05 Mai 2017
“Lembrar Cristo significa evocar sua missão salvífica e empenhar-se para que cada um seja uma epifania viva, sinal de sua ação no mundo. Então, aquele que participa da Eucaristia, mas não vive a fé, tem sim a ação de Deus, porém a relação de presença não se estabelece, escreve Carlo Molari, teólogo italiano, em artigo publicado por Rocca, 01-05-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, “A morte de Jesus não salva porque oferece algo para Deus, mas porque revela a fidelidade do amor exercido por Jesus mesmo na cruz”.
“A fidelidade de Jesus ao amor – conclui o teólogo - torna a trágica e injusta morte um “ato sagrado” e permite-nos também celebrá-la com grata memória. Foi superado o modelo de um Deus violento e é dado destaque ao valor redentor do amor, quando permanece ativo, apesar do sofrimento”.
Eis o artigo.
Atendendo a uma solicitação da Redação retomo um tema já abordado em outras ocasiões, mas necessário para a nova evangelização e urgente reformulação da fé: "O que significa e como expressar hoje a Eucaristia como sacramento da presença de Cristo e de seu sacrifício?".
A pergunta que me foi encaminhada especificava ainda: "Estamos te pedindo, se possível, analisar uma questão bastante debatida e que volta à pauta a cada Páscoa, a cada procissão com a Hóstia, a cada ‘desabrochar’ devocional, a cada adoração eucarística: o que se entende hoje por ‘presença real’ do Senhor?
A comunhão com Deus que habita o coração humano, nostalgia, por vezes, calada e silenciada, habita antes e primeiramente o coração do Pai: como poderia ser mais bem apresentada? Dizendo que é um Mistério? Já foi falado de transubstanciação, de sacrifício da missa... A linguagem teológica deveria ser cuidadosamente revisitada. Mas como?".
Em primeiro lugar, gostaria de mencionar que nem sempre precisamos mudar as palavras para renovar a mensagem. As mesmas palavras mudam de significado e seu desenvolvimento pode ser um passo à frente inclusive na compreensão da vida e da doutrina da fé.
A palavra presença, por exemplo, pode ser entendida de novas maneiras em correspondência às diferentes atividades que tornam possíveis relacionamentos inéditos. Em um nível humano, de fato, com o termo presença indica-se a relação que se estabelece entre pessoas diversas.
Existe uma presença espacial, para as pessoas que estão no mesmo lugar, uma presença eletrônica, para as pessoas que falam ao celular ou por algum aplicativo de computador, uma presença intencional, para as pessoas que pensam umas nas outras, uma presença puramente simbólica, através de uma foto ou um retrato, a assim por diante, de acordo com o tipo de atividade que a relação assume em determinado momento.
Cada relação é constituída por três componentes: o sujeito operante, o fundamento, ou seja, a atividade que permite a presença e o objetivo ao que a atividade de alguma forma se direciona.
Vamos imaginar uma conferência com um orador e ouvintes presentes no mesmo lugar. Eles têm uma relação complexa baseada em ondas sonoras (existe fala e escuta), em ondas luminosas (ocorre um encontro pelo olhar), e no pertencimento ao mesmo lugar. Se a conferência for televisionada, outras pessoas poderão participar do evento, mesmo que a sua presença não seja local, mas com base em ondas eletromagnéticas (que permitem a escuta e a visão). De acordo com as diferentes atividades possíveis existem vários tipos de presença. O telefone, o rádio, a televisão, o computador e assim por diante, são hoje ferramentas através das quais é possível estabelecer uma relação de presença real, inatingível nos séculos passados.
Todas essas são presenças efetuadas por meio de símbolos (= realidades que representam outras), mas são reais porque permitem de diferentes maneiras a relação e envolvimento das pessoas.
Diferente é o caso de uma presença virtual, quando o evento não acontece no mesmo tempo em que é representado. Se, por exemplo, é transmitido um evento do passado com imagens gravadas, a relação não se estabelece com as pessoas, mas com o evento relatado e os atores envolvidos podem; inclusive; já estarem mortos. O que acontece é verdadeiramente presente para os telespectadores que estão envolvidos.
Na transmissão dos atuais meios de comunicação a ação é múltipla: os atores que operam o evento, o eventual apresentador que acompanha o fato, a câmera que transmite, os ouvintes e os telespectadores, mais ou menos envolvidos. É uma presença real. Se ninguém ligar o rádio ou a televisão as ondas ainda assim estarão presentes, mas não haverá presença no evento porque não existem relações.
Também na Eucaristia não se trata de presença espacial ou local, mas sacramental, ou seja, através de símbolos objetivos. Na Encíclica Mysterium Fidei (03/09/1965) Paulo VI afirma que a presença eucarística não se realiza quando "os corpos se encontram presentes localmente" (n 48). A relação entre o crente e Cristo não é realizada por contato de dimensões espaciais, mas por meio de chamamentos simbólicos.
Este tipo de presença é chamado de sacramental (que é realizado através de sinais sagrados) ou com outros termos nas várias tradições cristãs. A relação que se estabelece no sacramento é real e dinâmica, no sentido de que transforma o fiel que se abre na fé à obra salvífica de Deus, que opera por meio de Cristo e do seu Espírito.
Paulo VI ao resumir a doutrina da igreja esclarece que na Eucaristia o pão e o vinho "tomam nova significação e nova finalidade, deixando de pertencer a um pão usual e a uma bebida usual, para se tornarem sinal de uma coisa sagrada e sinal de alimento espiritual; mas só adquirem nova significação e nova finalidade, por conterem nova realidade, a que chamamos com razão ontológica” (Paulo VI Mysterium fidei, ib.). Nessa perspectiva, deve ser entendida a doutrina tradicional da Igreja segundo a qual a presença de Cristo na Eucaristia é "verdadeira, real e substancial" (Concílio de Trento, Sessão XIII, Sobre o sacramento da Eucaristia, 4).
É presença real porque a relação entre o fiel e Cristo ressuscitado existe de fato. É presença real porque os dois termos são existentes no ato da relação. É presença substancial porque a relação liga as pessoas e não apenas algumas das suas qualidades acidentais ou simplesmente uma sua imagem.
O Catecismo da CEI (Conferência Episcopal Italiana) afirma que no Sacramento "o Crucificado ressuscitado se faz presente como Cordeiro imolado e vivo. O pão é realmente seu corpo doado, o vinho é realmente seu sangue derramado... O pão e o vinho tornaram-se nova presença..., dinâmica e pessoal, no ato de doar-se a si mesmo e não apenas na sua eficácia santificante, como nos outros sacramentos”. (A verdade vos libertará, n. 689). Para o exercício da fé os crentes entram em relação com Cristo ressuscitado através do ritual. Nesse sentido, não são exatas todas as fórmulas que usam parâmetros espaciais, ou seja, que falam de Jesus na hóstia ou imaginam sua presença em miniatura. Ele, de fato, não está no espaço, como o ator não está dentro da televisão ou o interlocutor dentro do aparelho de telefone. A presença realiza-se de modo 'sacramental', isto é, por meio de símbolos, da mesma forma que na televisão há uma determinada personagem ou no telefone há um ente querido. O Catecismo também afirma que a Eucaristia não é uma repetição ou um acréscimo à cruz "mas a reapresentação, aqui e agora, sob os signos sacramentais, daquele mesmo ato de doação com o qual Jesus morreu e foi glorificado" (ib., 690).
Este é o significado que adquirem o pão e o vinho no rito eucarístico. A novidade foi chamada de transubstanciação, mas como atualmente o termo 'substância' refere-se exclusivamente ao aspecto físico-químico, desconhecido na Idade Média, é melhor falar em transignificação ou transfinalização, como sugerido pelo Catecismo holandês.
Mas é importante lembrar que a relação sacramental não é um fim em si, mas é direcionada à missão da igreja.
Jesus tornou presente Deus na história da humanidade com a sua obra e a sua existência.
Por isso foi chamado de sacramento de Deus, que é um sinal de sua presença no mundo.
Lembrar Cristo significa evocar sua missão salvífica e empenhar-se para que cada um seja uma epifania viva, sinal de sua ação no mundo. Então, aquele que participa da Eucaristia, mas não vive a fé, tem sim a ação de Deus, porém a relação de presença não se estabelece.
Nas fórmulas atuais da Missa católica aparece, por vezes, o termo “sacrifício”. Mesmo no relato da última ceia foi introduzida a expressão um pouco “forçada”: “oferecido em sacrifício por vós" enquanto a fórmula grega do Evangelho simplesmente usa "dado por vós", ou seja, ao vosso favor.
Toda a dinâmica da salvação é marcada pela graça, isto é, pela ação de Deus em nosso favor. A morte de Jesus não salva porque oferece algo para Deus, mas porque revela a fidelidade do amor exercido por Jesus mesmo na cruz. A sua não corresponde à vontade de Deus, porque é um ato de violência contra Jesus por parte daqueles que rejeitaram a sua mensagem. Da parte de Jesus é um "ato sagrado", um "sacri / ficio" não oferecido a Deus, mas permeado por seu desejo salvífico em relação aos homens. A fidelidade de Jesus ao amor torna a trágica e injusta morte um “ato sagrado” e permite-nos também celebrá-la com grata memória. Foi superado o modelo de um Deus violento e é dado destaque ao valor redentor do amor, quando permanece ativo, apesar do sofrimento.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Evento e significado. "O que significa e como expressar hoje a Eucaristia como sacramento da presença de Cristo e de seu sacrifício?" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU