Por: João Flores da Cunha | Tradução: Juan Luis Hermida | 30 Março 2017
Nos últimos anos, a América Latina viu diversos de seus países serem governados por partidos progressistas e ligados à esquerda: o Partido dos Trabalhadores no Brasil, o kirchnerismo na Argentina, os bolivarianos na Bolívia, no Equador e na Venezuela, e a Frente Ampla, no Uruguai. Embora tenham suas raízes na esquerda, porém, esses governos “são um tipo de esquema político diferente da esquerda que lhes deu origem. Esquerda e progressismo são hoje, na América Latina, duas coisas diferentes”. Essa é a visão expressa pelo ambientalista e pesquisador uruguaio Eduardo Gudynas, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Gudynas, especialista em temas relacionados ao meio ambiente e desenvolvimento, afirma que os governos progressistas justificaram o processo de extração de recursos naturais na América Latina como “necessários para o progresso e para os planos de assistência social”, apesar de seus impactos ambientais. Segundo ele, “o progressismo está focado no crescimento econômico por meio de desenvolvimentos convencionais, tolera e encoraja empreendimentos de alto impacto como os extrativismos, e acredita que a pobreza se resolve pelo assistencialismo ou mais consumismo”.
Em sua avaliação, “a ideia do progressismo de se converter numa nova esquerda que fosse efetiva para proteger as classes populares e o meio ambiente não se concretizou”. Para ele, o Brasil, que “é o maior extrativista do continente”, está “muito atrasado” em comparação com os países vizinhos no debate sobre um modelo econômico alternativo.
Segundo ele, é preciso "uma autocrítica de vários dos meus amigos nas grandes ONGs que ficaram deslumbrados com o Brasil potência global e com as empresas campeãs nacionais. Estavam mais interessados em discutir questões sobre o papel do Brasil nos BRICS e eram mais frágeis na busca de alternativas à Vale e outras empresas mineradoras, ou para entender que a discussão sobre o pré-sal não era apenas sobre onde investir os royalties".
Gudynas | Foto: P7 Progressismo
Eduardo Gudynas é ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social – CLAES, do qual é secretário-executivo. Ele tem formação pela Faculdade de Medicina da Universidade da República – UDeLaR, do Uruguai, e já exerceu a função de professor visitante em diversas universidades da América Latina e dos Estados Unidos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais características do neoextrativismo?
Eduardo Gudynas – Para responder a esta pergunta, primeiro é necessário definir o conceito do extrativismo. Em sentido estrito, é uma apropriação de grandes volumes de recursos naturais que em sua maioria são exportados como matérias-primas para a globalização. Esta definição segue os usos históricos do termo, as posturas da sociedade civil e várias análises acadêmicas. Portanto, os extrativismos são plurais, incluindo, por exemplo, no caso do Brasil, a mineração, os hidrocarburetos e especialmente os grãos de exportação, como a soja. E mais: o Brasil é o maior extrativista do continente. Apenas suas exportações de minérios representam o triplo das vendas de minerais de todos os demais países sul-americanos somados.
Há diferentes formas políticas e econômicas de organizar os extrativismos. Nós reconhecemos extrativismos de estilo conservador, como se observa no Chile, no Peru ou na Colômbia, com um forte controle das empresas transnacionais. Por outro lado, há um estilo progressista, em mãos dos governos da nova esquerda como o PT no Brasil, ou mesmo na Bolívia, no Equador, na Argentina, no Uruguai e na Venezuela. Essas eram novas estratégias e por isso foi chamado de “novo extrativismo progressista”, ou, em forma abreviada, “neoextrativismo”. Nesses casos existia um maior papel do Estado, às vezes por controles e em outras vezes por maiores impostos, ainda que só em alguns setores, usualmente o petróleo. No entanto, a maior distinção são os discursos pelos quais se justificam os extrativismos. Este estilo progressista os defendia como necessários para o progresso e para os planos de assistência social.
IHU On-Line – No que se refere ao extrativismo, há diferenças entre os governos que chamamos progressistas e outros governos da região? O senhor acredita que houve algum avanço no período dos governos progressistas na América Latina neste tema?
Eduardo Gudynas – Há diferenças importantes, já que não é a mesma coisa ter um setor mineiro totalmente em mãos de empresas privadas, como ocorre no Peru, ou contar com o papel das companhias estatais, como acontece no setor de hidrocarbonetos da Bolívia ou da Venezuela. Também é muito diferente o papel do Estado, já que no estilo progressista se insiste em que ele é mais ativo.
Mas também há semelhanças. Em todos esses estilos, à direita ou à esquerda, os impactos sociais e ambientais têm sido enormes. Áreas naturais foram perdidas, territórios indígenas foram invadidos, solos e águas foram contaminados, e em quase todos os casos não foram solucionados os problemas da pobreza. O acidente recente mais grave para todos os extrativismos sul-americanos, o rompimento da barragem em Mariana, Minas Gerais, ocorreu sob um governo progressista. Portanto, não se observam avanços em nenhum caso.
O progressismo tentou vincular o extrativismo a políticas públicas, como a assistência social, mas na prática esses mecanismos não funcionaram bem. Na realidade, a captação de dinheiro desse setor serviu sobretudo para financiar o Estado, mais do que para focar especificamente na luta contra a pobreza.
Portanto, a ideia do progressismo de se converter numa nova esquerda que fosse efetiva para proteger as classes populares e o meio ambiente não se concretizou.
IHU On-Line – A que o senhor atribui o fato de que em todos os países da América do Sul tenham-se identificado recentemente problemas de corrupção em atividades de extração?
Eduardo Gudynas – Tudo indica que operam muitos fatores. Nos anos anteriores, os altos preços das matérias-primas e os êxitos das exportações geravam muito dinheiro, e por conta disso existiam muitos recursos disponíveis para nutrir as redes de corrupção. Hoje, com a queda dos preços internacionais, o dinheiro mobilizado por esses empreendimentos é muito menor, e claramente existem brigas para acessar esses recursos.
Em paralelo, está claro que vários mecanismos dos partidos políticos precisam da corrupção para financiar suas atividades, campanhas eleitorais etc., ou para devolver favores àqueles que os apoiaram nas eleições. Então, havia pessoas nos partidos que procuravam nichos em que poderiam instalar essas redes de captação de dinheiro, e os extrativismos eram muito atrativos.
Nos nossos estudos sobre a corrupção e extrativismos na América do Sul, confirmamos que existem atores dos partidos políticos muito ativos na corrupção, mas também há casos onde atuam funcionários de ministérios, do Poder Judiciário, dos governos municipais, e até de organizações cidadãs locais.
Tudo isso está no marco de problemas culturais mais profundos que devem nos conduzir à autocrítica. Há amplos setores da sociedade que toleram essa corrupção. Isso faz com que a institucionalidade e os controles continuem sendo fracos ou falhos.
Finalmente, no meu modo de ver, certos extrativismos de alto impacto, como as megaminerações a céu aberto, precisam da corrupção. É que se fossem cumpridos adequadamente os controles sociais e ambientais, esses projetos, que têm impactos muito severos, nunca seriam aprovados. Por isso, para assegurar a aprovação, devem ser retirados alguns direitos humanos e também apelar às redes de corrupção para se conseguir os licenciamentos ambientais, evitar os controles etc. A corrupção NÃO é uma consequência dos extrativismos, mas uma necessidade, uma condição para levá-los adiante.
IHU On-Line – Pode-se dizer que haverá mais ou menos corrupção em um projeto extrativista caso ele seja gerenciado por uma empresa privada ou pelo Estado?
Eduardo Gudynas – A informação disponível indica que não há maiores diferenças. Por exemplo, em nosso levantamento dos casos sul-americanos temos encontrado casos de corrupção em todas as empresas estatais petroleiras de todos os países, da Venezuela ao Chile. Os casos são distintos, já que são enormes, por exemplo, na Petrobras do Brasil ou na PDVSA da Venezuela – o que é de se esperar dado os grandes volumes de dinheiro que movimentam. Mas há também casos de corrupção nas petroleiras estatais do Chile ou do Uruguai, ainda que menores.
A necessidade de que as empresas estatais também sejam bem-sucedidas e lucrativas as obriga a repetir práticas competitivas capitalistas, tais como rebaixar as exigências sociais e ambientais. Ao seguir esse caminho, as empresas estatais se tornam vulneráveis aos extrativismos.
IHU On-Line – A esquerda latino-americana ainda tem alguma contribuição a dar para a construção de um modelo de desenvolvimento econômico? O que ficou da discussão que a esquerda fazia quando não estava no governo?
Eduardo Gudynas – Estou convencido de que uma nova esquerda é necessária, especialmente pelo seu compromisso com a justiça, e que isso é possível. Mas é indispensável saber diferenciar entre a esquerda e o progressismo atual. Os progressismos, como o PT do Brasil, a Alianza PAÍS do Equador, a Frente Ampla do Uruguai, o MAS [Movimento para o Socialismo] da Bolívia, são um tipo de esquema político diferente da esquerda que lhes deu origem. Esquerda e progressismo são hoje, na América Latina, duas coisas diferentes. Para responder a sua pergunta, para compreender as alternativas de esquerda, há que ter muito clara essa diferença.
O progressismo está focado no crescimento econômico por meio de desenvolvimentos convencionais, tolera e encoraja empreendimentos de alto impacto como os extrativismos, e acredita que a pobreza se resolve pelo assistencialismo ou mais consumismo. Esse progressismo não assegura adequadamente os direitos humanos, nem procura aprofundar a democracia, já que a sua obsessão é apenas ganhar eleições. A esquerda, em troca, debatia sobre os sentidos do desenvolvimento, buscava a radicalização da democracia, estava comprometida com os direitos humanos, e era a fonte de exploração de alternativas sociais e ambientais.
IHU On-Line – O senhor acredita que é possível reverter 500 anos de colonialismo e extrativismo na América Latina?
Eduardo Gudynas – Essa meta é muito possível, e está essencialmente em nossas próprias mãos como latino-americanos. Nós somos os que devemos procurar alternativas aos extrativismos, e isso significa sair da ideia de desenvolvimento convencional. Essas questões são muito exploradas e discutidas nos países andinos, e até certo ponto no Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai).
O problema é que o Brasil está muito atrasado na comparação com os países vizinhos, e esse debate ainda é inicial. O peso do progressismo do PT foi muito forte, e há muitos atores – por exemplo, na academia ou na sociedade civil – que durante muitos anos tiveram dificuldades para recuperar sua independência. Então, por exemplo, enquanto no Peru e no Equador se discutiam modelos pós-extrativistas tais como deixar de explorar o petróleo, no Brasil esse debate não conseguia decolar.
Também deve haver uma autocrítica de vários dos meus amigos nas grandes ONGs que ficaram deslumbrados com o Brasil potência global e com as empresas campeãs nacionais. Estavam mais interessados em discutir questões sobre o papel do Brasil nos BRICS e eram mais frágeis na busca de alternativas à Vale e outras empresas mineradoras, ou para entender que a discussão sobre o pré-sal não era apenas sobre onde investir os royalties.
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Esquerda e progressismo são hoje duas coisas diferentes na América Latina. Entrevista especial com Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU