16 Mai 2017
"Se a modalidade atual é o emprego de Lawfare e o arranjo midiático quase suicida, isso implica em operar com as condições existentes, tomando as ameaças da continuidade democrática como um fato possível e até mesmo provável. Em nosso Continente, a única constância é instabilidade institucional e a eterna presença da projeção de poder da Superpotência, em distintas versões da Doutrina Monroe, Big Stick, Segurança Hemisférica, Diálogos do Sul, Comando Sul, novas vertentes da Escola das Américas (agora mais focada em enlaces civis) e a eterna subserviência e perspectiva ideológica do viralatismo brasileiro", escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Eis o artigo.
Neste texto, aponto três perspectivas complementares: a primeira aponta tanto o excesso de confiança nas instituições republicanas por parte do governo deposto assim como a complexidade que é preparar um contra-golpe ou uma antecipação de hipóteses de interferência estrangeira no país; na segunda, realizo uma analogia com o derradeiro momento de Salvador Allende e como as mesmas ilusões aqui encontradas estavam presentes no 11 de setembro da América Latina; na terceira, uma cronologia do crescimento desta linha chilena, com a versão viralatista dos herdeiros dos Chicago Boys do século XXI. Vamos ao debate, há muito a fazer.
Há cerca de duas semanas, em debate coletivo através de aplicativos de celular, um amigo meu, o professor de Relações Internacionais Diego Pautasso, colocou um tema de fundo que me fez refletir: "estamos de acordo com a caracterização do golpe e da incidência de interesses externos em algumas instituições brasileiras. Mas, saliento que não é algo banal perceber estas movimentações e menos ainda antecipar possibilidades de contragolpe".
Diego e eu debatemos muito e ocupamos posições distintas dentro do pensamento à esquerda no Brasil. Mas, como ainda modestamente não sou adepto da pós-verdade, de imediato dei-lhe razão e me pus a pensar.
Concordo integralmente, não é algo banal antever este contragolpe e, logo, por tabela, tal antecipação permanente toma vulto de uma dimensão estratégica.
Na 2a feira, dia 08 de maio, em plena São Borja/RS, tive a alegria de fazer a aula magna do curso de ciência política-ciências sociais da Unipampa e o mesmo tema me foi apresentado pelo professor Edson Paniágua, coordenador deste curso onde fui tão bem recebido. De novo assumi esta razão e de imediato, no calor do debate, amarrei um construto.
"A coesão interna de um país com potencialidades de projeção internacional é proporcional à capacidade deste mesmo país enfrentar ameaças externas, tanto de forma direta como de forma indireta".
Na sequência, aí sim, avancei em minhas posições decoloniais: "O problema na América Latina e no Brasil é ainda mais profundo, pois não há sequer identificação do andar de cima com seu próprio povo e, logo, o inverso também é - ou deveria ser, e deveríamos incidir para que fosse - verdadeiro. A projeção autônoma do país passa por um profundo antagonismo sociocultural e radicalização dos instrumentos democráticos – como através de plebiscitos e referendos -, pois a luta interna reflete interesses externos e vice-versa”.
A lenda que corre em torno da derrubada de Pinochet seria dos diálogos em pleno Palácio de la Moneda, quando da manhã de 11 de setembro de 1973. Magistralmente narrado no filme "Allende" (direção de Miguel Littin, 2014), o mandatário chileno gritava desesperado: "Onde está Pinochet, onde está Pinochet?!"; até que um de seus assessores lhe disse: "presidente, Pinochet comanda as forças golpistas". Mais à frente, no desenrolar daquele dia maldito, outro assessor afirma "presidente, até Pablo Neruda - poeta e diplomata filiado ao Partido Comunista de Chile, de linha pró-soviética - estava dizendo nos últimos dias que Míguel Enríquez - histórico líder do MIR chileno, representante da esquerda mais radicalizada - tem razão". Silêncio de Salvador Allende, culminando com outra mensagem: "Enríquez manda dizer que os Cordões Industriais e o bairro La Victoria ainda estão de pé, aguardando suas ordens e o reforço logístico".
Naquela semana mesmo, segundo o economista Paulo Timm, residente em Santiago no período, assistente dos maiores economistas na Universidade Nacional de Chile, houve o seguinte encontro: “Isto me foi relatado por Pedro Vuskovic, Ministro do Planejamento de Allende. Poucos dias antes do golpe o presidente Allende teria chamado os partidos que o apoiavam, de sobremaneira Partido Comunista de Chile e Partido Socialista, este último até mais radical no discurso, e informou da iminência do golpe, dando-lhes carta branca para uma ação revolucionária, que ele, como Presidente constitucional, jamais tomaria. Os Partidos nada fizeram... As razões já conhecemos: A acomodação no aparelho de Estado que leva à burocratização política”.
Allende morreu como um autêntico patriota latino-americano, mas não havia plano de contingência ou contra golpe para além da "confiança nas instituições oligárquicas e burguesas". Delegar a partidos políticos a liderança de um contra golpe que necessitava de uma legalidade constitucional para garantir a legitimidade, também teve efeitos nefastos. Em uma situação como esta, apenas Salvador Allende poderia convocar a resistência completa, assim como Jango no Brasil em 1961 e em 1964. Dito e feito.
O presidente eleito do Chile foi ainda mais confiante nas instituições. Allende sequer ouviu as antecipações nada alarmistas do G2 - a inteligência cubana - que lhe recomendou formalizar um dispositivo permanente de 2000 efetivos, da Guarda Técnica, com 24 horas em revezamento. A Guarda Técnica - de escolta presidencial e lealdade ideológica - não chegava nem a 50 pessoas. Dito e feito novamente. A confusão entre teoria e ideologia é permanente, mas a hermenêutica da política é mais dura. Ao não fazer perguntas-chave cujas respostas, caso levadas a sério, vão implicar em mudanças de perspectivas que possam vir a comprometer o projeto político original, ou a posição dos atores individuais em condição de protagonismo ou liderança, a cegueira ou a tática do avestruz termina por ser evocada.
Independente da orientação política de um governo minimamente reformista na América Latina, sua obrigação é - ou deveria ser - antecipar movimentos dos inimigos (internos e externos) e contar com a possibilidade de que pode haver virada de mesa. Se a modalidade atual é o emprego de Lawfare e o arranjo midiático quase suicida, isso implica em operar com as condições existentes, tomando as ameaças da continuidade democrática como um fato possível e até mesmo provável. Em nosso Continente, a única constância é instabilidade institucional e a eterna presença da projeção de poder da Superpotência, em distintas versões da Doutrina Monroe, Big Stick, Segurança Hemisférica, Diálogos do Sul, Comando Sul, novas vertentes da Escola das Américas (agora mais focada em enlaces civis) e a eterna subserviência e perspectiva ideológica do viralatismo brasileiro.
Em 2015 o segundo governo Dilma Rousseff descia ladeira abaixo, mas ainda não havia o engajamento explícito de federações empresariais na aventura política do golpe. E, na contramão das poucas políticas ousadas do lulismo, havia - e há - um profundo mal estar do andar de cima com as ações afirmativas e tímidas políticas de reconhecimento. A simples existência de secretarias especiais com status de ministério e o transferir dos temas das identidades sociopolíticas para nossa antropofagia tropical - por mais equivocada e confusa que sejam as linhas acadêmicas e políticas que vêm dos países do norte - já criava celeuma suficiente para as posições estáticas do pós-colonialismo duplamente colonizado (pela herança colonial e o presente viralatista).
Na primeira década do século XXI, a revolta de elite contra as cotas étnico-raciais-sociais nas universidades públicas massificou a nova direita na base do recalque. Eis a materialidade do 'racismo de classe' precisamente explicado pelo professor Jessé Souza em suas obras mais recentes. Esta mesma nova direita, veio sendo bombeada através de eventos "pioneiros" como o Fórum da Liberdade (realizado em Porto Alegre desde 1988) e as levas de jovens ultraliberais que iam fazer curso de "formação" nos eventos de verão em Washington D.C. da Atlas Network e financiados pela fundação dos irmãos Koch (já escrevi centenas de linhas a respeito, incluindo nesta publicação).
Hábeis nas redes sociais e arrivistas pela própria natureza inescrupulosa e acumulativa do capital financeiro (costumo dizer que a financeirização assassinou o que restava da moral e ética protestante no seio do capitalismo nascente), as criaturas advindas dos institutos e think tanks neoliberais, os jovens ainda mais jovens egressos da juventude recém-formada, portadores de diploma universitário e nenhuma vivência no concreto e asfalto, plantaram a metástase ao retornarem dos EUA proliferando "cursos de lideranças". Desta bolha nasceu o MBL, maior expoente da nova direita cibernética, assim como grupos concorrentes. Faltava a orquestração.
O processo crescente de "venezuelização" a partir do segundo turno de 2014 ganhava contornos de conspiração sem sincronia, como são todas as conspirações complexas. Antes do início de março de 1964, havia núcleos de conspiração e a rede do IBAD e IPES, além do tecer fino de Vernon Walters e a decisão pró-golpe de Lincoln Gordon deram a segurança necessária para a tomada do poder. No Brasil do século XXI, a massificação por direita veio através da umbilical relação entre os conglomerados de mídia com difusão nacional e a seletividade punitiva da Operação Lava-Jato.
A cada passo da nova direita, uma repercussão midiática, seguida de lambança, silêncio ou inação do segundo governo Dilma. Vendo a possibilidade concreta, o final do verão de 2016 trouxe à tona as mesmas instituições de 1964, como a OAB e a FIESP. O apelo midiático e massificado tinha a solidez da experiência de sequestro da pauta sem sujeito da ação em 2013 – e daí a falsa alegação dos defensores do governo deposto que em junho de 2013 estava o ovo da serpente, o que não é verdade - transformou-se na convocatória massiva, e com vento a favor, tanto da mídia como do Judiciário. A linha chilena chegava a passos de ganso e chamadas ao vivo na maior rede de TV do Brasil.
Como já foi afirmado neste portal em outras ocasiões, e também por este analista, vejo como urgente o debate franco e no limite da responsabilidade buscando amarrar um consenso popular em torno de mecanismos de tipo consulta direta. Quem afirmar que isso por si só prevê um novo avanço do retrocesso, mente ou está equivocado. Quem se colocar fielmente crente apenas no arranjo das instituições republicanas sem mexer na escalada da nova direita e não tocando nas estruturas da mídia oligopolista, simplesmente desconhece as regras da política como extensão dos conflitos. O tema é tão urgente como delicado, e entendo que devemos segui-lo até onde o espaço público cibernético nos permita.
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O Brasil sob o avanço da linha neoliberal chilena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU