Por: Jonas Jorge da Silva | 13 Mai 2017
Diferente do rigorismo metódico de um tratado, a encíclica papal Laudato Si’ se destaca por sua organicidade, a partir de eixos integradores que, ao longo do texto, retomam questões fundamentais para a compreensão da problemática humana acerca da questão socioambiental. Durante sua apresentação do tema A Laudato Si’ na esteira da tradição do Ensino Social da Igreja, o teólogo e sacerdote dehoniano Marcial Maçaneiro (PUCPR) avaliou que esta encíclica testemunha um processo, uma adesão e uma proposta, que tem no conceito de ecologia integral o seu ponto de chegada. A atividade ocorrida na última quinta-feira, dia 11 de maio, marcou a terceira etapa do ciclo de estudos e reflexões O Magistério Social do Papa Francisco, promovido pelo CEPAT, em parceria com a CVX, Regional Sul, e apoio do IHU.
De acordo com o próprio significado de encíclica, uma carta que é para circular, Francisco escreve para todos, com o desejo que sua mensagem seja amplamente disseminada. Sem ter a pretensão de dar a última palavra, o Papa integra uma diversidade de conteúdos fundamentais, que podem ser interpretados do ponto de vista paradigmático e programático, ou seja, além de estabelecer uma leitura de horizontes e de grandes linhas de interpretação, extremamente afinada com o pensamento científico recente, o Papa também não se exime da tarefa de propor a implementação de processos em benefício da vida planetária.
O Papa também inova a partir de sua sensibilidade, estilo e forma de expor seus argumentos, com uma exposição quase homilética. Compreende que o papel da encíclica é incrementar um debate de muitas vozes. Trata-se de uma encíclica totalmente dialógica, que não abre mão de reunir vozes de diferentes campos do saber, sem abrir mão do rico legado do Ensino Social da Igreja.
Quanto a este ponto, em um conciso retrospecto de documentos da Igreja que antecederam o despontar do tema ecológico, no artigo A ecologia como parâmetro para a ética, a política e a economia. Um novo capítulo do Ensino Social da Igreja, publicado no livro Cuidar da Casa Comum. Chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si’ (Paulinas, 2016), Maçaneiro lista as seguintes ênfases: “a questão operária (Rerum Novarum, de Leão XIII, 1891), a questão da paz (Pacem in Terris, de João XXIII, 1963), a questão do desenvolvimento (Popularum Progressio, de Paulo VI, 1967), a questão do trabalho (Laborem Exercens, de São João Paulo II, 1981), a questão da solidariedade (Sollicitudo Rei Socialis, de São João Paulo II, 1987), a questão econômica (Centesimus Annus, de São João Paulo II, 1991) e a questão da justiça (Caritas in Veritate, de Bento XVI, 2009)”.
Foto: Reginaldo A. Grilo
Na avaliação de Maçaneiro, a encíclica Laudato Si’ inclui todas estas questões citadas acima, já que o tema da ecologia não está separado das demais esferas da vida. Além disso, em sua introdução ao artigo Vozes do sul na encíclica Laudato Si’: Fontes e temas, publicado pela Revista Pistis & Praxis, Maçaneiro destaca que a encíclica “é o primeiro documento pontifício inteiramente dedicado à Ecologia. Também é a carta em que o Papa, de modo oficial, insere a questão ecológica no rol do ensino social da Igreja, na esteira das questões abordadas nos documentos anteriores, como paz, desenvolvimento, trabalho, economia e justiça social”.
Quanto às fontes do sul, neste mesmo artigo, Maçaneiro se dedica a demonstrar as diversas citações feitas pelo Papa “das Conferências episcopais do Sul: África do Sul, Filipinas, Bolívia, Argentina, Brasil, República Dominicana, Paraguai, Nova Zelândia, Austrália e Federação das Conferências Episcopais da Ásia”, podendo-se incluir também a Conferência Episcopal do México, cultural e eclesialmente ligada à América Latina.
Maçaneiro destacou três elementos importantes presentes na encíclica: a concepção de justiça geracional, o conceito de ecologia integral e a constatação da existência de uma dívida ecológica, especialmente nas relações entre o Norte e o Sul. A partir da perspectiva ecológica, redimensiona o já presente princípio do bem comum na tradição do Ensino Social da Igreja.
O bem comum natural é constituído de elementos vitais para a existência de todos. A ciência e a economia atreladas ao paradigma unilateral e unidimensional da modernidade não são capazes de produzir o bem comum natural, apenas estabelecem uma manipulação do mesmo. É preciso reconhecer que a natureza é a primeira gestora destes elementos vitais.
Maçaneiro também ressaltou que, para Francisco, os pobres não são apenas vítimas da atual crise socioambiental, mas também fontes de solução para a mesma. Impregnados da lógica da dádiva, os pobres ensinam a todos a solidariedade, a respeitar o ecossistema, a partir da forma simples e sóbria em que vivem. Os pobres apontam que é possível e necessário redescobrir os bens necessários para se viver. Estes não são produtos da indústria, mas, sim, dádivas do criador. É preciso aprender com as comunidades locais, pensar em uma economia diversificada e se abrir a novos estilos de vida.
Abaixo, reproduzimos alguns trechos do documento papal que também foram destacados e disponibilizados pelo teólogo Marcial Maçaneiro:
a) Correção do antropocentrismo desregrado
“Foi dito que a narração do Gênesis, que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1,28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja. Pois se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que – do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra – se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15). Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de protegê-la e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras”. (LS 67)
b) Afirmação do valor intrínseco das criaturas
“Hoje, a Igreja não diz, de forma simplista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, “se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis”. O Catecismo [da Igreja Católica] põe em questão, de forma muito direta e insistente, um antropocentrismo desordenado: “Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas””. (LS 69)
c) Imbricação entre Ecologia e Antropologia
“Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos nos iludir de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais”. (LS 119)
“Isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental”. (LS 139)
“O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos”. (LS 23)
“A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos”. (LS 28)
“O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”. (LS 30)
“O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrá-la em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros”. (LS 95)
O Papa Francisco reconhece os avanços da física, da biologia, da medicina e da informática, mas observa que o paradigma tecnocrático afetou seriamente os ecossistemas por ser “um paradigma homogêneo e unidimensional” (LS 106), que privilegia os interesses dominantes e descuida da complexidade da vida planetária. De fato, as ciências e tecnologias se concentraram no uso instrumental da natureza, comprometendo a diversidade e o limite dos ecossistemas, sugando os recursos da Terra numa velocidade agressiva “que contrasta com a lentidão natural da evolução biológica” (LS 18).
Ao desconsiderar a conexão entre sociedade e natureza, entre economia e ecologia, a razão moderna mostrou, paradoxalmente, sua parcela de irracionalidade: buscou o lucro à custa da exclusão social, concentrou a renda de muitos nas mãos de poucos, condicionou os governos com interesses econômicos, perverteu a escala de valores ao colocar a economia acima da ética. Com o passar do tempo, esta postura gerou uma cultura do descarte repleta de resíduos ambientais (lixo, poluição, envenenamento: LS 20-29) e resíduos sociais (trabalho escravo, tráfico de pessoas, descarte dos pobres: LS 123).
Visando à superação desta irracionalidade e de seus danos, Papa Francisco propõe ao ser humano “uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si” (LS 105). Ele apregoa uma “cultura ecológica” (LS 111) e invoca outra racionalidade capaz de sanar os efeitos desastrosos dos processos anteriores: a racionalidade ecológica, mais atenta à relação entre humanidade, natureza e sociedade; baseada na interação das espécies e dos ecossistemas; focada na sustentabilidade do presente e do futuro do planeta; que promova a conversão ecológica da moral, da política, da economia, da educação e da espiritualidade.
“A cultura ecológica não pode se reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial”. (LS 111)
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Laudato Si’, a encíclica dialógica em favor da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU