30 Março 2017
Quando os britânicos acordaram no dia de 24 de junho de 2016, a apertada vitória da decisão de deixar a União Europeia, aprovada em um plebiscito, não foi a única surpresa: embora tenha sido uma bandeira defendida durante anos pela direita no Reino Unido, a saída do bloco foi, de certa forma, também abraçada pela esquerda, mais especificamente pelo Partido Trabalhista.
A reportagem é de Fernando Duarte, publicada por BBC Brasil, 29-03-2017.
De acordo com uma série de pesquisas publicadas após o histórico resultado, que desencadeou o processo conhecido como Brexit, eleitores trabalhistas votaram de forma majoritária pela permanência britânica no bloco (63%).
Mas a minoria significativa teve peso determinante no resultado final do pleito - o Brexit venceu por pouco mais de 1 milhão de votos entre as 33 milhões de pessoas que foram às urnas.
A surpresa foi ainda maior pelo fato de que regiões tradicionalmente de esquerda, como o nordeste da Inglaterra e o País de Gales, engrossaram a vitória eleitoral da saída da UE ─ no nordeste, por exemplo, o Brexit venceu com um percentual de votos (58%) maior do que do resultado geral (52%).
Esquerdistas pró-Brexit ganharam seu próprio apelido: lexiteers, um híbrido das palavras "left" (esquerda, em inglês) e Brexit.
O termo chegou a ser mencionado durante a campanha para o plebiscito, mas pareceu ter passado despercebido até o resultado das urnas.
Contudo, como a própria arquitetura do Brexit, as motivações que levaram eleitores desse espectro político a apoiar uma causa tradicionalmente associada à direita são mais complexos do que um simples apelido.
"O euroceticismo nunca foi exclusividade da direita britânica, e durante a campanha para o referendo havia setores da esquerda declarando apoio ao Brexit", explica o cientista político Jon Tonge, da Universidade de Liverpool, um dos principais analistas eleitorais britânicos.
"Porém, suas vozes eram minoria e tampouco contavam com personalidades políticas fazendo campanha pela Brexit, como foi o caso do Partido Conservador e do Ukip (legenda fundada nos anos 90 exclusivamente com a plataforma de saída da UE)", acrescenta.
Em meio a um Partido Trabalhista marcado pela guinada rumo ao centro nos anos 90, que mudou a imagem associada ao socialismo e, pela primeira vez na história política britânica, garantiu à legenda três mandatos consecutivos no governo, entre 1997 e 2010, a causa eurocética foi abafada.
Ao contrário do que aconteceu em 1975, quando o governo trabalhista de Harold Wilson precisou convocar um plebiscito sobre a permanência no bloco, ao qual havia se juntado apenas três anos antes, para aplacar a ira do partido e, sobretudo, dos sindicatos de trabalhadores, históricos aliados da legenda. Ironicamente, com ajuda crucial dos conservadores, o Brexit original foi derrotado com sobras - 67% a 23%.
"Em 2016, tivemos a situação oposta, em que um premiê conservador (David Cameron) precisou convocar a consulta por pressão das alas eurocéticas do seu partido. Só que o resultado não lhe favoreceu", conta Alan Charlton, embaixador britânico em Brasília entre 2008 e 2013, referindo-se à renúncia de Cameron, que fez campanha aberta contra o Brexit.
Tonge, porém, explica que o euroceticismo trabalhista nunca "morreu".
"A esquerda tem problemas com a UE e é errado assumir que lexiteers são simplesmente xenófobos. O argumento é que a união facilitou o trabalho do capitalismo e suprimiu os direitos dos trabalhadores, algo reforçado pelas medidas de austeridade que o bloco impôs a países como a Grécia e a Irlanda quando precisaram de ajuda econômica", explica Tonge.
"Sem falar que durante muito tempo houve alas trabalhistas lamentando a entrada do Reino Unido na UE (1972) porque isso mataria de vez o projeto de um governo socialista no país", acrescenta.
O cientista político explica, porém, que a convicção política não é a única explicação para a popularidade do Brexit entre eleitores de esquerda - que também inclui o Partido Nacionalista Escocês, cuja terça-parte do eleitorado (36%) votou pelo Brexit na Escócia, apesar da vitória tranquila dos defensores da permanência do Reino Unido na UE (remainers) no país.
"Não estou dizendo que o argumento sobrevive a uma análise forte, mas eleitores dessas regiões usaram o plesbiscito para manifestar sua percepção de que a UE não ajudou a classe trabalhadora e criou dificuldades por causa da livre movimentação de imigrantes dos países do bloco", diz Tonge.
"E, sim, há eleitores de esquerda que dividem com os de direita a reclamação de que a UE é uma instituição burocrática e que afetou a soberania britânica", diz Tonge.
Em um artigo publicado na terça-feira pelo jornal americano The New York Times, o acadêmico britânico Alan Johnson expressa a preocupação com generalizações.
"Somos lexiteers, mas nem por isso somos xenófobos. Votamos pelo Brexit porque tememos o projeto autoritário neoliberal de integração proposto pela União Europeia. Defendemos um sistema político democrático", escreveu Johnson.
O web designer Trev Prellie, de 51 anos, que fez campanha aberta pelo Brexit em suas contas de mídias sociais, diz que o argumento de que todos os lexiteers são contrários à imigração é o que mais o deixou frustrado em debates e conversas.
"Para mim, o voto não teve nada a ver com imigração. Votei contra uma organização formada por banqueiros que não foram eleitos por mim. Quando olho para o que a UE fez com a Grécia, não vejo uma instituição benevolente, mas sim uma que passou por cima do voto popular dos gregos, cuja maioria era contra a austeridade", afirma.
Prellie vive em Birmingham, segunda maior cidade do Reino Unido e tradicional bastião da esquerda britânica.
"Além do mais, sou socialista e defendo, por exemplo, a nacionalização de serviços públicos essenciais, algo que a legislação da UE não permite", completa.
Direito de imagem EPA Image caption Reino Unido acionou artigo 50 do Tratado de Lisboa, dando início formalmente ao processo de saída do país da UE
Jon Tonge afirma que o resultado do plebiscito britânico mostra o que se pode chamar reorganização de fronteiras políticas no Reino Unido e na Europa, em que tanto partidos de esquerda quanto de direita buscam um discurso mais nacionalista e protecionista.
Isso ainda que o sucesso de políticos da considerada extrema-direita, como Marine Le Pen, na França e Geert Wilders na Holanda, obtenha mais atenção.
"O populismo está nos dois lados em um momento em que muitas pessoas na Europa e no mundo estão desiludidas com a globalização e se sentem alienadas do processo político", finaliza.
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Não é só a direita: por que parte da esquerda britânica apoia o Brexit? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU