27 Junho 2017
1.566 dias. 223 semanas. 51 meses. É o tempo que passou desde que Jorge Mario Bergoglio iniciou seu pontificado, no último dia 13 de março de 2013, e não voltou a pisar na Argentina. E não fará isto até novo aviso. Esta semana ficou confirmado que o Sumo Pontífice viajará ao Peru e Chile, em 2018. O argentino visitará pela terceira vez a América Latina e, novamente, o país que o viu nascer e com o qual mantém contato permanente o verá passar pela vizinhança, mas não estará incluído na viagem papal.
A reportagem é de Juan Piscetta, publicada por Infobae, 25-06-2017. A tradução é do Cepat.
Como nos anos precedentes, uma teia de especulações políticas é tecida a esse respeito. Desde uma suposta má relação ou distância ao governo de Mauricio Macri, as questões internas da Igreja Católica crioula ou de “estratégia” pastoral. O certo é que, na qualidade de máximo representante de um credo espalhado por toda a terra, a Argentina é só uma pequena porção territorial em um mar de milhões de fiéis e que o religioso deve encarnar uma universalidade que transcende a nacionalidade argentina. É habitual a comparação com outro dos pontífices viajantes, João Paulo II, que visitava frequentemente a sua Polônia natal, ou Bento XVI, cuja primeira viagem como sucessor de Pedro foi a Alemanha, país que visitou em mais duas oportunidades.
Bergoglio nunca abandonou sua “argentinidade”. Incessantemente mantém contatos informais e audiências privadas com seus conterrâneos (famosos e não famosos), seu fanatismo pelo futebol argentino continua intacto e realiza movimentos que não podem deixar de ser interpretados em chave com a política local, como quando era um arcebispo de Buenos Aires. As cartas de apoio à dirigente política Milagro Sala, encarcerada na prisão de Alto Comedero, ou a Hebe de Bonafini, e os convites à Santa Sé a personalidades como a procuradora Alejandra Gils Carbó, são gestos que irritam ao macrismo. Em paralelo, o Papa do carisma mantém uma dosificada e prudente cota simbólica com o governo de Mauricio Macri, a quem ofereceu duas audiências privadas.
No entanto, esta suposta distância do PRO (Proposta Republicana) não pode ser entendida linearmente. Assim como com o peronismo, Bergoglio mantém um estreito vínculo com alguns dos altos dirigentes de Cambiemos. Por sua vez, diferente dos anos do kirchnerismo, a Igreja argentina mantém uma pacífica convivência com o Governo. Até a melhorou. O Presidente restituiu vários símbolos que a cúria havia perdido na década passada, como a participação da máxima chefatura do Estado nos Te Deum e a atribuição para nomear um bispo militar, após a ruidosa polêmica que deixou de fora seu predecessor em 2007, Antonio Baseotto. Tampouco é menor que a vice-presidência da Nação seja ocupada por Gabriela Michetti, uma fiel crente.
Deste ponto de vista, os adeptos de Francisco e seus nexos com os dirigentes locais abarcam os extremos do espectro político. A grande maioria dos líderes dos partidos mais diversos e personalidades do mundo econômico, esportivo e sindical utilizaram sua imagem (seja por meio de fotos, cartas ou telefonemas) para fazer um uso proselitista ou de autopromoção.
“O Papa não apoia, nem defende, nem postula, nem ampara qualquer candidato político. Os que dizem ser apoiados é uma farsa”, disse a jornalista Alicia Barrios, íntima amiga de Bergoglio. “A notícia é que o Papa irá ao Chile e Peru, não que não vem à Argentina. Aqui se está criando dificuldades. Francisco não é nosso, é o chefe do Estado do Vaticano”, acrescentou na rádio Rivadavia.
“Causa-me uma profunda tristeza que não venha à Argentina, me dá pena”, disse o padre Fabián Báez, outro dos homens próximos a Bergoglio e conhecido por ter subido no papamóvel. O padre pároco de Vila Urquiza considerou que “deve ser uma renúncia para ele não vir” ao país, e supõe que sua decisão se deve “a escolhas que ele faz com seu ministério”.
“Não acredito que pense na pequenez da política argentina, ele está pensando a partir de seu papel como líder mundial, existe um panorama global com critérios altruístas que vão além de seus interesses pessoais”, sustentou. “Nas vezes em que falei com ele, nunca descartou sua visita, mas por questões de agenda não pode”, concluiu o sacerdote.
Juan Grabois, uma das referências territoriais com maior proximidade ao Vaticano, considerou que a questão política “não é o elemento crucial”. “Pode ter mais a ver com algumas situações da igreja argentina, do que com relação ao Governo; são especulações que alguém pode fazer sem nenhum amparo real”, disse o titular da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP).
José María del Corral, diretor mundial de Scholas Occurrentes, esclareceu que não falou com Francisco e apontou que “considera que não é o momento indicado para vir”. “É bom que vá ao Chile e não à Argentina porque não tem que ser de passagem. É um bom gesto. Quando vier à Argentina não será porque está próximo”, afirmou. “Estou certo que virá à Argentina na maturidade do processo, no momento justo, quando os argentinos ganharem. Nós precisaremos estar bem e ele virá, não ao contrário”, completou Del Corral.
No entanto, algumas pessoas próximas e analistas consideraram a omissão da viagem à Argentina em chave sociopolítica. “Há alguns meses, disse-me que virá quando sentir que é um fator de unidade, e possa ajudar a somar e não a dividir”, destacou Gustavo Vera, um dos dirigentes “laudatistas” e homens de confiança do Papa. “Ele sempre me respondeu o mesmo: quando sentir que pode vir para unir os argentinos, irá fazer. Possui muita vontade de vir, acompanha de perto o que acontece aqui”.
O ex-chanceler Andrés Cisneros, de longa trajetória diplomática sob o governo de Carlos Menem, também atribuiu a possíveis efeitos não desejados que poderia se juntar a uma eventual visita. “A sociedade argentina se caracteriza por ter uma profunda fissura, e qualquer acontecimento é tomado pelos dois lados da fissura como algo a favor seu e contra o outro”, manifestou. “Suponho que entre os numerosos fatos que decidem uma visita papal, deve se incluir o de não querer que sua figura seja tironeada por uns ou por outros em uma sociedade que, evidentemente, não está suficientemente bem preparada para conviver, nem sequer diante da visita de um Papa argentino”, concluiu o diplomata da gestão de Guido Di Tella.
Humberto Podetti, especialista em Direito da Integração e conhecedor da atualidade latino-americana, considerou que os destinos escolhidos por Francisco têm a ver com questões de “prioridade” regional e o papel a ser desempenhado pela Igreja em torno de conflitos históricos.
“A visita tem a ver com o último conflito armado na região, que foi a Guerra do Pacífico. O tema está encerrado do ponto de vista técnico e jurídico, mas possui consequências que ainda continuam incomodando o povo chileno e peruano. Ele quer contribuir estendendo um gesto entro os povos”, disse o diretor da Cátedra Livre de Integração Latino-Americana e Caribenha da Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Nacional de Lomas de Zamora.
Em sua opinião, o eixo das viagens de Francisco é para abordar temas de ordem global, nos quais o pensamento latino-americano tem um papel a cumprir para oferecer “soluções humanistas” ao mundo. “Minha leitura é que a Argentina não necessita de uma visita dele para se colocar de pé nestas questões, há nações que necessitam mais de sua presença, e por isso ele as prioriza”, considerou Podetti.
Eduardo Valdés, ex-embaixador no Vaticano, refletiu na mesma chave que Podetti e analisou a escolha de cada destino. “Herda a viagem ao Brasil de Bento XVI. Na viagem ao Equador, Bolívia e Paraguai falou sobre a saída ao mar e se desequilibrou com Chile e Peru. Devia uma visita a estes dois”, contou. Antes, havia cometido ingerência no conflito armado na Colômbia com as FARC, e por isso este ano visitará a este país tropical. “O Papa decide se envolver no processo de paz e convoca Santos e Uribe ao Vaticano. É mais ou menos um avalista dessa paz e, então, decidiu ir à Colômbia”, considerou.
As teorias sobre a liderança de Francisco e a raiz de suas decisões são múltiplas e variadas. O pesquisador e sociólogo do Conicet-UBA, Fortunato Mallimaci, analisou em um artigo a explicação deste fenômeno. O especialista destaca que há tantos “papas” como “interesses de classe, gênero, políticos, de direitos, de sociabilidade e religiosos” existentes, e afirma que a interpretação eclesiástica sobre Francisco é “apenas mais uma no mercado das visões do mundo”.
Carl Schmitt, um dos mais importantes do pensamento político, dizia que a Igreja tem a capacidade de abarcar os polos opostos da sociedade. É como a cabeça de Janus: apresenta uma dupla face onde os extremos não são antagônicos e tampouco é necessário reconciliá-los. É por isso que na história existiram catolicismos conservadores, reacionários, progressistas, de esquerda e revolucionários. Há nessa particularidade uma “forma política” que o habilita, baseada no princípio de representação de Cristo. O caso das explicações sobre a atuação de Francisco parece envolver este princípio.
Em um dos parágrafos de O Príncipe, Nicolau Maquiavel tentou descrever a essência dos Estados eclesiásticos. O florentino destacava: “Estes príncipes são os únicos que possuem Estados e não os defendem, [possuem] súditos e não os governam (...). Só, pois, estes principados estão seguros e felizes. Mas, como são regidos por uma razão superior, a qual a mente humana não alcança, deixarei de falar deles”. Seu conselho ressoa na atualidade.
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Por que o Papa Francisco não vai à Argentina? Amigos e especialistas opinam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU