolver os dois lados em uma série de pontos práticos que fariam avançar substancialmente a causa da paz. Nos Arquivos Vaticanos, pode-se ver vários rascunhos da nota, incluindo alguns com a caligrafia do papa, mostrando o cuidado considerável que acompanhou a composição do documento.
Havia seis objetivos principais da “Nota de Paz”:
O desejo de paz de Bento XV ressoou com a maioria da população global, mas as reações dos líderes das grandes potências não foram entusiasmadas. Os dois pontos finais referentes ao território ressaltaram as principais razões pelas quais a “Nota de Paz” de 1917 fracassou, já que os lados opostos se recusaram a se mexer.
A “Nota de Paz” mencionou expressamente o território na Bélgica, no norte da França, nas colônias alemãs, na Itália e na Áustria. No entanto, o alto comando alemão, dominado pela ditadura militar de Paul von Hindenburg e de Erich Ludendorff, recusou-se a abrir mão do território na Bélgica.
Como foco simbólico da agressão alemã, a Bélgica era um importante impasse moral. A França e a Grã-Bretanha não considerariam os planos de paz antes que os soldados alemães se retirassem da Bélgica e da França.
Os Estados Unidos entraram na guerra em abril de 1917, e o presidente Wilson estava se tornando a voz dominante de uma nova força moral na ordem mundial. Ele não aceitaria um desafio à sua liderança por parte do Papa Bento XV. Wilson se pronunciou contra as propostas de paz do papa, argumentando que não se podia confiar nos então governantes da Alemanha. No entanto, apenas alguns meses depois, em seus famosos “Quatorze Pontos” de janeiro de 1918, Wilson incorporou grande parte da substância da “Nota de Paz” de Bento XV.
Quando as lideranças militares alemãs perceberam que haviam perdido a guerra, os Poderes Centrais tentaram acabar com o conflito aceitando um armistício nos termos dos “Quatorze Pontos” de Wilson. Mais tarde, muitos na Alemanha reclamaram que o eventual Tratado de Versalhes foi um duro resultado de uma diplomacia enganosa. No entanto, Bento XV desempenhou um papel atrasado na realização do Armistício de novembro de 1918.
As grandes potências encontraram-se em Paris em 1919 para formular a paz e estabelecer os termos para aceitar novamente os poderes derrotados na comunidade das nações. Elas acabaram planejando uma nova ordem mundial, que causou queixas que culminaram na ainda mais destrutiva Segunda Guerra Mundial.
A “Nota de Paz” de Bento XV havia previsto algumas dessas dificuldades, olhando para frente e para trás, para os problemas da nacionalidade histórica. A nota mencionou a causa territorial e política aproximada da guerra, os Estados dos Bálcãs, embora sem especificar a quais Estados Bento se referia onde essas fronteiras estavam traçadas. Destacando as tragédias em andamento no século XX, a “Nota de Paz” também mencionou a Armênia e as “nobres tradições históricas e os sofrimentos suportados” pelo reino da Polônia.
Bento XV pessoalmente pressionou o sultão otomano Mehmed V, tentando deter o genocídio dos armênios. Durante e depois da guerra, Bento XV também advogou em prol das crianças famintas da Europa Central e Oriental.
Ao contrário dos estadistas que tiveram que abandonar as novas fronteiras estatais em Paris, em 1919, Bento XV desfrutou do luxo moral de não ser responsável pelas decisões políticas. O papa queria ter estado na Conferência da Paz de Paris. No entanto, no tratado secreto de Londres, em 1915, a Itália, com a “questão romana” ainda como um delicado ponto político, proibiu os Aliados de levar o papado em consideração em tais negociações. A Santa Sé também seria excluída da Liga das Nações, precursora das Nações Unidas.
Essa foi uma bênção disfarçada. Bento XV escapou dos dilemas insolúveis da demarcação de fronteiras políticas que causou uma inimizade amarga que levou à limpeza étnica e ao genocídio na Segunda Guerra Mundial. Em momentos cruciais durante e depois da Primeira Guerra Mundial, despojado de território e fora das alianças políticas, Bento XV focou a Igreja nas preocupações humanitárias em todo o mundo – convocando explicitamente que as pessoas se ajudassem mutuamente, para além da filiação a nações ou religiões.
Apesar dos aparentes fracassos das suas aberturas de paz no nível da alta diplomacia, as ações de Bento XV acompanharam os seus ideais. Seu humanitarismo se estendeu aos mais devastados pela guerra: viúvas, órfãos, pessoas deslocadas, refugiados e prisioneiros de guerra. Em 1915, ele fundou a Opera dei Prigionieri, que tinha escritórios no Vaticano sob os auspícios do secretário de Estado e se tornou um foco-chave da política externa vaticana. O escritório ajudava as pessoas a encontrar informações sobre seus entes queridos em um momento em que os canais de comunicação eram difíceis.
Em relação aos gastos no serviço do seu humanitarismo, Bento XV foi tão generoso ao ponto de beirar a extravagância. Durante a privação em tempos de guerra, quando o dinheiro era escasso em todo o mundo, Bento XV quase quebrou a liquidez do Vaticano, distribuindo 82 milhões de liras para as pessoas desesperadamente em necessidade.
Os Arquivos Vaticanos destacam a gama de respostas de todo o mundo: cartas de pessoas pobres em dificuldades, assim como organizações poderosas que buscavam reformar o mundo. A sua incansável defesa gerou conexões práticas com organizações não governamentais como a Cruz Vermelha e o Fundo Save the Children. Seu exemplo inspirou ativistas individuais como Marc Sangnier, que experimentou os horrores da guerra e tentou forjar vínculos transnacionais de solidariedade entre ex-inimigos.
O desejo de paz de Bento XV resultou em um modelo de engajamento multifacetado com líderes políticos, assim como com esforços de base. Não se limitando aos círculos católicos, a sua influência indireta irradiaria à Liga das Nações, assim como aos pensadores que, mais tarde, se tornariam políticos importantes responsáveis pelos partidos cristão-democratas da Europa pós-1945.
A sua carta apostólica de 1919, Maximum illud, sobre as missões globais, defendeu um papel de liderança igual para o clero autóctone, apontando o caminho para uma Igreja verdadeiramente global.
Não se deve romantizar Bento XV excessivamente ou fazer um relato acrítico da sua influência sobre o mundo moderno. Por exemplo, o Código de Direito Canônico foi concluído em 1917, durante o reinado de Bento XV e durou até 1983. Ele centralizou as estruturas de poder hierárquico e solidificou as linhas de autoridade dentro da Igreja. De certa forma, o humanitarismo apolítico de Bento XV foi um breve momento que logo se evaporou depois da sua morte – certamente em 1929, quando o Vaticano fez o Tratado de Latrão com a Itália fascista de Benito Mussolini.
Diante das ameaças crescentes do comunismo e do nazismo no período entre guerras, as lideranças da Igreja Católica fizeram alianças com poderes autoritários – e, segundo alguns, negociou com o diabo.
O mundo religioso que o Papa Bento XV habitou precisa de mais estudos históricos. O aparente fracasso da sua “Nota de Paz” de agosto de 1917 apenas ressalta que a construção humanitária da paz vai além da diplomacia de alto nível. É um processo contínuo que ocorre globalmente, entre massas de pessoas.
De muitos modos fundamentais, esse processo acelerou durante a Primeira Guerra Mundial. O mundo precisa de um exame mais aprofundado dos ideais e dos efeitos tangíveis das instituições religiosas para entender como a guerra moderna afeta os corações, as mentes e os corpos das pessoas comuns.
O papado de Bento XV foi um brilhante exemplo de defesa humanitária, tanto acima quanto abaixo do nível confuso e necessário da alta diplomacia. No nosso tempo, quando os políticos clamam pela frase de efeito (ou tuíte), a verdadeira liderança inspira através da humildade e da dedicação pessoais para servir às necessidades existenciais mais profundas dos outros.
Houve muitos “massacres inúteis” na Primeira Guerra Mundial, como escreveu o Papa Bento XV, e essa visão domina o relato contemporâneo sobre a guerra e o conflito. Mas, quando confrontados com esse ciclo aparentemente interminável de violência gráfica e de política amarga, não devemos abandonar a esperança.
Em vez de nos fixarmos em desastres aparentemente sem sentido, podemos olhar para as muitas pessoas que estão ajudando os seus semelhantes, tentando melhorar as coisas. Há incontáveis e “incontadas” histórias de decência humana nos bastidores.
A luta pela paz global continua.
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Bento XV e a campanha esquecida para acabar com a Grande Guerra. Artigo de Patrick J. Houlihan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU