10 Julho 2017
A presença mínima de professores negros, sempre abaixo dos 5% em qualquer universidade públicas e particulares de ponta é tratado com naturalidade e revela a segregação racial das universidades brasileiras, escreve Ronilso Pacheco, estudante de teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio e membro do Coletivo Nuvem Negra em artigo publicado por The Intercept, 08-07-2017.
Eis o artigo.
Conselho da USP (Universidade de São Paulo) aceitou a instituição de cotas sociais e raciais para o seu concorridíssimo vestibular a partir de 2018 na última terça-feira(4). A repercussão da notícia, tanto nas redes sociais, quanto nos sites, dá a dimensão da importância de uma instituição como a USP se incluir entre as universidades públicas que reconhecem a necessidade de instrumentos que possibilitem o acesso e a reparação, via sistema de cotas raciais, das desigualdades que distanciam, sobretudo, jovens negros e negras, das mais importantes universidades do país.
Mas o dilema vai muito além disso. Em junho, o Coletivo Nuvem Negra, fundado em 2015 por alunos negros e negras da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio, divulgaram uma pesquisa, fruto da campanha “Quantos professores negras/os tem na PUC-Rio?”.
Dados de 2016 gerados pelo Sistema de Gerência Universitária (SGU) da universidade apontaram que apenas 4,3% do corpo docente da PUC-Rio é negro. Mais precisamente: 1,6% de professoras negras e 3,2% de professores negros. Ou seja: apenas 86 dos 1985 professores e professoras da prestigiada universidade da Zona Sul do Rio de Janeiro., A pesquisa também diz – e aqui é extremamente importante observar – que, se for mantido o ritmo dos últimos 10 anos, o número de professores negros na universidade só irá igualar o de brancos em 2136.
Estes 120 anos de intervalo são quase os 128 anos de intervalo da assinatura da Lei Áurea em 1888 até aqui. É um intervalo emblemático, porque, mais de um século depois, a população negra no Brasil não tem sequer os mesmos patamares na medição do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU), que a população branca.
Nenhuma instituição representa tanto a ideia de “produção de saber” do que a universidade. Por isso é tão significativo que o recorte racial dos professores das instituições brasileiras receba a devida atenção.
A USP, que só agora se abre às cotas sociais e raciais como possibilidade de acesso, é a mesma que, em pesquisa publicada em 2005, no livro de José Jorge de Carvalho, tinha apenas 0,2% de professores negros no seu quadro docente, em 2005. Dos mais de 4,5 mil professores que possuía então, apenas cerca de dez professores eram negros. Isso numa pesquisa que identificava os professores negros como apenas 1% de todo o corpo docente das universidades brasileiras Mesmo a UnB (Universidade de Brasília), pioneira na adesão das cotas raciais, possuía, em 2016, apenas 1,77% de professores negros no seu quadro docente.
Se a universidade representa o lugar da produção de saber, não é razoável desconsiderar que a condição social e racial influencie no saber produzido?
Há de se perguntar, por exemplo, pela ausência de pesquisadores e intelectuais negros nas bibliografias dos cursos de graduação do país. Lélia González, Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento, Muniz Sodré, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Luiz Gama, Conceição Evaristo, Nei Lopes, Joel Rufino dos Santos são muitas as referências para as diversas áreas do pensamento brasileiro que são absolutamente invisibilizados e sua contribuição sempre posta à margem do “cânon” acadêmico.
E o que dizer da ausência da obra de Guerreiro Ramos nos estudos de relações raciais e sobre a condição do negro no Brasil? Em que universidade ele divide o lugar obrigatório de referência ao lado de Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda? Ao que parece, talvez apenas Milton Santos fura parte (e apenas parte) desse bloqueio, dado sua presença referencial na bibliografia dos cursos de Geografia.
Na própria PUC-Rio, a antropóloga Lélia González tem a sua trajetória acadêmica, construída ali nesta mesma universidade, completamente esquecida. Lélia chegou a ser diretora do departamento de Ciências Sociais na PUC-Rio, mas sua produção é apagada da bibliografia da graduação na própria universidade, ao passo que Roberto DaMatta, também antropólogo, também professor na mesma instituição, habita o Olimpo acadêmico e desfruta de ser literatura obrigatória na bibliografia não só da PUC-Rio, mas de qualquer departamento de antropologia no país.
Não quero, evidentemente, diminuir a importância de DaMatta, e, inclusive deve-se considerar a produção extremamente distinta dos dois, mas não podemos deixar que apenas esta diferença seja a explicação da relevância e influência de um e o esquecimento e marginalização de outra.
A campanha do coletivo da PUC-Rio não é a primeira com a intenção de despertar a atenção da sociedade, ou, no mínimo, da academia, para a segregação racial das universidades brasileiras. Em 2015, a Diretoria de Ações Afirmativas da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) lançou a campanha “Quantos professores negros você tem?”, espalhando cartazes gigantes pela cidade e a universidade. Em cada carta, a foto do professor e a frase eram acompanhadas da hashtag #NãoÉCoincidência. E parece não ser mesmo.
Há uma dificuldade histórica no Brasil de se reconhecer os danos da escravidão do período colonial e imperial, além da condição subalternizada e sub-humana das pessoas negras no período republicano, de negras e negros livres, mas em situações absolutamente miseráveis.
A naturalidade com que a presença mínima de professores negros é tratada, sempre abaixo dos 5% em qualquer universidade públicas e particulares de ponta, como PUC e FGV, mostra, de maneira nítida e constrangedora, que os esforços continuam tímidos, e o problema continua não sendo olhado de frente.
Mesmo no caso da adesão das cotas pelo Conselho da USP, as cotas raciais entraram como destaque, e não estavam na proposta inicial, que era apenas de cotas sociais. As cotas raciais vieram como fruto de uma pressão de cerca de 300 professores, que exigiram um passo mais ousado na reparação desta desigualdade histórica.
Campanhas como a do Coletivo Nuvem Negra da PUC-Rio vêm nos dizer que nos mantemos distantes do núcleo da questão, distantes de tocar na ferida causada pelo racismo estrutural.
Saberes também disputam, também compõem relações de forças. Há de se perguntar por que vinga o conceito de “democracia racial” e cai no esquecimento, marginalização ou na invisibilidade o conceito de “quilombismo”. Como sai vitorioso o conceito de “homem cordial” e como é ignorado e minimizado o conceito de “amefricanidade”. O coração da estrutura de poder permanece intacto. E branco.
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USP adere cotas raciais, mas racismo ainda é determinante na academia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU