25 Outubro 2016
“Como a vida cotidiana de amplas camadas das classes C e D melhoraram, mas não ao ponto de transformar as relações cotidianas, e nem mesmo diminuindo significativamente os índices de violência urbana, a identidade política com o “ex-sindicalista que nunca foi de esquerda” (frase do próprio Lula) não chega ao ponto de ser totalmente transferida para a sucessora. A ruína do modelo macroeconômico caminhou lado a lado e foi impulsionada pela permanente exposição seletiva e julgamento midiáticos, com foco no “conjunto da obra” do lulismo. Diante da possibilidade de subordinar o governo que fez de tudo para agradá-los, os conglomerados de mídia, liderados pela Globo e secundados por Estadão, Folha e Abril, costuraram o consenso conservador, auxiliados pelos neoliberais no andar de cima e os neopentecostais na base da pirâmide social”, escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Eis o artigo.
Neste breve artigo, aprofundamos no debate e na crítica aos equivocados e errôneos empregos dos conceitos de hegemonia e ideologia. Aqui não se trata necessariamente de um embate erudito, ou a busca por uma coerência de tipo livresca e menos ainda “acadêmica”. Nossa meta modesta é aportar uma crítica por esquerda a quem estamos chamando e denominando de ex-esquerda; ou seja, a centro-esquerda do governo deposto, especificamente os dirigentes nacionais e estaduais de PT e PC do B, se não em sua totalidade, ao menos nas direções. Esta aliança, que outrora já teve o PSB e sempre o apoio recalcitrante do PDT, sucumbiu necessariamente por ignorância ou subestimação do conceito de ideologia e a consequência direta da falsa ideia de hegemonia na sociedade brasileira.
“E o povo bestializado, assistiu à proclamação da tal da república”. Assim encerra a narrativa clássica dos que acompanharam o golpe militar de 15 de novembro de 1889, quando o gabinete da Guerra derruba a monarquia brasileira a quem o marechal Deodoro servia. Nas tramas palacianas, na percepção do isolamento da esfera política da resultante ideológica na sociedade – ou seja, as ideias guia que interpretam as realidades das maiorias exploradas e oprimidas – quase sempre os setores populares são espectadores dos destinos do país. Isso se dá não necessariamente quando um governo é popular, ou mesmo populista; ao contrário. A “passividade” ocorre porque ninguém se organiza por “espontaneidade” ou “osmose” viral da internet. As pessoas se reconhecem como sujeitos sociais e como tais precisam ser organizados por agentes coletivos compostos de atores individuais (militantes) que, voluntariamente, vão agregar conteúdos classistas (de antagonismo) e brigar para criar um sentido de poder do povo. Esta vontade vai se fazer valer na medida em que estiver organizada politicamente e socialmente inserida. Do contrário, chances como esta, de uma possibilidade de um contra golpe, onde o poder do povo poderia fazer transbordar a manipulação das elites dirigentes e setores de classe dominante no Brasil, vai simplesmente se perder no vazio.
O episódio do golpe com apelido de impeachment no Brasil foi uma grave derrota. Esta derrota foi antecedida pela perda de qualquer sentido de antagonismo, de conflito de classe e postura realmente anti-imperialista por parte dos dirigentes da ex-esquerda. Afirmo isso porque é nos momentos mais tensos da política doméstica dos países da América Latina, quando o sentimento de querer-se livrar da presença imperial, consegue ser associado com a complacência e subordinação das classes dominantes de nossos países. Enfim, por mais que represente crise política, este pode ser um episódio marcante e de ruptura. Pode, ou melhor, poderia, porque aqui no Brasil não passou de um período melancólico, onde de nariz tapado as agrupações e a militância mais à esquerda tinha de justificar ser contra o golpe, mas em hipótese alguma defensora do lulismo, e tampouco do segundo governo Dilma.
É importante compreender o delicado e o possível em uma conjuntura política acirrada. A mudança de regime político sempre tende a ser um momento traumático para operadores, elites em disputa ou setores de classe dominante perdendo interesses diretos. Mas, para a maioria, ainda quando há alguma inclinação popular no governo de turno (e este pouco ou nada foi o caso do lulismo), se esta não for organizada na defesa de suas bandeiras e conquistas diretas, a tendência é se dedicar a sobrevivência diária. Na ausência de sujeitos sociais com organicidade e referências desde a base, o povo brasileiro, infelizmente, percebe os sintomas dramáticos apenas quando se sente atingido. É como alguém caminhando no escuro e recebendo murros, sentindo as dores, mas não reconhecendo quem golpeia.
Quando temos um país com sujeitos sociais desorganizados, mesmo quando estes são beneficiados por programas de governo, não é a melhoria material que vai levar a uma significação ou câmbio de consciência. Assim, ainda que a vida melhore, a maioria vai perceber que o dinheiro em conta, o emprego direto e os benefícios materiais vão implicar em mais trabalho e compromisso, e não em mudança ideológica. Por um período, estes beneficiados terão alguma identidade com o líder carismático – no caso, o ex-presidente Lula. Mas, assim que o modelo começa a ruir, o voto cativo fica “liberto”, em geral caindo na abstenção, branco ou nulo, conforme se verificou no primeiro turno das eleições municipais de 2016.
Como a vida cotidiana de amplas camadas das classes C e D melhoraram, mas não ao ponto de transformar as relações cotidianas, e nem mesmo diminuindo significativamente os índices de violência urbana, a identidade política com o “ex-sindicalista que nunca foi de esquerda” (frase do próprio Lula) não chega ao ponto de ser totalmente transferida para a sucessora. A ruína do modelo macroeconômico caminhou lado a lado e foi impulsionada pela permanente exposição seletiva e julgamento midiáticos, com foco no “conjunto da obra” do lulismo. Diante da possibilidade de subordinar o governo que fez de tudo para agradá-los, os conglomerados de mídia, liderados pela Globo e secundados por Estadão, Folha e Abril, costuraram o consenso conservador, auxiliados pelos neoliberais no andar de cima e os neopentecostais na base da pirâmide social.
Entramos em uma nova etapa, onde o Continente se inclina para a direita e de forma ainda mais subordinada aos capitais transnacionais e ao padrão cultural do “ocidente”. Construir um poder que emane e seja organizado pela maioria, na América Latina em geral, e no Brasil em particular, é obra gigante e permanente. Nesta construção, é importante marcar o caráter anticolonial e decolonial, descolonizando as representações e sem entrar em um canto de sereia de crença nas instituições oficiais como a “saída viável”. Além de instituições do Estado burguês – no conceito literal – são também instituições anti-populares, herdeiras do Estado pós-colonial do Império Luso-brasileiro, do positivismo dos militares e das elites complexadas como vira-latas que são. O viralatismo é mais que uma ofensa necessária, é uma categoria chave de interpretação do domínio interno que o povo brasileiro sofre neste território. Logo, interpretá-lo e marcar posições estruturalmente antagônicas é uma necessidade vital de quem se propõe a, coletivamente, fazer política radicalizada no país e também no Continente.
Na ausência de organização social, é impossível defender práticas indefensáveis sem sequer entender a perda de direitos que já está ocorrendo. Para organizar a maioria, é urgente construir, pouco a pouco, um novo consenso da maioria, apontando para a defesa de interesses e identidade popular totalmente antagônica às representações simbólicas da classe dominante colonizada.
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Viralatismo e conciliação de classes: analisando a derrota ideológica do governo deposto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU